Olhos de jabuticaba
Observava-a todos os dias, principalmente nos intervalos das aulas. Era negra, bem esguia, olhos de jabuticaba, mãos grossas e pés encardidos. Estava sempre solitária. Não me recordo o nome. Acho que era Karine ou Karina, ou alguma combinação dessas. Não importa. Ela contava 8 anos. Eu também. Depois de muito observá-la, fui me aproximando aos poucos.
Como era tímida e quase não falava, apenas sentava-se ao seu lado nas aulas, sem dizer uma palavra e, nos intervalos, como sempre notei que a pobre menina não possuía um biscoito sequer, oferecia meu lanche. Ela sempre aceitava. Mas sequer olhava para mim. Decidi ir mais longe. Comecei a perguntar-lhe dos pais, onde morava... Essas perguntas ininterruptas que crianças comumente fazem. Às vezes me respondia. Em outras, entrava em estado de transe, observando o nada.
Num dia de lanche compartilhado, enquanto mastigava o biscoito, um de meus dentes caiu. Tive certa dificuldade para retirá-lo da boca. Ela olhava-me espantada. Quando consegui retirá-lo, começou a sorrir pra mim. De início foi um sorriso tímido, meio incerto. Ao final, éramos duas crianças dando gargalhadas, uma segurando o dente na palma da mão e a outra, o pacote de biscoitos. Foi a primeira vez que a vi realmente olhar em meus olhos. Acho que aquele foi o dia que estreitamos nossa amizade.
Sentindo-se mais confiante ao meu lado, começou a contar-me sobre sua vida. E foi então que percebi o porquê do corpo desnutrido, das mãos grossas e dos pés encardidos. Karine ou Karina trabalhava em uma fazenda. O pouco que conseguia era para ajudar aos pais e aos três irmãos menores. Talvez fosse por isso que não se sentisse muito confortável em criar amizades. Talvez fosse vergonha da vida que possuía. Não sei.
O fato é que essa história mexeu comigo. Eu era uma criança que não possuía muitas abundâncias, mas sempre tinha uma boa comida, roupa limpa e brinquedos. Não precisava trabalhar. Ao contrário, meus pais davam-me o troco em moedas, o qual terminava em meu cofrinho de porcelana. Sempre achava que, um dia, aquele dinheiro se transformaria em uma fortuna e eu poderia fazer algo grandioso. Sonho de criança.
Ao término de mais um dia de aulas, quando terminava de guardar meu material escolar, foi que notei que Karina ou Karine mal tinha um caderno. Os poucos lápis e giz de cera eram já bem gastos. A pasta era um dessas de plástico, com as laterais já deterioradas. Essa menina mexia cada vez mais comigo. Lancei a mochila aos ombros e rumei ao portão de saída, onde minha mãe já se encontrava. Ela logo percebeu que havia algo errado comigo e começou a questionar-me. Apenas fingi que não havia escutado.
Ao chegar em casa, encarei meu cofrinho e, sem delongas, joguei-o ao chão e contei as moedas. Obviamente que ainda não era uma fortuna e tampouco daria para fazer tudo o que planejava. Assim, comecei a juntar todo o material escolar que não mais utilizava e, com o pouco dinheiro, fui ao armazém ao lado de minha casa e pedi à Dona Cida o restante do material que precisava. Fosse ou não uma fortuna, o fato é que o dinheiro havia me ajudado a completar meu plano. Eu mal podia conter o sorriso.
Estava ansiosa para mais um dia de aula. Apressadamente, entrei na sala de aula, sentei-me em meu lugar de costume e deixei a surpresa ao meu lado. Quando Karina ou Karine veio para sentar-se, achou que aquele fosse meu material e pediu que eu retirasse. Olhei bem em seus olhos, me abri num grande sorriso e disse-lhe que aquele material era um presente. Não sei como descrever a cena que se passara. Sei apenas que jamais havia visto jabuticabas tão brilhantes.
Muitos anos se passaram e lembro-me de cada cena, em seus mínimos detalhes. O mais curioso, como disse, é que mal me recordo do nome daquela pobre menina. Sei, meu dinheiro jamais virou uma fortuna. Mas quando vejo uma jabuticabeira, sempre me lembro da menina negra, esguia e com os olhos de jabuticabas mais brilhantes que poderiam existir na Terra. Foi um momento grandioso.