023-O CIRCO CHEGOU
— Turma, o circo chegou !
Notícia melhor não havia para a garotada da cidade. Não importa onde fosse armado, nem bem chegavam os caminhões lá estava a turma de garotos, curiosos por demais, andando para cá e para lá, os olhos arregalado na movimentação do material que ia chegando.
— Este circo é zoológico ! Olha lá o leão !
De fato, os circos que traziam animais selvagens: leões, ursos, elefantes, macacos, lobos se denominavam pomposamente de circos zoológicos. O local onde o elefante permanecia amarrado e ficavam as jaulas dos animais selvagens era imediatamente cercado com tapume de folhas de zinco.
Os garotos corriam em seguida pela cidade, com a notícia do circo. Tinham visto em primeira mão o tigre, o gorila ou o leão e exageravam na selvageria dos macacos ou no tamanho dos bichanos.
Lá pelas três da tarde, sempre debaixo de forte sol, a população era alertada da presença do circo na cidade, pelo "grande desfile": a banda vinha na frente; na carroceria do caminhão-chefe, os palhaços empoleirados pelas laterais faziam piruetas, molecagens atrevidas com moças e senhoras - quanto mais bonita a assistente, maior era o atrevimento dos engraçados mascarados.
Seguiam-se no segundo e( se o circo fosse rico) no terceiro caminhão, a equipe, a troupe de artistas: trapezistas, mágicos, acrobatas. Vinham em seguida as jaulas dos animais, puxadas por tratores ou por jipes avariados, testemunhas motorizadas da guerra recém-terminada.
Um dos palhaços, em cima da cabine do caminhão, na boca uma enorme corneta que se transformava em poderoso alto-falante ambulante, gritava:
— Hoje ! Estréia do Circo Zambrínio (ou Calábria, ou Moderno, conforme o nome) — Não percãããão ! Hoje, e somente hoje ! Espetáculo a preços populares. Animais, trapezistas, mágicos ! O palhaço Ventania e seus amigos Pé-de-Vento e Pó-na-Cara !
De noite, tudo arrumado, já acontecia o primeiro espetáculo. A magia de um mundo maravilhoso, de cores, movimento, truques, graça e suspense.
Todo mundo ficava fascinado, deixava-se envolver pelo encanto do circo. As crianças, de natural irrequietas, ficavam paralisadas pela ação perigosa dos trapezistas, pelos movimentos rápidos dos mágicos, pelo desafio do domador e seus animais selvagens.
— É, mas aquele pano preto esconde a mulher, a gente não vê, mas ela passa por debaixo e ... — Alguém dando uma de sabido, tentava explicar a mágica. Sua voz era abafada pelos assobios e gargalhadas dirigidas aos palhaços que imediatamente entravam dando cambalhotas, assim que o mágico e sua fulgurante companheira ( a linda "mulher do mágico") terminavam seu número.
O Circo Zoológico Irmãos Cabrini era famoso no inerior. Passava de três em três anos. Sua turnê era grande, viajava [por todo o interior de São Paulo, Paraná e chegava até Santa Catarina. Era enorme: dois mastros eram erguidos, a fim de sustentar a imensa lona. Foi montado, naquele ano de 1947, no Largo Santo Antônio. Ampla praça, muito maior do que o Campinho do Sandoval, onde normalmente eram erguidos os circos, parques de diversões ou acampamentos de ciganos.
A compnhia era grande, mais de cinqüenta pessoas. Os palhaços eram também os bilheteiros e tomavam conta dos animais. O domador dos bichos era ainda o divulgador, encarregado da propaganda local. Enquanto o circo era armando, ele ia à tipografia, mandava imprimir programas; ia ao jornal inserir anúncios, à emissora de rádio para anunciar o circo na voz bem modulada de Terezinha Augusta, a locutora.
Enfim, cada artista valia por dois ou três e era encarregado de tarefas durante o dia. O dono do circo, que iniciava todos os espetáculo com aquelas palavras super-snonoras "Respeitável Público !" transformava-se, durante o dia, num prosaico gerente, preocupado com a receita da noite anterior, cortando despesas, contratando e despedindo ajudantes, coisas assim.
— Cês viram que chique é a mulher do mágico? — Nenê Barbeiro comentava com seu colega, ambos trabalhando no "Salão Elegance", com seu Romualdo Careca — Que pernas, que par de coxas !
— Calma aí, seu Nenê. Ela é bem baixinha e, além de tudo, não dava bem pra ver as coxas, tava com meias colantes, não vi nada de especial.
— Cê tá mas é despeitado ! Fica distraído com as mágicas e depois diz que não gostou da loiraça. Cê bobo, sô !
Vinham os trapezistas e os acrobatas. Do alto dos dois mastros dependuravam-se trapézios, cordas, a parafernália necessária para os saltos mirabolantes. Uma rede era armada no picadeiro, que sugeria ainda mais perigo ao número de suspense: o salto mortal. Segurança extra ou apenas encenação. De fato, num dos espetáculo, a loiríssima Verônica escorregou das mãos do ágil Alaindelon e caiu na rede !
— Oh ! Ah ! Que horror! — um coro uníssono se ergueu da assistência. Alguns chegaram a se levantar. Mas, lépida e sorridente, a moça pula ágil entre as malhas da rede e nu átimo ei-la de volta às alturas, para repetir o número, agora completado com êxito e sob grande alarido de aprovação da multidão.
A instalação do Circo Cabrini no Largo Santo Antônio agradou muito à garotada, favoreceu sua curiosidade. Por se situar na parte urbana, era de fácil acesso. Alguns residentes das casas ao redor do Largo não gostaram muito, principalmente devido ao urro das feras e ao mau cheiro que vinha do cercado das jaulas. Os moradores temiam uma fuga das bestas e se acautelavam, fechando com trancas as protas e janelas de suas residências.
A parte zoológica do circo era cercada de folhas de zinco, a visão dos animais subtraída dos olhares curiosos dos que iam ver o circo. Uma renda extra era obtida pela venda de ingressos para visitação do recinto dos bichos. Quem quizesse vê-los durante o dia, tinha de pagar entrada — sem choro nem vela.
O último espetáculo da temporada do Circo Cabrini chegou ao final e o Diretor se despediu da platéia:
— Agradecemos a esta cidade, às autoridades pela acolhida. Encerramos hoje nossa apresentação e amanhã estaremos levantando nosso acampamento. Vamos partir. Obrigado! Obrigado a vocês todos! — distribuía beijos em todas as direções, com suas mãoes em luvas brancas. — Obrigado !
O circo esvaziou-se rapidamente, era tarde, quase meia-noite.
Muitas daquelas pessoas que assistiam ao último espetáculo já estavam em suas casas, outras a caminho. Moravam no bairros. Foi quando ouviu-se a sirena da Empresa de Luz. O som estridente que durante o dia servia para chamar seus empregados à lida diária, se tornava àquela hora plangente e assustador.
— Que será? — ansiosa pergunta Mariquita ao marido.
— Coisa séria, eles não tocam a sirene à toa, vou já na praça pra assuntar. — Sai o Zeca Mendes, apressado, vestindo o paletó.
No caminho encontra outras pessoas que, como ele, estão preocupados com o alarido noturno, aviso de desgraças.
— É incêndio ! — grita alguém. — Lá para as bandas do circo !
— O circo pegou fogo ? Meu Deus, vamos correr pra lá !
E correm. Homens, mulheres e alguns moleques engrossam a multidão que vai chegando no Largo Santo Antônio. É dali realmente que vem o clarão avermelhado, anunciando um incêndio de grandes proporções.
O pessoal do circo está numa azáfama, retirando do local as jaulas dos animais, que urram medonhamente. A lona do circo reflete o clarão do incêndio.
— Não, o incêndio não é no circo, não !
— É na serraria do Atílio Rembrini ! — Ouvem-se gritos na multidão.
No local de onde se alastra o fogo, muitos homens fazem um cordão humano, e passam de mão em mão baldes e bacias com água, tentativa vã de acalmar as chamas. O diretor do circo, acostumado a resolver situações de emergência, assume a brigada de combatentes do incêndio. Grita para um dos que estão por perto:
— Vê se consegue um caminhão pipa. E rápido !
Ao ouvir o comando, dispara o Dr. Ermelindo Guimarães, sisudo juiz de direito, transtornado e transformado num mensageiro de última hora, à procura do caminhão-tanque da prefeitura.
Centenas de pessoas acodem ai kicak, Sobram braços, falta água. O esforço revela-se inútil, o fogo queima como quer e a catástrofe entra pela madrugada. Durante horas o povaréu luta conta o desastre. Inutilmente. O máximo que se consegue é impedir que as fagulhas atinjam outros locais, principalmente a lona do circo ao lado, altamente combustível.
Seu Atílio, o dono da serraria e seus filhos são os maisbravos. Enfrentam as chamas e o calor como inimigo pessoal (realmente são). Chegam a se adentrarem por clareiras ainda não atingidas pelo fogo, no afã de combater o inimigo. Saem chamuscados. Ronaldo, um dos filhos, fica asfixiado pelos gases venenosos. É levado para o hospital.
Pelas três da manhã, o fogo extingue-se por absoluta falta de material combustível. Tudo que havia na serraria e no quarteirão ocupado pela indústria foi vorazmente devorado pelas chamas. Galpões, máquinas, grossas toras de madeira de lei, o escritório, tudo foi ao chão, virou cinza.
No meio da multidão, que não se cansa e não arreda o pé, corre um murmúrio, uma notícia se espalha.
— O circo vai ficar, o diretor vai promover um espetáculo para ajudar a família Rambrini.
O pessoal, cansado, esgotado, apenas escuta a mensagem, sem forças sequer para comentar ou se entusiasmar.
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No dia seguinte a população acordou ainda sob os efeitos entorpecentes do grande incêndio. Foi a maior catástrofe da cidade, o primeiro incêndio de verdade, de tamanha destruição.
— Desastre igual só o desabamento da torre da matriz. . . faz uns dez anos. Cês lembram? — O assunto era comentado no Salão Elegance.
— Que desgraça ! Justo agora que eles tinham instalado aquela serra de fita, que separava uma tora de uma só vez ! Eles estavam até bem de vida.
A serraria do seu Atílio e filhos era a maior da região. Fornecia madeira para muitas marcenarias, fábricas de móveis, construções, não só de São Roque da Serra, como também das cidades vizinhas: Catitó, Cuscuzeiro, Guardinha, todas eram servidas pela produção da indústria.
Além da destruição da serraria, há o problema dos operários que nela trabalham.
— Como é que a gente fica? Sem serviço? — indagam os trabalhadores.
Topor, desânimo, tristeza baixaram sobre os habitantes da cidade, solidários com a desgraça de seu Atílio e família. Desânimo total e geral.
Mas, de tarde, aí pelas quatro horas, a cidade é sacudida de seu torpor: de novo o desfile do circo ! A banda estrídula, os caminhões num buzinaço, lotados de artistas, os palhaços macaqueando-se ao longo do corso, as jaulas com os animais, agora tranqüilos.
O palhaço Ventania com sua corneta berra aos quatro cantos:
— Hoje : espetáculo extra ! Venham todos ao Circo Cabrini ! Em benefício da serraria ! Não Percããããããão !
Mais do que o espetáculo, a solidariedade lotou o circo naquela noite e nas duas que se seguiram, a renda tendo sido destinada para a família Rembrini, a fim de reconstruir a serraria destruída.
— Foram quinze contos de réis. Se não fosse aquele dinheiro... eu estava no chão, foi o circo que me levantou. — Mais tarde seu Atílio confessaria aos amigos.
Quando o circo, quatro dias depois do incêndio, finalmente deixou a cidade, foi sob um foguetório que nunca se viu. A multidão acompanhou a caravana de veículos até bem além dos últimos casebres da periferia da cidade.
Nova serraria surgio das cinzas. Seu Atílio e família aproveitaram e deram nova constituição legal à serraria, registraram uma nova firma, novos galpões foram erguidos, compraram modernas máquinas. Enfim, tudo novo. Até o nome foi recriado. Não se sabe quem deu a idéia. Dizem que foi o Doutor Ermelindo Guimarães, ainda impressionado pelo esforço da família e ajuda do pessoal do circo e da população da cidade. Nome muito apropriado.
No dia da inauguração, feita com missa solene, discursos e corte de fita, tudo nos rigores de uma festa de renascimento, lá estava a placa, bem alta, com as letras em azul, verde e vermelho:
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SERRARIA FÊNIX
de
ATÍLIO REMBRINI & FILHOS, LTDA.
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ANTONIO ROQUE GOBBO = Belo Horizonte = 16 de maio de 2ooo
Conto # 23, da série “Milistórias”
Publicado em “A Loucura do Cristal”, vol