E depois?

Há certos dias que nos parecem a própria personificação dos nossos sonhos. Na bendita sexta-feira tive exatamente essa impressão ao acordar-me. Após uma noite bem dormida, visitada por tantos sonhos amorosos, despertei atrasado para o quartel. Pulei da cama, dispensei o banho dado o atraso, saí de casa engolindo a seco um pão com manteiga.

Atravessei a avenida e adentrei a pequenina rua que findava no muro do quartel. Pertinho de casa, não me roubou o tempo mais do que cinco minutos para chegar até ele. Bato continência para o sentinela e ando quase em marcha até o segundo portão. Ouço um trovão forte sacolejar o céu. Chuva de verão sempre abundante e em pouco tempo enche as ruas. Pareceu-me com o som das minas que explodimos nos exercícios de guerra, nas matas ao redor do quartel. Fui pôr minha sacola no armário do dormitório, como fazia diariamente. Ainda estava apressado. Meus amigos já se enfileiravam em frente ao Pavilhão Nacional esperando a leitura da ordem do dia e as informações adicionais, além, é claro, da execução do Hino Nacional. Ainda me sobrou um minuto. Eram seis e cinqüenta e nove: o dia apenas começava!

O trovão preludiou mesmo muita chuva. O que havíamos programado, a marcha dos vinte e cinco quilômetros, foi feito assim mesmo. E quando pusemos os pés na rua, nossa roupa se encharcou. Saímos feito um bando de pintos molhados. E a pancada firme do coturno no asfalto era bem mais forte do que a zoada da água da chuva lavando o asfalto. Retornamos às dezoito horas, sem necessitar dizer qual o tamanho do cansaço da tropa. Ufa!

–Dia pesado, hoje, hem, filho?

–Nem me fale, Patrícia!

–Vá tomar seu banho logo. Depois jantaremos. Seu pijama está no banheiro!

Eu costumava ligar a televisão e entrar para o banho. Ouvi meu nome no áudio! Eu não estava louco. Gritei para ela!

–Eu ouvi também, querido. Parece que é da ONU. O Brasil enviará uma tropa grande para ajudar a manter a ordem em um certo país africano.

–Não pegou o nome do país?

–Não...

–Amanhã saberei no quartel.

Eu não imaginava que a marcha da chuva serviria de propaganda do Exército para divulgar, naquele mesmo dia, nossa ida para Angola. Gravaram tudo. O nome do soldado Sousa havia se destacado. Realmente eu me lembro quando alguém, com uma câmera ao ombro, se aproximou da fileira de soldados. Só não imaginava que eu estaria estrelando no vídeo captado por ela e anunciado no jornal das vinte horas.

Preparamos tudo e em uma semana embarcamos para o Rio de Janeiro onde ficamos dois dias. Ajuntamo-nos a um outro grupo maior e voamos juntos à África. Tivemos lá uma calorosa recepção pela outra tropa brasileira que se despedia do território africano após dezoito meses de atividades. O país pareceu-me um grande lixão.

Passei em Angola quatro anos. Dois anos e meio a mais que o planejado. Enviei a ela muitas cartas de amor. Ao telefone só nos falávamos no Natal ou se algo de inusitado lhe acontecesse e eu precisasse saber.

Faltavam quinze dias para o retorno do meu grupo ao Brasil. Minha filhinha estava com três anos e meses. Deixei-a no ventre de Patrícia com aproximadamente dois meses de vida. Ela nem sabia que estava grávida. Conheci-a através de fotos. Era linda minha filha.

Nesse domingo de sol forte, como quase todos os outros, saímos eu e três outros colegas. Fomos comprar artesanatos locais feitos de marfim, por uma conhecida tribo local. Comprei um elefante pequenino, um cinzeiro e uma bolsa de couro de avestruz. Tomamos uma bebida típica da região e retornamos ao quartel da ONU.

Lembrei-me do estrondo do trovão, quando cheguei quase atrasado ao quartel, no dia em que fora anunciada a minha ida para Angola. Dessa vez acompanhou a um clarão que em nada se parecia com um relâmpago. Olhei de lado e vi Enéas, Julio e Ary, todos os três abraçados com a morte. Desejei correr até eles e não me pus mais em pé. Desequilibrei e caí.

Era o fim de tudo! Acordei-me em um hospital improvisado da ONU, com enfermeiros e médicos dos dois lados da cama.

–Sente dor?

–Muita, doutor..., muita...

Ouvi quando ele fez um gesto com a mão direita e pediu que me aplicasse uma tal injeção de nome esquisito. Dormi e sonhei com tudo o que me havia acontecido.

Não desejo a meu pior inimigo andar em campos suspeitos de estarem minados. A morte se esconde sob qualquer pisada desconhecida. Nem sei como escapei com vida. É uma pena que tenha perdido as duas pernas e, o pior, bem acima dos joelhos. Proibi que comunicassem a Patrícia minha mutilação. Deixei para lhe dizer com a minha chegada. Não queria que sofresse antecipadamente.

O nosso avião pousou em um domingo de maio, o último. Trazia comigo, às mãos, um buquê de rosas vermelhas, como minha homenagem atrasada pelo Dia das Mães. O sargento Ademir empurrava minha cadeira de rodas. Estava fardado e o que me faltava dos membros dilacerados pela força maldita da explosão permitia que o tecido da calça comprida flamulasse como uma bandeira. Fui o último a sair do aeroporto. O comandante me esperava do lado de fora da sala de desembarque. Havia muitos jornalistas querendo cobrir a chegada da tropa. Puseram-me no finalzinho dela.

Quando o meu olhar cruzou o de Patrícia, meu coração chorou. Ela permaneceu parada, como se esperasse um sonho passar e, acordada, entender que tudo não passava de um pesadelo. Mas ela estava diante de uma realidade cruel.

–O que lhe aconteceu?

–Em casa lhe direi, amor. Esta é Cléa?

-Sua filha!

Abracei-a meio sem jeito, porque a cadeira não me permitia fazê-lo melhor. Quando levantei a vista, sua mãe estava de costas. Enxugava as lágrimas, tentando esconder sua tristeza profunda. A imprensa me evitou por uma manobra que até hoje não entendi. Apenas o velho cabo Hamilton ficou encarregado de levar-me para casa no automóvel do quartel. Não havia mais ninguém no saguão do aeroporto, a não ser nós quatro.

–Vamos?

–Vamos, cabo!

Hoje é Natal! Faz oito anos que tudo aconteceu. Aposentaram-me com menos de um mês de acidentado. Não fossem os dólares poupados no outro Continente, nem sei como teria passado esses anos. Só sabemos o valor de uma caridade quando dela necessitamos, como eu agora.

Patrícia briga com sua obesidade mórbida. Já se operou seis vezes. Cléa vende cocada no colégio na hora do recreio e com isso consegue pagar a mensalidade escolar. Facilitam que ela venda os doces lá mais por compaixão do que por qualquer outro motivo!

Amo o meu país, o meu Exército, a minha vida. Dói-me saber que a humanidade ainda não se vinculou ao amor universal. Tão poucos fazem por tantos. Estou começando a escrever a minha história em Angola. Um empresário amigo presenteou-me com o pagamento de uma edição de quinhentos exemplares. Quem sabe, agora, eu não consiga arranjar os reais suficientes para mudar minhas próteses? A vida tem que ser transformada em um forte de felicidade, numa mina de sonho e de alegria. Às vezes acreditamos que onde vivemos chama-se “o paraíso”. Vou levando a vida do jeito que ela quer me levar!