O QUE VOCÊ VAI SER QUANDO CRESCER?
O QUE VOCÊ VAI SER QUANDO CRESCER?
Benevides terminou as quatro séries do grupo escolar “a reboque" Não gostava de estudar, detestava livros e quando começou a usar caneta, pena e tinta, foi o aluno mais lambão da classe.
— Bené, toma cuidado, não deixa cair tinta no uniforme limpo! — Dona Rosa não se cansava de recomendar, aliás, inutilmente, ao filho destrambelhado. Todas as manhãs, quando o garoto ia para a escola, era a mesma ladainha de conselhos e avisos. E a mesma resposta:
— Tem perigo não, mãe!
Nas aulas, era aluno problema. Tinha repetido o terceiro ano e no final da quarta (a última) série, corria o risco de não receber o diploma. Péssimas notas durante todo o ano. Figurava quase sempre em último lugar no quadro de notas que Dona Marocas, a professora, fazia com capricho a cada final de mês. Um bonito gráfico que mostrava, em colunas vermelhas, os alunos que obtinham notas de oito a dez; em colunas verdes, os com notas de cinco a sete; e em colunas amarelas aqueles que nem atingiam a nota mínima.
Bené estava sempre no amarelo. Mesmo com a ajuda de Constantino, não ia nada bem na quarta série. Eram colegas de classe desde a terceira série. Foi graças às tardes que estudou com o primo e juntos faziam os deveres de casa, que Bené conseguiu ser promovido ao quarto ano. Mas agora, nem mesmo Constantino acreditava que Bené se diplomasse. As faltas de Bené às aulas estavam se tornando freqüentes no segundo semestre. A professora pedia esclarecimentos a Bené, que resmungava coisas e nada dizia.
Dona Rosa não atendia aos pedidos de Dona Marocas, jamais foi ao grupo escolar saber como ia o filho. Viúva, vivia de lavar e passar roupa “pra fora”, sempre cansada. Tinha mais três filhos abaixo de Bené e mal tinha tempo para cuidar de tudo na sua casa.
Se não dava conta das dificuldades do filho na escola, a respeito do futuro, então, nem pensar. O dia-a-dia era tão duro, viver da mão pra boca, não ter o suficiente para comida, roupas e calçados, era tudo tão imediato que Dona Rosa sequer pensava no que seria de Bené, após terminar a escola. Não tinha o que outras mães e pais usualmente têm com relação aos filhos: aspiração a uma profissão, estudos, um bom emprego no comércio ou numa repartição pública. Sabia que depois de sair do grupo escolar, iria trabalhar com o cunhado, na oficina de mecânico de automóveis.O menino gostava de ficar rodeando os carros na oficina, mexendo nas rodas, sujando-se de graxa.
Constantino falava com Benevides sobre o futuro:
— Vou pro ginásio. Quero ser empregado de banco. E você, que vai fazer?
— Quero trabalhar na oficina do tio Carlos. Consertando carros.
— Mas ele não tem empregado. Tem pouco serviço.
— Não tem importância. Gosto de mexer com carros, ainda vou ter um pra passear pela cidade.
As ausências de Bené foram aumentando. Faltou uma semana inteira em setembro. Ninguém sabia por que ele faltava tanto, o garoto era misterioso. Nem para Tino, com quem passava muitas horas fora da escola, revelava seu segredo.
Romeu também era estudante do quarto ano do grupo escolar, mas em outro estabelecimento. Passava muitas horas das tardes vazias no gabinete dentário do pai, onde ficou conhecendo Tino e Bené. Constantino ia com freqüência, tinha muitas cáries e agüentava firme o tratamento. Bené só fora uma vez, com a cara inchada, uma inflamação que foi resolvida com a extração do dente ruim. Seus berros, na tarde da extração, foram ouvidos por toda a vizinhança.Nunca mais voltou ao dentista para tratar dos dentes, mas a amizade com Romeu, iniciada naquela ocasião, cresceu.
— Uai, Bené, cê disse que nunca mais voltava no dentista, mas vive indo lá. — Brincou Constantino.
— Ele é meu amigo, me deixa andar na sua patinete. Pior é você que só vai lá por causa da Lurdinha.
Ara, sô, deixa de ser besta.
Ah, a Lurdinha! Que garota bacana! Acho que o Tino gosta dela.— Bené pensava, com inveja. — Mas o que o Tino tem que eu não tenho? A Lurdinha dá bola pra ele e nem conversa comigo.
Mais velha do que os três garotos, já estava no colégio das freiras, freqüentava o segundo ano do ginásio. Também passava as tardes no consultório do pai, o doutor Emiliano, especialista em tratar — ou melhor, de arrancar – dentes de crianças. Não que fosse delicado ou tivesse alguma técnica especial ao lidar com as crianças. Acontecia que era o único dos três dentistas da cidade que tratava de crianças . Nem o Dr. Pantoja nem “seu” Abgail gostavam de lidar com a garotada.
Assim, Tino e Bené passaram a se encontrar constantemente com Romeu e Lurdinha. Romeu era levado da breca, tinha um estilingue com o qual vivia acertando passarinhos pousados nos fios da rede elétrica. Com sua pontaria, já acertara, “sem querer”, diversas vidraças, principalmente da escola onde estudava.
Lurdinha era igualmente irrequieta, não queria estudar. As freiras do colégio a toleravam em função do prestígio do pai. Mas a garota aprontava nas aulas e fora delas. Ao sair das aulas, abaixava as meias compridas e dava um jeito de levantar a saia, puxando-a pelo cós da cintura, colocando à mostra suas grossas coxas e provocando escândalo nas colegas. Andava rebolando e piscava para os rapazes mais velhos. Todas as noites ia à praça principal e não tinha vergonha de puxar conversa com quem quer que fosse.
Entre os quatro, falavam de seus sonhos para o futuro:
— Quero ser cantora de rádio!
— Cê é boba, Lurdinha. Nunca que papai vai te deixar cantar no rádio.
— Nem vai deixar você ser aviador.
— Aviador, não. É piloto de avião que se diz. Vou ser, sim, piloto. E de avião grande. Desses que vão pra guerra.
— E você tem coragem de ir pra guerra? — Tino se intromete na conversa dos dois irmãos.
— Claro, quero derrubar muito avião. Dos inimigos.
— Vou trabalhar no Banco do Comércio. Um dia, vou ser gerente de banco. — Constantino falava com a mais absoluta certeza.
Bené não participava da conversa, preferia ficar andando na patinete de Romeu. Lurdinha falava com convicção. Já tinha um porte de moça e gostava de ler Carioca e Vida Doméstica, revistas com fotos de cantores e letras das músicas, que ela decorava e vivia cantarolando. Era fã de Emilinha Borba, ouvia o programa da cantora todas as semanas.
— Mãe, me dá um dinheiro pra comprar uma pulseirinha?
— Pulseirinha? Que pulseirinha?
— Igual àquela que vi na foto da Emilinha, na revista.
— Agora não tenho, vai pedir pro seu pai.
Dona Estela sabia que Lurdinha não tinha coragem de pedir ao pai, por isso usava tal artifício. O que não impediu de Lurdinha obter a pulseirinha que desejava. Na loja do Jamil, as bugigangas, miudezas e afins ficavam em uma pequena prateleira, acessível apenas pelo lado interno do balcão. Ladina, Lurdinha não titubeou. Numa tarde de muito movimento na loja, Jamil se esforçando em atender duas clientes importantes ao mesmo tempo, a garota conseguiu surrupiar uma pulseirinha da loja. Como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Teve o cuidado, entretanto, de não exibir a pulseirinha em sua casa, para o pai ou a mãe. Mostrou-a, orgulhosa, às colegas do colégio e até para a Irmã Valência, só para escandalizar a freira.
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Os três garotos e a menina passaram a ser um quarteto inseparável. Além dos encontros na saleta de espera do consultório do Dr. Emiliano, tinham um lugar secreto para suas reuniões. A Caverna no Buracão: uma caverna rasa, num dos paredões a pique da enorme voçoroca nos limites da cidade. Além do difícil acesso, a caverna ficava oculta por touceiras de capim e mamoneiras.
— Vamos lá, gente. É fácil de chegar, mostro o caminho. — Na primeira vez em que Bené e Tino acompanharam Romeu e Lurdinha, sentiram arrepios de medo. Da boca da caverna via-se o poço no fundo da imensa voçoroca, uns quinze metros abaixo.
— Credo, se cair daqui, vou direto pro poço! — Tremendo, Bené agarrava-se aos ramos. Escorregou, agarrou na mão de Lurdinha.
— Virgem Maria! Que lugar esquisito. — Tino não estava gostando nada daquela aventura. Mal conseguia acompanhar Lurdinha, que subira levantando o vestido, agarrando-se com as mãos nas pedras, nos galhos e nos troncos das mamoneiras.
A caverna era rasa, mal dava para os quatros se sentarem. Limparam o chão das folhas secas e sentaram-se com as pernas cruzadas, como os índios peles-vermelhas. Lurdinha e Romeu eram os “donos” da caverna, fazia tempo que eles subiam ali para esconderem seus tesouros. Pelas paredes havia pequenas locas, buracos escavados, com alguns objetos. No fundo, num buraco maior próximo ao chão, uma caixa de papelão com tampa.
— Que são essas coisas aí ? — Bené indicou os objetos nos buracos da parede.
— Badulaques que trazemos pra cá. Velas e fósforos, a lanterna velha do papai.
— E naquela caixa?
— É o cofre do nosso tesouro. — Lurdinha arrastou a caixa para o centro, tirou a tampa.Bené olhou e nem acreditou no que viu: objetos brilhantes, revistas, livrinhos, pedaços de cordas. Brinquedos quebrados, soldadinhos de metal, um pequeno automóvel verde. Um aviãozinho de duas asas sem as rodas. Lurdinha foi tirando o tesouro da caixa, colocando-os no chão. Do fundo da caixa apareceram um colar e dois brincos.
— São de verdade? — admirou-se Tino.
— Claro! A Lurdinha pegou na casa de dona Zizi, amiga de mamãe. — contou Romeu.
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Passou outubro, chegou novembro com as provas de fim de ano. Os alunos, atirando-se nos livros, a professora fazendo-os recordar a matéria ensinada durante o ano. Tomar bomba no quarto ano era uma vergonha, todo mundo queria o diploma.
Todo mundo, não. Benevides não se importava nem um pouco com as aulas. Ia quando queria. Seduzido por Lurdinha e Romeu, passou a seguir os dois por toda a parte. Constantino, completamente absorvido nos estudos, deixou de se encontrar com os amigos.
Lurdinha se desenvolvia em tamanho e esperteza. Passou a liderar o grupo. Muito espertos, começaram a fazer pequenas pilhagens nas bancas de frutas da feira. Gostavam mais de pegar bananas na lojinha de frutas de seu Gega, que expunha a mercadoria na porta do estabelecimento. Tinha mais graça quando o velho saia lá do fundo, arrastando uma perna, chegava na porta e xingava os garotos, que observavam escondidos:
— Desgraçados, vão roubar a puta que os pariu. — Era humilde, mas expressava-se num bom português.
Com o tempo, melhoraram as técnicas, ficaram audazes, e passaram a ir a pequenas lojas longe do centro, e nos momentos de maior movimento, surrupiavam quinquilharias, cadernos, lápis e borrachas que ficavam sobre os balcões. Pegavam os objetos e corriam como doidos. Levavam os troféus conquistados em correrias e perseguições, para a caverna. Lá saboreavam as frutas e eliminavam as pistas das emocionantes aventuras. Os objetos eram guardados ciosamente no cofre do tesouro.
Acabaram se dando mal. Foi numa tarde, já estava escurecendo. Lurdinha mandou os dois distraírem o velho Chico Birraio com perguntas bobas, enquanto ela tentou pegar algumas notas e moedas da gaveta de dinheiro. Estava escuro, a loja mal iluminada, tudo propício a um golpe certo. Foi apanhada em ação pela filha do dono, que chegou de repente, vindo dos fundos. A mulher era forte e prendeu Lurdinha, que tentou, em vão, se soltar. O velho italiano ajudou a filha a subjugar a menina. Romeu e Bené fugiram.
O comerciante, enérgico, não titubeou em chamar o delegado de polícia (seu compadre Totonho Lima), que veio em seguida.
— Mas é a filha do Dr. Emiliano!
— Pois é. Já estava com a mão dentro da gaveta do dinheiro. Leva ela pra cadeia, chama o pai, ele tem que tomar ciência.
O acontecimento foi motivo de comentários pelo resto do ano, na pequena cidade. Repercutiu não apenas pelo fato em si, mas, principalmente, por ter como protagonistas os filhos do ilibado Dr. Emiliano.
Lurdinha nada escondeu. Revelou o segredo da caverna, as origens do “tesouro” e os nomes dos dois companheiros. Romeu e Bené escaparam de ser inquiridos, pois sumiram de circulação. Escondidos, naturalmente, nas próprias casas, pois ninguém iria entregar seus filhos, culpados sou não, ao escárnio da vizinhança, conhecidos, etc.
Constantino notou a falta de Bené nas provas finais da escola. Ficou sabendo, por alto, da confusão em que o amigo se metera. Não teve jeito de ir à casa de Dona Rosa e talvez por isso nunca mais viu o colega. Ouviu, sem querer, sua mãe comentar com a vizinha, Dona Regininha:
— Pois é, Regininha, a Rosa teve de mandar o Bené pra Campinas, está morando com o tio.
Lurdinha foi sumariamente expulsa do colégio. As freiras não permitiram nem mesmo que ela fizesse as provas finais e perdeu o ano. Sumiu da cidade: foi internada em um colégio de Varginha.
Chegou, afinal, o grande dia, o dia da formatura no grupo escolar. Constantino estava alegre. Para a “festa” do diploma, ganhara roupa nova, seu primeiro terno completo: paletó de três botões e calças compridas de brim branco. Enfiava as mãos nos inúmeros bolsos. Agora, sim, tenho onde pôr minhas figurinhas, os maços de cigarros para jogar no bafo, tem até bolsinho pra moedinhas e canivete.
Após a cerimônia no salão do grupo escolar, a reunião dos parentes, amigos, das professoras, da diretora, no pátio da escola. Abraços e beijinhos nas faces coradas e suadas dos meninos e meninas. Dona Marocas aproximou-se de Constantino e seus pais.
— Parabéns! — Abraça e beija Constantino, e fala com seus pais. — O Constantino é o meu aluno favorito, meu amiguinho, esteve comigo desde o primeiro dia do primeiro ano, e terminou com notas excelentes! — Diz, passando a mão sobre os cabelos loiros do garotinho, que fica vermelho de vergonha e acanhamento. Os pais quase se arrebentam de orgulho do filho.
— Então? — Pergunta Dona Marocas, para animar a conversa. — O que você vai ser quando crescer?
Constantino é pego de surpresa. Mas que coisa, ela já sabe, nós já falamos nisso na classe. Olha pra mãe, olha pro pai, todos sorridentes, esperam uma resposta. Acanhado e não querendo falar besteira, o garoto gagueja.
— Mamãe... Mamãe falou que... Se eu quiser, eu POSSO SER gerente de banco, QUE JÁ TÁ BOM DEMAIS.
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Todos Direitos Autorais e de Reprodução reservados pelo Autor:
ANTONIO ROQUE GOBBO (ARGOS) – S.S. PARAÍSO, OUTUBRO DE 2000.
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