A Garrafa de Cerveja

Chego à estação dos barcos.

Compro o bilhete e passo a cancela.

Sento-me à espera do transporte para a outra margem.

Observo o rio, daqui. Deste lado.

Está manso.

É quase noite e o céu está prateado em contraste com as luzes amarelas dos candeeiros em redor.

Pequenas ondas passam com as gaivotas nelas deitadas a nadarem devagarinho, como se vissem o mundo daquele prisma.

As portas metalizadas são abertas. Existe um som típico de aviso e uma lâmpada a luzir.

Levanto-me e dirijo-me para o barco branco e azul.

Caminho por entre as gentes cansadas e adormecidas. Cabeças baixas, olhares torpes, o vento a sacudir-lhes os cabelos, separando-os dos ganchos, das fitas e dos elásticos.

Tenho as mãos dentro dos bolsos do blusão alcochoado. É da cor do vinho esse blusão.

O queixo está entre a gola e o frio transmitido à beira do cais.

Entro no barco, a seguir a tantos outros e outras. Sento-me, perto da porta.

Ajeito as pernas no acento e o rabo na maciez do banco.

Olho para a janela para me afastar de Lisboa.

Ouço o apito da partida.

Fecham-se as portas e um marinheiro atravessa o caminho mesmo ao meu lado.

Encosta-se ao balcão do bar e pergunta qualquer coisa à rapariga que lá se encontra, vestida de farda, com olhos mortiços e a cara cheia de rasgões do trabalho. Tem olheiras fixas nos olhos verdes.

Continuo a olhar através da janela para a cidade escura. Agora muito escura, atravessada pelo rio morno, neste momento fraco. Já não vejo as gaivotas...

As nuvens viajam como o barco. Em ondulações feitas de música, como as colunas de uma aparelhagem. Ora para cá. Ora para lá.

Vai meio vazio. O barco.

Poucas pessoas subiram para o primeiro andar.

Ninguém na casa de banho.

Uma garrafa de cerveja exposta em cima do balcão e alguém a cantarolar o fado.

Tem graça! O fado a ser cantado num barco. No meio do Tejo. Num início de noite feito de fim-de-semana terminado...

Não consigo observar nada para o outro lado, mas sinto o frio da água. O vento a soprar para o vazio da meia dúzia de passageiros que viajam comigo e se afastam de Lisboa.

Penso na cidade.

Cheia de movimento durante o dia de semana, na jorna habitual dos afazeres esquizofrénicos das notícias dos jornais, na rádio, nas televisões, no mundo da Internet, até.

Ninguém sabe para onde vai, basta seguir em frente, por ordens de um holofote a mostrar a luz do caminho falso.

O gramofone entra em acção e lá estamos todos nós a pegar nas malas e a ir...

Até o som dos sapatos eu ouço.

Agora silêncio. Canta-se o fado num barco que vagueia como as gaivotas.

Bebe a cerveja este homem sem guitarra. Tem voz melodiosa.

Pousa a garrafa novamente em cima do balcão.

Ajeita o casaco. Puxa-o para a frente, e enfrenta o touro da memória.

E lá vai um fadocas da Amália!

Gaivota...

Tenho as lágrimas quase, mas quase a desceram para o rosto, quando ele pára de cantar sem acompanhamento.

:_ Ora! Realmente isto cantado por ela é outra coisa...Obrigadinha pela cerveja. Vou-me sentar!

Entrega à rapariga uma moeda e nem espera pelo troco.

Estamos quase a chegar ao destino.

Afasto-me de ti, Lisboa, sempre a ouvir-te...

Isabel Máximo Correia

Lisboa, 13/11/2011

Isabel Máximo Correia
Enviado por Isabel Máximo Correia em 09/03/2014
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