Delirium Tremens
"Seria a existência o nosso exílio e o vazio a nossa pátria?" (Emil Cioran)
“Liberté,égalité,fraternité”.Há momentos em que vejo escritas essas palavras, outrora gritadas a plenos pulmões, ou apenas as mentalizo e medito sobre seu significado, o que causa tamanha revolta em minhas vísceras, principalmente o estômago, que sinto como se as fosse expelir, como a uma mentira indigesta e nociva. Pelo ecoam. Pelo que escondem.
Ideais, dizem. A favor de quem? Tudo parece tão ofuscantemente lindo quando posto em discurso, com veemente entonação, não deixando faltar palanque e público...
Sinto náuseas porque o mundo está podre; mefítica e gigantesca carcaça em que se resume, onde ali e acolá, povoações restritas de gusanos alimentam-se dela.
Os gusanos. Estes sim sabem viver no mundo de hoje e de sempre; são eles a evolução daqueles que pulverizaram o belíssimo ideal que me enoja aos quatro canto do mundo.
Me assombra e inquieta saber que (fugindo-se à concepções maniqueístas, sem sucesso) hoje não sabemos mais quem são os mocinhos e quem são os vilões, isso supondo-se que alguma vez o soubemos, mas deixemos de mortificar ainda mais esse espírito cansado. Suponhamos que sim, certa vez, como nos contos de fadas.
Existem os gusanos e a carcaça que, apesar de toda a dor, apesar dos gemidos lancinantes que emite ao ser mastigada por seus indesejados hóspedes, mantém-se viva, para desta forma, perpetuar um ciclo que parece sem fim.
E o que eu dizia mesmo? Ah, sim! Dizia que perdemos a noção do bem e do mal e aonde nos posicionar em relação à batalha que se desenrola diante de nós, porque é difícil encontrar verdades que bastem.
É difícil saber se entre gusanos existem aqueles defensores da carcaça de fato (porque existem, embora raros), que a querem ver sã, ou quando são apenas eles mesmos, transfigurados em altruísmo puro, pois são mágicos esses bichinhos. Usam truques de prestidigitação para impressionar a carcaça que geme ao mesmo tempo em que os gusanos inculcam em sua cabeça velha e corroída, que precisa de bens materiais para convalescer, que precisa do carro do ano, do computador do ano, do celular do ano, da roupa do ano, dos móveis do ano, da casa do ano, e recentemente, de perfeição genética. Pena nunca terem pensado em ter como meta e ideal, a capacidade de reflexão do ano, a habilidade crítica do ano. Nem se pode exigir.
A carcaça está presa num labirinto cuja paredes são de névoa. Nada a prende, nada a coage e no entanto, tudo a prende, tudo a coage, e o fio de Ariadne jogado para que ela encontre sua paz e recuperação, fim de labirinto, parece manipulado pelo mais sádico dos gusanos, que a faz perder-se cada vez mais no nada em vai gradativamente se tornando...Nulidade.
Não há prazer sem dor, a voz dos gusanos, que também atendem pelo nome de mídia, martela de forma ininterrupta. No pain, no gain. Talvez resuma, talvez aproxime a entrada da carcaça em mais um show de ilusões promovido pelos gusanos, que riem e riem e riem, o riso de quem um dia também foi carcaça, vendo-a debater-se na busca de ideias que não são legitimamente seus. Foram plantados, inseridos com violência em algum orifício recôndito, se é que, ainda pode-se distingui-lo em meio à pasta de carne, sangue e nervos, que milagrosamente ainda vive. Nada parece ordem, os bichinhos mágicos têm um truque para que não se perceba a moldagem.
Houve um tempo em que tive certos ideais. Ideais de meus pais, que em seu tempo, podiam divisar, mesmo que sutilmente, o contorno de uma busca coerente. É confortável a sensação de se estar no lugar certo, fazendo a coisa certa, como quando lutaram pelas eleições diretas.
Hoje, a parte da carcaça preferida pelos gusanos vai às ruas exigindo a volta da ditadura militar, a dissolução dos partidos políticos, a prisão de criancinhas: “Fez tem que pagar!”, ipsis verbis, a implantação da pena de morte: “Bandido bom é bandido morto!”, o que me leva a pensar que se se fosse levada a cabo, faltaria lugar para a acomodação de tantos cadáveres. Cadáveres dos pobres, dos marginalizados. Irei parar aqui, fechando a lista das reivindicações da carcaça com a exclusão do direito ao voto, outrora comprado com sangue, lágrimas e desvanescimento...Mas quem se importa? Tudo é tão efêmero.
Penso às vezes que o melhor ideal é não ter um ideal. Não se sofre, mas também não se goza, é uma espécie de insipida não existência, de anulação, de descanso. Mas é preciso prosseguir, mesmo sem querer, mesmo sabendo que não se viverá para ver os resultados da luta covarde, desigual. Para se deixar de ter ideais é necessário deixar de ter sentimentos, e isso ainda não é possível. Grifo “ainda”.
O que resta ao final é seguir a marcha lenta e dolorosa do mundo, debater-se com os espinhos da ignorância que crescem nas rosas plantadas pelos gusanos.
Talvez meu problema seja com a descontinuidade histórica, essa ingrata, que se opõe à minha espera de uma linha ascendente de evolução. Isso não existe, me consolo e resigno . Avançam-se dez passos, retrocedem-se vinte, ou vice-versa porque a ordem dos acontecimentos não altera o resultado: opressão, desigualdade, caos.
Isso mata aos poucos, tanto que, deixarei agora de falar sobre isso e encerrarei com a resposta que recebi de algo além de nós, uma concepção de ideal completamente aterradora e indigesta, mas mesmo assim, algo que vem de dentro e por isso merece ser ouvido:
“Ideal? Quem sabe um amanhecer plácido e silente, sem o barulho ininterrupto dos afiados dentes dos gusanos a mastigar a carcaça, (como você costuma chamar uma boa parte da humanidade), nem mesmo o resfolegar desta em resposta à dilaceração, nem nada. Vazio. Reset. E o meu abrir de olhos."