A Curiosa Garota dos Olhos Cor de Noite (ou O Conto da Crônica)

Um homem caminha cabisbaixo pela negra rua. Um fio de luz amarela lhe cai à cabeça; Seus passos são ritmados e arrastam um cansaço que as palavras não são capazes de descrever.

Atrás dele, uma pobre família carrega nos braços um tesouro. Um tesouro que apenas a morte lhes pode tirar. Trazem nos olhos e nas vozes uma felicidade imensurável... Quem pensará em ladrões quando se tem a felicidade tão perto?

Do alto de um prédio, uma moça fumava seu cigarro. Mentolado. Porque achava que tudo na vida precisa de um pouco de frescor. Estava ali desde as 17 horas, quando o raio de sol deixou sua sala de estar. Aceitou isso como um convite para um grande espetáculo, deixou a preguiça no sofá, junto com o gato, e foi à janela. Jogou o peso dos ombros no parapeito da varanda do nono andar. Respirou o oxigênio até o pulmão não suportar mais. E deixou ir... assim como aqueles amores que enraízam no peito. Bateu as cinzas que acumulavam na ponta do cigarro. Deveriam elas ter caído do asfalto, somar as cinzas com o cinza, mas não. O vento levou...

Um semáforo, logo abaixo daquela varanda, se tornara rubro mais uma vez. Trinta segundos para os automóveis partirem, seguirem seu fluxo. Fixou o olhar em um carro azul, será que o dono (a) gosta de algodão doce? O sinal enverdeceu e o curso prosseguiu. Por que tão rápido? Ela queria gritar, queria saber a resposta. Quando piscou os olhos e tragou a droga mais uma vez o automóvel já ia lá na esquina... não deu tempo de saber a resposta, muito menos de perguntá-la. A garota, então, levantou a face para o céu e no meio do caminho um pássaro lhe passou rapidamente à vista. A ave não batia as asas, ela cortava o ar, como um foguete rumo ao chão. Por fim, bateu as ditas asas e desapareceu no horizonte, o mesmo fez o sol. Naquele momento, a negritude caía e tomava conta do céu, gotejava estrelas por trás dos prédios. Olhando para baixo, mais uma vez, os carros continuavam parando e seguindo. Pensando melhor, e procurando a carteira de cigarros, tudo passa tão brevemente. Tudo segue. Flui.

Os olhos de jabuticaba decidiram mudar o foco. Observava a calçada do seu prédio como quem busca um instante – bom ou ruim. Um poste iluminava a escuridão que parecia até ter transbordado dos seus olhos, mas era só um devaneio. Um homem caminhava cabisbaixo e a luz do poste lhe pousou na cabeça por alguns segundos. Parecia ele cansado, talvez tenha trabalhado demais, talvez vivido de menos, talvez carregasse muito peso n... na mochila. Seus longos passos levaram-no até a esquina, e na esquina, fizeram-no desaparecer. Pouco depois, passou pelo mesmo poste, pela mesma calçada, um outro homem. Acompanhado, dessa vez. Trazia no colo uma garotinha vestida de cor de rosas e ao seu lado a aparente esposa. A moça dos olhos cor de noite imaginou, pela felicidade que carregavam, que estavam a voltar de um passeio, quem sabe sem nenhum tostão no bolso. É, provavelmente, sem nenhum tostão no bolso.

Súbitos disparos cortaram a monotonia sonora da noite. Os mornos olhos foram tomados pela curiosidade, aqueceram-se. Não só os negros olhos da moça, os todos olhos. Sentiu vontade de correr. Largou a carteira de cigarros no chão e foi. E se tivessem atirado no pobre homem, ou na garotinha? E se a mãe chorasse? E se estivesse muda? E se o pesado rapaz tivesse encontrado, enfim, a paz? Eu preciso saber. As sirenes já ensurdeciam os tímpanos e ela ainda corria as escadarias do prédio – não teve paciência pro elevador – com medo de cair (a gente sempre tem medo de cair com coisas ligeiras). Quando alcançou a calçada, e passou por debaixo do poste de luz, deveria ter pensado em quem lhe assistia neste exato momento, porém não. O coração estava em fluxo, assim como os carros, era incapaz de raciocinar... E depois de tanto correr, ao chegar ao local, viu a cena: um círculo de pessoas curiosas – não tanto quanto a tal moça – de bocas cobertas pelas mãos... espasmadas. Um pouco mais ao lado, os policiais prendiam o meliante: um rapaz, de longas pernas, que carregava uma mochila enorme. No chão jazia um corpo: um pássaro – impedido de voar.

Os doces e negros olhos de jabuticaba regressaram, tristes, por fim, ao apartamento. A moça passou pelo poste, nada pensou. Atravessou a entrada do prédio, como um foguete. Apertou o botão do elevador. Adentrou o ninho. Voltou ao sofá. Acariciou o gato que não havia saído do lugar. Procurou a carteira de cigarros. Viu-a jogada no chão. Acendeu um. Mentolado, pois tudo na vida precisa de um frescor... Apreciou o quase silêncio...

Bárbarah Alves
Enviado por Bárbarah Alves em 10/03/2014
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