GABRIELA

G A B R I E L A

Antiga estrada boiadeira elevada à condição de via urbana, a Avenida Doutor Delfim Moreira estendia-se de um lado a outro da pacata cidade de São Roque da Serra, tal qual um rio de prata. Dir-se-ia um leito de rio seco, totalmente coberto por uma grossa camada de areia alva, escaldante ao sol do meio dia. Pouca gente sabia o nome oficial da avenida, conhecida com "rua dos carros". Por aquela avenidestrada "passavam bois, passavam boiadas, passavam os papudos com cuecas listradas" (conforme os moleques gostavam de gritar quando por ela transitavam).

Pela rua dos carros passavam também os carros de bois, proibidos que estavam de trafegar por outras ruas da cidade. Tropeiros com mulas arqueadas sob o peso de bruacas e pesados arreios. Cavaleiros. Carroções de rodas raiadas, de ferro, carregados de lenha ou com mantimentos das fazendas e sítios.

Não havia, pois, em toda a cidade, local melhor para a localização da ferraria do Samuel Papudo, um artista em fazer ferraduras, consertar arados, moldar peças em ferro para carros de bois, e tudo o que lhe fosse solicitado em ferro batido. Da sua forja saíam vergalhões de ferro aquecidos até ficarem brancos e os quais ele transformava no que encomendado fosse.

O movimento na ferraria era intenso. Fazendeiros, sitiantes, tropeiros alinhavam suas montarias e seus carros ao longo da rua, nas proximidades do pequeno telheiro sob o qual Samuel se desdobrava para atender a todos. Apesar do trabalho muito e da demanda crescente, o ferreiro trabalhava sozinho, nunca teve ajudante. Por isso, os fregueses tinham de esperar para fazer a encomenda, e voltar daí a dias para receber a peça encomendada. A prioridade era toda para as ferraduras das animálias dos tropeiros, que não podiam demorar-se na espera. Para estes, Samuel trabalhava até nos domingos, quando necessário.

Tipo misterioso, o Samuel Papudo. Grandalhão, musculoso, mãos imensas. Os pés, metidos em rústicas alpargatas feitas por ele mesmo, tinham de ser grandes para sustentar a corpulência. Um avental de couro, mal aparado, o protegia até os joelhos. Tudo nele era grande. O rosto moreno, escuro de fuligem, era escondido por negra barba comprida. E por debaixo da barba, o papo. Imenso. Dependurada sob o queixo, chegava-lhe ao peito uma protuberância que a barba não conseguia esconder. Também escura, parecia que Samuel nunca se lavava.

Claro que o apelido de Samuel Papudo só era usado longe de seus ouvidos. Faz muito tempo, quando o seu papo nem era tão grande assim, um tal de Zequinha Veiga levou uma sova do Samuel por tê-lo chamado, sem malícia, pelo apelido. Só mesmo a garotada se atrevia a passar cantando em frente à sua ferraria:

Aqui por esta estrada, passa boi, passa boiada.

Passa até Samuel Papudo com a cueca listada.

Cantavam e disparavam na corrida.

Vivia na pequena casa agregada à ferraria. Nunca foi visto fora da ferraria. Não saía para nada. Não ia à missa, não votava, nem a zona freqüentava. A manutenção do casebre e o suprimento da dispensa estavam por conta de Gabriela.

Ah, que tipo a Gabriela! Preta como noite sem lua, alegre. Desinibida, falava o que lhe dava na cabeça, não tinha papas na língua. Durante a semana, além de tomar conta do casebre de Samuel, trabalhava num mister que só ela desempenhava: vivia de vender areia finíssima para ser usada na limpeza de metais, para arear panelas, etc. Como só ela sabia onde encontrar essa areia, mantinha a exclusividade do negócio.

Nesses dias da semana, Gabriela trabalhava, esforçava-se, ajuntava seu dinheiro. Mas aos sábados e domingos, revelava-se outra Gabriela. Gostava da cachaça. Nas noites de sexta-feira começava a se embebedar. E ia direto pelos sábados e domingos. A ressaca só chegava às segundas-feiras.

Bêbada, vagava por toda a cidade Conhecia a vida íntima de todo mundo na pequena cidade e em cada quarteirão ia gritando o que sabia de seus habitantes:

— E aí, seu Calimério! Quantas deu essa noite? Vai vê que broxou na primeira, hein?

Ao passar em frente à casa paroquial:

— A benção, seu padre! Cumo é que tá a sopa dos pobre? Quarqué dia venho tomá essa gororoba aí.

Ao passar pela Rua Bemequer, onde estavam as casas das prostitutas, então era um despautério. Mexia com todas elas e declinava os nomes de todos os freqüentadores da zona. Onde ela conseguia tantas informações sobre as intimidades dos habitantes, ninguém sabia.

Eram duas personalidades numa só pessoa. Duas? Talvez três ou mais.

Tomava conta da casa de Samuel, do próprio Samuel (pois dormia com ele) e também do irmão, Joaquim Papo Doce.

Papudo como o irmão, Joaquim não se incomodava com o apelido, que, aliás, fora disseminado pela Gabriela. Vivia de cultivar uma pequena horta, na parte mais baixa do terreno da ferraria. Diferente do irmão em tudo: magro, baixo, mourejava na horta, mas saía todas as manhãs para vender a produção: pés de alfaces, amarrados de almeirão, jiló, quiabo, pepino, tomate, cebolinha de folha, salsinha. Asseado, estava sempre sorridente e a freguesia gostava de seus produtos, sempre frescos e viçosos.

Não se incomodava nem mesmo com os boatos a seu respeito e de seu irmão: diziam que os dois dividiam a cama com Gabriela. Se era verdade ou não, ninguém provava. Aliás, ninguém tinha nada com isso, mas a maledicência tinha curso acelerado na pequena cidade.

E assim viviam harmoniosamente os três. Com um porém. Gabriela tinha seu comércio de areia, cuja fonte só ela sabia. Tinha o maior cuidado quando se dirigia para a enorme voçoroca situada além da pedreira. Para adentrar o enorme valo, tinha de passar pelo bosque do Chico Miranda, que diziam ser assombrado pela alma do infeliz Chico, assassinado debaixo das árvores frondosas. Ninguém gostava daquelas paragens, nem mesmo os moleques, de ordinário exploradores de todos os lugares da região.

Levava uma lata de querosene, que trazia cheia de areia, equilibrada sobre a cabeça. Nessa voçoroca vivia, numa choça miserável, Zé Cabeça, mulato alto, desengonçado, que vagava pela cidade durante o dia. Sobrevivia de esmolas e, apesar de ser aparentemente sadio, sempre havia quem lhe desse dinheiro e coisas. A própria Gabriela dava-lhe algum dinheiro, quando ia pegar areia. Talvez lhe desse até mais do que dinheiro. Se ela falava da vida de todo mundo, quando bêbada, nada deixava escapar de sua vida particular.

Aos poucos, de mansinho, Gabriela foi trabalhando os dois irmãos:

— Intão, Samuel, cê tá precisando de um ajudante aí na forja. Trabalha que nem um condenado, num tem nem dia santo pra descansar. Arruma um ajudante, sô.

— Qual o quê, Gabriela. Quem vai querer fazer esse serviço pesado? Só eu mesmo é que agüento.

— Uai, gente, porque cê num experimenta o Zé Cabeça? O home é forte, tem disposição.

Noutra ocasião, com Joaquim Papo Doce:

— Joaquim do céu, cê tá cansado, home. Precisa quem lhe ajude nas capinas, no serviço mais pesado.

O verdureiro, mais cordato, parou com seu rastelo:

— Quem me dera. Mas num posso pagar ajudante não. Meu ganho aqui na horta é pouco, cê sabe disso.

— Ara, Papo Doce! Pega alguém que tá mesmo à toa, precisando de trabalho. Acho que o Zé Cabeça aceita trabalhá por pouco ganho.

Gabriela era boa de conversa, quando sóbria. Com pouca argumentação, convenceu os dois companheiros. Não demorou muito, eis Zé Cabeça trabalhando com os dois irmãos. Ora na horta, ora na forja e, por vezes, indo até atrás do bosque do Chico Miranda, buscar areia da fina para Gabriela.

A idéia de Gabriela foi excelente, o ajuste foi perfeito. Zé Cabeça passou a morar na pequena casa onde já viviam Samuel Papudo, Juca Papo Doce e Gabriela.

A maledicência é grande nas cidades pequenas. Dizem que, quando Zé Cabeça foi morar com os três, nem foi preciso comprar uma nova cama para o novo morador.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE – 16.SETEMBRO.2000

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 11/03/2014
Código do texto: T4724512
Classificação de conteúdo: seguro