A PALHETA VOADORA

— Vamos, já estamos atrasados ! — grita do quarto Dona Carmélia, acabando de abotoar as mangas compridas de seu vestido escuro.

— Humm! . Como estamos elegantes ! — É o comentário de seu Renato, ao ver a esposa nos trinques. Elogioso e sarcástico, ao mesmo tempo.

— Deixa de besteira, homem ! Jair, Sérgio, vamos! Ai, Jesus ! O compadre Cesarino já está aí na porta faz um tempão, esperando a gente.

Na verdade quem está por último é ela mesma. Os meninos já há muito estão sentados nos degraus do alpendre, arrumadinhos. Foram os primeiros a ficar prontos, arranjados pela própria mãe: Jair tem 6 anos, Sérgio é o mais novo, tem quase cinco. Ambos do mesmo tamanho e tipo, passam por gêmeos. Para aquela ocasião festiva vestem-se do mesmo modo : estão trajando um conjunto de calças curtas azul-marinho, de suspensórios, e camisas brancas com amplas golas de marinheiro. Usam pela primeira vez os chapéus palhetas que Madrinha Neuza lhes trouxera de S. Paulo.

— Bem, aqui vamos nós ! — Abrindo a porta do Fordinho "29, seu Renato procura ser animado, embora este não seja o seu natural. De ordinário muito sisudo, pouca disposição tem para essas saídas, ainda mais em dia de semana. Queria mesmo é estar na sua marcenaria, trabalhando. Não gosta de sair de casa. Se não fosse pela insistência do compadre Cesarino, seu Renato não iria à inauguração do campo de aviação.

— Vamos lá, cumpadre. Vamos ver esse tal de teco-teco. Vai descer no campo pela primeira vez. É a festa de inauguração.

Entram no pequeno veículo e se acomodam como podem: seu Renato na frente e Dona Carmélia com os meninos no banco de trás. Cesarino, hábil motorista, liga o motor, engrena a marcha e lá vão todos, rumo ao campo de aviação.

A inauguração do campo de Aviação era esperada há alguns meses. O tempo era de guerra, a terrível Segunda Guerra Mundial e o governo de Getúlio tinha incentivado a formação de inúmeros aero-clubes, a fim de despertar o entusiasmo dos homens para aprenderem a pilotar aviões e eventualmente participarem do esforço de guerra das forças aliadas. A pequena cidade de São Roque da Serra foi uma das primeiras cidades do interior a ter o seu aero-clube, graças ao entusiasmo e esforço do Professor Mário Novais, que já tinha um brevet , já sabia pilotar pequenos aviões monomotores.

Durante o percurso Dona Carmélia, de natural muito conversadora, falava mais ainda do que o usual, excitada pelo evento e se dando ares de importante dama.

— Ai, Jesus! Não sei se vou dar conta de chegar até lá. Tenho medo dessas coisas. E esse tal de teco-teco é grande, Renato? Cuidado, compadre Cesarino! Seu automóvel consegue atravessar o areião da estrada? Jairo, fica quieto, não debruça na janela!. Ai, Jesus ! Sérgio, segura a palheta no colo.

Falou tanto que seu Renato, pacato e tolerante, não agüentou.

— Pára, Carmélia ! Fica calada um pouco. Não perturba o compadre na direção.

A prefeitura aplainara o terreno e fez a pista de terra. Os sócios do aero-clube construíram às suas expensas o hangar e o governo federal doou o avião para o treinamento de novos pilotos. Enfim, eis o dia da inauguração do Campo, com a chegada do pequeno monomotor.

Ao se aproximarem das imediações do campo, já não havia lugar para estacionar e Cesarino foi obrigado a parar seu carro um pouco longe do local, onde já estavam uns três ou quatro automóveis estacionados. Desceram todos, o chofer fechou as janelas, desenrolando as lonas que mantinham o carro fechado, e se dirigiram para as proximidades do hangar, integrando-se à multidão que já se formara.

— É engraçado este campo, compadre. — Cesarino comentou para seu Renato. -- Começa lá embaixo e vem subindo o morro.

O olhar crítico de Cesarino, engenheiro formado em faculdade de S. Paulo, observa a situação imprópria da construção do campo de pouso: o hangar no alto duma colina, a pista descendo colina abaixo, uma disposição nunca vista para um campo de pouso. Mas, enfim, no meio da morraria que cercava a cidade, foi o terreno que o Professor Mário Novais conseguira em doação da poderosa família Mendes Souza.

A multidão estava reunida na cabeceira do campo, em frente ao hangar. Uma jardineira com as autoridades se dirigia lentamente, no meio do povo, para os lados do enorme barracão. Mas o povaréu não abria uma brecha, aglomerava-se ao redor do veículo como formigas em torno de um pedaço de doce.

A jardineira empacou bem no meio da pista. Pela porta aberta desceram os ilustres da cidade. Palmas, movimentação ao redor dos maiorais.

— Com licença. Dá Licença? — Cesarino foi abrindo caminho seguido por seu Renato, Dona Camélia e as crianças. Queriam chegar perto do ônibus, que centralizava a atenção do povo.

— Sérgio, Jair! Segurem na minha mão, senão vocês ficam perdidos,cruz-credo! — Dona Carmélia aflita prende seus pimpolhos. — Renato, devagar! Que horror, quanta gente! Ai, Jesus ! Meninos, segurem suas palhetas. Cuidado pra não deixar cair no chão.

— Calma, Carmélia, calma! — Implora seu Renato à mulher.

Um ponto amarelo foi visto no céu, aumentando à medida que se aproximava da cidade e do campo.

— Olha lá! Lá vem ele! — gritos subiram da multidão.

Logo, logo, o ponto tomou forma do avião. Um frisson percorreu a multidão. Todos os olhos cravados no pequeno aeroplano, que deu uma volta sobre a cidade antes de dirigir-se ao campo de pouso.

O povo se animou mais ainda. O aviãozinho veio descendo, descendo, rumo ao campo. Dirigiu-se para o fim da pista. Fez intenção de aterrissar, mas ao chegar ao meio da operação levantou o bico e passou sobre a multidão, num vôo rasante. O piloto fazia gestos frenéticos para baixo, para o povo, que gritava, batia palmas e avançava mais para a pista.

O barulho do motor era ensurdecedor. O pé-de-vento causado pela sua passagem arrancou chapéus, levantou saias, despenteou os cabelos dos mais elegantes. Mas ninguém entendeu os sinais do piloto, pedindo que a multidão e o ônibus saíssem da pista, a fim de que ele pudesse aterrissar.

— A jardineira! A jardineira! — Alguém mais esperto gritou. Mas o aviso foi entendido erradamente, o povo começou a cantar a musica de sucesso no momento:

" Ó Jardineira por que estás tão triste? Mas o que foi que te aconteceu?

Foi a Camélia que caiu do galho, deu dois suspiros, depois morreu. "

Foi a Camélia que caiu do galho...

A multidão entrou em delírio. Alguns se puseram a saracotear . Lá vem de novo o teco-teco tentando nova aterrissagem, que ficou mais difícil ainda. Novo vôo rasante, novo vendaval, poeira , chapéus ao léu. Sérgio se descuidou e lá se foi a sua palheta também para os ares.

— Mamãe, a palheta voou !

Acima do tumulto musical, a voz de Dona Carmélia soou como um trovão:

— Mas num te falei pra segurar a palheta ? Ai, Jesus, agora perdeu-se. Bem Feito! Presta atenção nas coisas, tonto!

Não se sabe como, alguém fez com que o povaréu, alucinado, deixasse o campo. A jardineira saindo devagar, circundada pelos assistentes, para um lado do hangar. Finalmente, o piloto teve condições de aterrissar o aeroplano todo amarelinho com as letras grandes nas asas e na cauda.

Seu Renato não estava nem um pouco empolgado com o acontecimento, ao contrário de Cesarino, que, entusiasmado, procurava chegar cada vez mais perto do avião. Dona Carmélia alugou os ouvidos do marido para continuar o destampatório com Sérgio, que perdera seu chapéu palheta.

— Nunca mais, nunca mais mesmo, ouviu, trago esses garotos nas festas! Eles deviam é ter ficado com você, Renato, assim não dariam tanto trabalho! Ai Jesus, esses dois ainda me matam!

— Ô Carmélia, não fica brava com o Sérgio. Aconteceu, pronto! Ele não tem culpa, foram muitos chapéus que voaram! Também, pudera, com aquela ventania !

A festa terminou ali, para seu Renato, Dona Carmélia e as crianças. Cesarino ainda queria ficar ouvindo os discursos, saber como fazer para ser piloto, mas dona Carmélia estava uma fúria.

— Não fico aqui nem mais um minuto! É gente demais pro meu gosto. Jair, segura seu chapéu, vê se não deixa ele voar! Sérgio não perde por esperar, vai ficar de castigo, ora se vai !

Pobre Serginho! Além de perder a palhetinha, ainda está sujeito a um castigo. Seu Renato tinha pena do garoto, mas jamais enfrentaria a mulher, principalmente quando ela se achava naqueles momentos de exasperação.

O regresso do campo foi um tormento para seu Renato. Ficou de cabeça quente. Cesarino, entusiasmadíssimo com a aviação, não cessava de falar.

— Que máquina, cê viu, Renato ? E as proezas do piloto ! Sabe, vou me associar ao aero-clube — e prosseguia no blá-blá-blá nos ouvidos do compadre.

A mulher amolou durante todo o tempo os meninos, sim, aos dois garotos distribuía sua zanga e ameaças.

— Uai, mãe, minha palheta tá aqui inteirinha e limpinha. — Jair mostra orgulhoso seu chapéu, tentando escapar às ameaças de castigo.

Naquele dia almoçaram, tomaram o café da tarde e jantaram sob os despautérios de Dona Carmélia. Entre as refeições seu Renato refugiou-se no seu silêncio e na sua oficina. Os garotos escaparam para o quintal, subiram na laranjeira com seus estilingues e os bolsos cheios de pedrinhas. Mas de noite, quando dona Carmélia quis continuar se zangando com os meninos, seu Renato não agüentou.

— Pára, mulher ! Tá o dia inteiro falando nessa maldita palheta! Parece o fim do mundo! Nem o Serginho tá se incomodando com o sumiço do chapéu.

— Pra você é simples. Fica o dia inteiro metido na oficina, não sabe de nada que acontece na casa. Ai, Jesus, se EU não ponho disciplina, os meninos ficam que nem os filhos do Zé do Porto, aí na frente. Malcriados, uns pestinhas !

Seguiu-se virulento bate-boca. Seu Renato perdendo a calma e os meninos refugiando-se no quarto, fingindo brincar, mas de ouvidos à escuta do destampatório verbal entre o pai e a mãe.

Mesmo assim, não escaparam de uma descompostura final.

— E vocês, tão aí, fazendo o quê? — Dona Carmélia entrou de supetão no quarto, gritando. — Vão já-já pra cama, os dois !

— Mãe, o Jair me deu a palhetinha dele. Assim, a senhora num precisa ficar mais braba.

— E quem é que tá braba? Vão dormir, seus pilantras !

Marido e mulher foram dormir estranhados. As crianças amuadas meteram-se debaixo dos lençóis.

No dia seguinte...

Bem cedinho, logo depois do Pedrim Mentira passar na sua carrocinha distribuindo pães , alguém bate à porta.

Seu Renato já tinha se levantado. Atendeu. Era o Mané Tatamba, um tipo conhecido em toda a cidade, meio lerdo, tartamudo, passando sempre com uma cestinha debaixo do braço, cheia de revistas velhas que oferecia à venda. Trazia na mão a palheta de Sérgio, um pouco suja, mas integral, com a tira verde ao redor da copa e o minúsculo enfeite de frutinhas vermelhas. Seu Renato adivinhou tudo e antes que Tatamba murmurasse qualquer coisa, gritou na direção do quarto dos meninos:

— Serginho, corre aqui ! Olha o que o Mané Tatamba trouxe pra você!

Serginho chega, um raio, os olhos brilhando. Tatamba balbucia:

— Este chapéu é daqui ?

— É sim, Tatamba. É minha palhetinha que voou ontem no campo. Quando o avião desceu.

Mané Tatamba entrega a palheta a Serginho. Seu Renato agradece lhe Oferece-lhe um pão, ainda quentinho. Tatamba aceita e sai, balbuciando palavras incompreensíveis.

Na cozinha dona Carmélia passa o café e esquenta o leite.

— Que algazarra foi essa aí na porta da rua?

— Foi a palhetinha que tinha voado . . . — Serginho começa a explicar.

— Pois é, Carmélia, a palheta do Serginho. — Seu Renato interrompe o garoto — Ela tinha voado ontem, com aquele pé-de-vento e hoje desceu aí no alpendre. — Piscando um olho para o filho, seu Renato termina , em tom de zombaria:

— O vento levou, o vento trouxe de volta. Um verdadeiro milagre do seu "Ai,Jesus!", não é mesmo?

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ARGOS = Antonio Roque Gobbo-Belo Horizonte – 19 de Junho de 2000

Conto # 30 da Série Milistórias

Publicado em “A Babel da Torre”, vol. 2 da Coleção Milistórias.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 04/03/2014
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