O COROINHA

— Num quero e num quero !

— Mas, Daniel, vai ser bom, você vai com o Henrique. As freiras vão ensinar você a rezar a missa.

— Num vou e pronto!

Foi a primeira vez em que Daniel mostrou sua vontade. De natural obediente, não concordou em ser coroinha da capela do colégio. Não atendera nem mesmo aos pedidos e às promessas da Irmã Clara, que fora pessoalmente na casa de seus pais, solicitar a ajuda dos dois garotos na celebração das missas.

— Então o Henrique vai sozinho, irmã. — prometeu dona Natália, a mãe da dupla de garotos.

O que Daniel não falou naquela ocasião nem nunca contou para ninguém era o medo que tinha de entrar na capela do colégio. Era uma sensação inexplicável, tivera na primeira vez em que fora acompanhando a avó numa reza de terço do mês de maio, mês de Maria. Quando viu pela primeira vez a pintura daquela freira rodeado de anjos sentiu o maior pavor. Quis sair da capela, mas era de noite e não tinha coragem de ficar lá fora, sozinho. Agüentou firme ao lado da avó, enquanto a ladainha, as ave-marias e padre-nossos se sucediam numa monotonia sem fim.

Os olhos não se despregaram do painel: uma freira, vestida igual àquelas que estavam ali na capela, ajoelhada numa nuvem, cercada de anjos. Daniel não entendera nada. Sentiu um pânico, falou com a avó: "tou com medo!" mas a doce velhinha só fez apertar sua mão. Ainda bem que as mãos da vovó Beatriz eram quentinhas, aconchegantes. Daniel continuou com seu medo, os olhos pregados na pintura no fundo do altar.

Por causa deste medo, não queria ser coroinha na capela do colégio. Henrique foi sozinho. De nada valeram as súplicas da mãe. Joviano, pai compreensivo, não insistiu, sabia que aquilo era passageiro. Daniel seguia sempre o irmão, não ia ser agora que os dois iam se separar.

O painel que tanto aterrorizara Daniel era de autoria de Ângelo Zancaro, um pintor da pequena cidade, verdadeiro artista de pincéis e murais. Inúmeras casas ostentavam nos seus alpendres paisagens e cópias de quadros famosos, feitos com elaborada arte pelo autor. Claro que Daniel nada sabia a esse respeito. Ficou sabendo muitos anos mais tarde.

Quando perguntou ao pai que desenho era aquele, veio o esclarecimento na maneira tranqüila de seu Joviano.

— Aquele desenho é uma pintura, representa a Beata Paula Frassinetti subindo ao céu. É a pintura mais linda que temos nesta cidade.

Daniel, entretanto, não revelou seu medo da pintura.

— Num quero ir. — repetiu.

— Tá bom, não quer ir, não vai. Mas você não sabe o que tá perdendo. Até latim o Henrique vai aprender para poder ajudar na missa. E tem aquela batina vermelha, é uma beleza !

Antes de entrar no altar pela primeira vez, Henrique recebeu instruções sobre o ritual da missa, e teve de decorar todas as respostas às orações do padre. Quem lhe ensinou tudo, em pouco mais de uma semana, foi a Madre Alves, uma das vinte e tantas religiosas residentes no Colégio Paula Frassinetti.

O dia em que pela primeira vez ajudou na celebração foi num domingo, e toda a família foi assistir (menos Daniel: medroso, ficou dormindo em casa). Henrique vestiu a batina vermelha, a pequena sobrepeliz branca feita especialmente para seu porte miúdo. Estava temeroso e caminhava com cuidado ao se dirigir para o altar, levando o missal, na frente do padre Tito. Pisava firme, tinha receio de escorregar no piso de mármore, muito encerado, parecendo um espelho. Respondeu corretamente todo o intróito da missa, mudou o missal de um lado para o outro, na mesa do altar, sempre fazendo uma genuflexão ao passar na frente do sacrário. O máximo cuidado teve ao lidar com as galhetas, as garrafinhas com água e vinho, que deviam ser levadas para o padre no meio da missa e depois da comunhão. Elas batiam de leve uma contra a outra, revelando o tremor das pequenas mãos de Henrique.

Depois da missa, tomou café na sacristia: café com leite, dois pedaços de bolo e alguns biscoitos, um regalo ! Elogios da Irmã Clara, responsável pela sacristia, no seu forte sotaque de portuguesa:

— Pequeno Henrique, estás um santinho! Deus te abençoe e guarde.

E um forte abraço (Henriquinho ficou corado, quase que envergonhado) do Padre Tito, também acompanhado de elogios, que o garoto não se lembrou de agradecer: saiu correndo pela nave. Os pais, a vovó Beatriz e o tio Elpídio o esperavam à porta da capela. Mais abraços. Todos sorriam, orgulhosos de seu pequeno Henrique.

A resistência de Daniel em ser também acólito com o irmão mais velho começou a diminuir naquele mesmo domingo, quando todas as atenções se voltaram para Henrique. Até almoço especial teve. Dona Natália fez uma enorme travessa de arroz-de-forno, prato predileto de Henrique, substituindo a costumeira macarronada de todos os domingos. Tio Elpídio comprou duas garrafas de guaraná, seu Joviano abriu uma garrafa de vinho e o almoço se transformou num verdadeiro banquete.

A rotina da vidinha de Henrique mudou drasticamente. Agora tinha de levantar todos as manhãs às seis horas, lavar-se e trocar de roupa correndo, para chegar às seis e vinte, no máximo seis e vinte e cinco. A missa começava pontualmente às seis e trinta, secas e verdes, inverno ou verão. Felizmente estavam no fim do ano e o dia clareava bem cedinho. Fazia calor logo de manhã, era fácil deixar a cama. Era quem primeiro acordava, ia sem tomar café, tomava lá na sacristia.

Ainda tinha alguns meses de escola pela frente, era novembro e Henrique estava no terceiro ano. Daí que tinha de sair correndo da capela, após o café, pegar sua pasta com livros e cadernos ( preparada na véspera, Henrique era muito organizado) e chispar para a escola, que começava às sete e meia. Felizmente, a capela ficava a apenas uma quadra de sua casa, e o grupo escolar também era perto.

— Henrique, fala com Dona Marocas , pede para ela deixar você chegar atrasado na aula.

— Não precisa, mãe, dá tempo. Chego antes do sino tocar pra gente fazer a fila de entrada.

No fim do primeiro mês, uma surpresa: Irmã Clara entregou-lhe um envelope.

— Uma pequena recompensa pelo teu esforço. Tu és muito dedicado! Que Deus t'abençoe.

Henrique abriu de súbito o envelope. Dentro estava uma nota quase nova de dez mil réis !

Jamais tivera tanto dinheiro! Correu para casa, chegou afobadíssimo:

— Mãe, Pai ! Olha o dinheiro que Irmã Clara me deu! -- e abanava a nota na frente dos dois.

Daniel chegou de mansinho e olhou, dois olhos esbugalhados:

— Uai, assim vale a pena ser coroinha !

Na verdade, aquele foi o "argumento" que levou Daniel a acompanhar o irmão quando as férias chegaram. Parece que o medo pela pintura do mural da capela desvaneceu-se por completo. E na missa de Natal, celebrada por Padre Tito e Padre Damazo, ambos do seminário, estavam os dois irmãos Henrique e Daniel, ajudando na cerimônia, ambos em trajes especiais de gala, a sobrepeliz branca sobre a batina de casimira preta, quente e aconchegante.

Os dois garotos pareciam gêmeos. Loiríssimos, rostos sardentos, igualavam no tamanho. Henrique era miúdo e Daniel, mais novo pouco mais de um ano, era mais graúdo. Vestidos de coroinhas, eram idênticos. Mas a semelhança física entre ambos não conferia com as personalidades. A docilidade, a meiguice e a timidez de Henrique contrastava com o destemor e o espírito indômito de Daniel. E o fato de ser acólito nas missas na capela do colégio não contribuiu nem um pouco para suavizar seu jeito de ser.

* * * * * * * * * *

Durante o mês de maio comemorava-se com muita ênfase o Mês de Maria. As irmãs se desdobravam na celebração, a padroeira da capela era Nossa Senhora Imaculada. Todas as alunas participavam. No primeiro domingo do mês era celebrada uma missa especial, com sermão do padre Tito. Depois do café, voltava todo mundo à capela para a cerimônia da Bênção do Santíssimo. E ainda na parte da manhã acontecia uma pequena encenação, uma peça de teatro apresentada pelas alunas mais desenvoltas. Tudo entre as freiras e as alunas, no salão nobre do colégio: naqueles tempos de missa em latim e recato religioso, as irmãs não se expunham muito ao convívio social.

O padre também era convidado para assistir ao teatro religioso. E levou consigo os irmãos coroinhas. As freiras estranharam um pouco a presença dos dois garotos, mas toleraram. Para os coroinhas, foi o máximo! No primeiro ano em que Henrique e Daniel assistiram à peça, tratava-se de três pequenos pastores que se abrigavam numa gruta e viram Nossa Senhora, que falava com eles.

— Foi a visão dos pastores de Fátima. — Padre Tito cochichou para os garotos, explicando o que se passava no palco.

Henrique extasiou-se com a beleza das personagens: todas alunas, com aquelas roupas coloridas, desenvoltas.

— Queria que o senhor visse, pai. Cada menina mais bonita que a outra ! - O comentário era de Daniel, novinho e tão afoito !

Durante o Mês de Maria havia a reza do terço, com a ladainha cantada em latim pelo coral das alunas e irmãs. Dava sono, muito sono. O padre chegava na hora da Bênção do Santíssimo, mas os coroinhas tinham que chegar antes, a fim de preparar o turíbulo para a queima de incenso. Irmã Clara trazia um vaso de barro cheio de brasas: colocadas no turíbulo, tinham de ser mantidas vermelhas, mas não podiam pegar fogo. O balanço do turíbulo tinha de ser equilibrado: nem tão rápido, para que as brasas incandescessem, nem tão lento, a ponto de as brasas se apagarem. Uma técnica especial tinha de ser desenvolvida.

No fim do mês, o encerramento: após a missa, uma procissão (sempre de freiras e alunas, nenhum elemento estranho) pelos corredores, pátios e terrenos do colégio. De homem (e assim mesmo, nas suas funções sagradas) só o padre e os coroinhas. Em alguns recantos eram colocados vasos de flores, enfeites diversos, e uma aluna "vestida" de anjo permanecia imóvel como um santo em seu nicho. Eram escolhidas as meninas mais bonitas para permanecerem nos nichos, imóveis, etéreas, sérias.

-- Padre, por que as meninas que ficam de anjo são tão sérias? Anjo não ri? - Daniel perguntava, irreverente sem saber.

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Daniel " abandonou a batina" logo que terminou o grupo escolar. Henrique continuou sendo acólito, mesmo após ingressar no ginásio. Como o ginásio era distante de sua casa e do colégio, conseguiu com o Irmão Miguel uma tolerância de alguns minutos na chegada para a primeira aula.

Foi por essa época que um dos cachorros que vigiavam os terrenos do colégio entrou pela sacristia e chegou ao altar.

— Puxa vida! — Henrique conta para o pai. — Um baita cachorro preto, eu ajoelhado ali e passa por mim, chega perto do padre. Ele levou o maior susto, mas continuou rezando o evangelho. Eu, com um medo desgraçado, e o cachorrão rondando o altar. A Irmã Clara fazia uns sinais pra mim, me mandando pegar o cachorro. Mas cadê coragem?

— E por que ela mesma não pegou o cachorro?

— Uai, pai, mulher não pode entrar no altar quando o padre tá rezando a missa. Cê num sabia?

— Mas nesse caso... e então, quem pegou o cachorro?

— Sorte que o cachorro era manso. Eu fiquei quietinho, ajoelhado ali no meu lugar. Demorou até que apareceu o seu Bepe, o que toma conta da horta e do jardim. Foi ele que chamou de longe o cachorro, "vem cá, Tição, vem, vem! " e o cachorrão obedeceu. Saiu. Mas que medo, cruz credo !

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Henrique, aos doze anos, ainda era mirrado. Mas algumas irmãs tentavam encontrar um garoto menor para ajudar a missa.

— As irmãs pensam que o Henrique tá muito taludo pra continuar sendo coroinha. Pensam que ele vai desviar a atenção das meninas. Ah, ah ! Tirar as garotas do sério. — Comentário irreverente do seu Joviano, que era de rezar mas não era de fazer carolices.

— Uai, quando elas arrumarem outro, eu num faço questão de continuar. -- Prometia Henrique.

Mas não se arranjava um coroinha tão fácil, mesmo naqueles tempos em que o espírito religioso era acentuado nas famílias católicas. Por isso, Henrique foi ficando, foi ficando.

As freiras tinham razão.

Henrique estava no segundo ano do ginásio, tinha treze anos e era o quinto ano em que continuava como acólito. As batinas estavam curtas, davam pelas canelas. Houve um dia em que Henrique calçou a meia só num pé, quando vestiu a batina viu o esquecimento, não dava tempo de voltar em casa. Foi assim mesmo, que vergonha sentiu ! Felizmente, era período de férias, não tinha nenhuma aluna assistindo à missa.

Começou novo ano no ginásio e no colégio. As alunas internas assistiram, pontualmente, à missa do primeiro dia de aula. Era obrigação para a internas a assistência à missa diariamente. Havia todo um ritual, as meninas entrando em fila dupla, ao som de uma música cantada pela Irmã Catarina, maestra do coral.

Henrique observava pelo vão da porta da sacristia. E entre as novas alunas, quem Henrique descobre? A Maria Cecília, a linda, a meiga, a sua "paixão" do grupo escolar. Ele e ela foram colegas no primeiro e no segundo ano . Ela era uma criança, suave por quem ele sentiu um grande afeto logo nos primeiros dias de aula. Muito tímido, sem coragem nem oportunidade, Henrique foi guardando e escondendo seu sentimento pela doce Maria Cecília. Até que no final do segundo ano, a família mudou-se para uma cidade vizinha, e Henrique jamais tornara a ver ou tivera notícias da menina de seus sonhos.

E agora, lá está Maria Cecília, a linda, a meiga menina transformada numa bonita garota de olhar cândido e doce sorriso. Eles se reconhecem. Entretanto, não têm maneira sequer de se cumprimentarem.

À mesa da comunhão, da qual Maria Cecília se aproxima todos os dias, trocam olhares. Henrique fica maluco, dá tratos à bola, tentando descobrir um meio de falar com a garota. Não tem como. E para seu maior sufoco, para acabar de vez com suas esperanças, chega o aviso da Irmã Clara:

— Henrique, já arranjamos outro garoto para ser coroinha!

Que surpresa! E que tristeza !

Vítor é esperto, aprende depressa. Em menos de 15 dias, já sabe de tudo, as respostas em latim, o manuseio do turíbulo, abrir o missal nas páginas certas.

No último dia, um domingo, Henrique está triste e amuado. Depois da missa despede-se da Irmã Clara, do Padre Rogério (novo capelão do colégio) , dá um tapinha no ombro de Vítor e sai pelo centro da capela.

Dando as costas para o altar, é como se quisesse manifestar toda sua mágoa e seu descontentamento: na hora em que as coisas parecem engrenar, é afastado bruscamente, destituído de suas funções.

Sai da capela pisando duro, nem faz a genuflexão final. Está de mal com as freiras, com o capelão, com os santos no altar e até com a Beata Paula Frassinetti subindo aos céus.

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ANTONIO ROQUE GOBBO = Belo Horizonte - 5 de julho de 2.000

Conto # 34 da série Milistórias

Publicado em “A Babel da Torre”, vol. 2 da Coleção Milistórias.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 06/03/2014
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