A BANDA, AS CALÇAS E A ALVORADA
Seu Alberto era o regente daquela banda formada por músicos do lugar que, com seus instrumentos de sopro e alguns de percussão, animavam o coreto no largo da igreja.
Vez por outra, a banda fazia a alvorada acordando os moradores da pacata cidadezinha, fato que nem lhes provocava revolta, já que gostavam de despertar com aquela música passando perto de suas janelas. O maestro orgulhava-se de seus músicos e não perdia oportunidade para mostrar seu potencial de exímio clarinetista. Quando empunhava o clarinete e soprava a boquilha, aveludava as notas musicais de tal maneira, que até os passarinhos silenciavam para ouvi-lo.
Marchas e dobrados animavam o footing dos moradores que se juntavam, após a missa, na frente do coreto. Sob a batuta de Seu Alberto, a rapaziada da banda fazia sucesso no lugar e convites surgiam para apresentações nas cidades próximas.
Certa feita, a banda fora convidada para fazer a alvorada na vizinha cidade, Santo Antônio. Convite prontamente aceito, componentes organizados, a prefeitura cedera a jardineira para a pequena viagem. Para lá rumaram os músicos, já com fama de artistas e, dentre eles, os irmãos Toninho e Manoel.
Manoel tocava sax e Toninho, pistom. Toninho, o mais velho, era também bastante mais alto que Manoel e ambos ganharam roupas novas para a importante apresentação. Paletós e calças da mesma cor, para que não acontecessem as brigas costumeiras, provocadas por ciumeiras entre os dois. Tudo igualzinho para os filhos, esse era o lema da família.
Ao chegarem à cidade, hospedaram-se na única pensão do lugar para o pernoite, já que fariam o desfile musical pelas ruas de Santo Antônio ao raiar da manhã seguinte. Cutucados pela batuta de Seu Alberto, os rapazes acordaram e pularam das camas para se vestirem e aprontarem os instrumentos. Era chegada a hora.
Não havia energia elétrica na pensão e o lampião pendente oferecia luz fraca, apenas o suficiente para não ficarem totalmente às escuras. Vestiram-se como puderam, apalpando aqui e acolá, para encontrarem seus pertences.
Ao romper da aurora, perfilaram-se na principal rua da cidade e iniciaram a alvorada.
O dobrado era perfeito e os raios do sol reluziam nas flautas, flautins e clarinetes. Ecoavam entre as casas os sons alvissareiros de trompetes, trombones, tubas e saxofones. O bumbo dava o compasso e os pratos retiniam, fazendo arrepiar os ouvintes. Era o auge das emoções eclodindo na madrugada e a poeira levantando em nuvens insufladas pela marcha daqueles pés na rua sem calçamento.
Manoel sentia algo estranho, além da emoção e do coração pulsando forte, na batida do bumbo. Ficava imaginando o que teria acontecido com ele. Teria encolhido de tanta emoção? Percebia que as barras de sua calça arrastavam na poeira e que pisava nelas. As mangas do paletó atrapalhavam seus dedos, cobrindo-lhe as mãos. O sol levantava, a música chamava homens, mulheres e crianças às janelas. Manoel sentia-se encolhido de emoção.
De repente, no claro do dia, olhou de esguelha para o irmão, que marchava e tocava altaneiro o seu pistom. Foi então, nessa olhadela, que viu as pernas da calça de Toninho na altura das canelas e as mangas do paletó quase nos cotovelos. Então descobriu o engano que cometeram sob a luz do lampião.
Não perderam o compasso e marcharam imponentes com suas calças trocadas, pedindo aos céus que a plateia não olhasse de seus joelhos para baixo. Ao final da alvorada, correram até um cafezal próximo e fizeram a troca de roupas, antes de voltarem para a cidade de origem.
Pediram aos pais que dali em diante não mais lhes comprassem roupas iguais e juraram que jamais voltariam a sentir inveja, um da cor da roupa do outro.
Dalva Molina Mansano
Março de 2014