DAVIDSON CONTRA HUGO ELIAS
-- Benedito Machado.
-- Presente!
-- Carlos Marangoni.
-- Presente !
-- Davidson Mitzak.
-- Presente !
O professor Oduties levantou os olhos da lista de chamada, olhou por sobre seus óculos engarranchados na ponta do nariz e observou o garoto da primeira fileira de carteiras: miúdo, o menor da classe, ruivo, cabelos como se espiga de milho fossem de tão loiros, o rosto pintalgado de muitas, muitas sardas, os olhinhos azuis e o nariz fino. Este deve ser descendente de judeu, pensou.
Prosseguiu a chamada:
-- Emílio Gallo.
-- Presente !
-- Francisco Marques.
-- Presente!
-- Hugo Elias.
Novamente o olhar do professor abandonou a relação de nomes e observou os alunos. Instintivamente, procurou o portador de um nome que tambem identificava a origem estrangeira. Ninguém respondeu.
-- HUGO ELIAS. -- A voz um oitavo mais elevada, a fim de ser ouvido até no fim da sala apinhada de garotos no primeiro dia de aula. Desta vez, veio a resposta.
-- Presente ! -- Uma voz grave, do fundo da classe.
E o professor identificou voz com aluno: o maior garoto da classe, talvez também o mais velho: moreno, basta cabeleira negra emoldurando o rosto de feições escuras. Pelo jeito, pensou o professor, deve ser turco ou sírio.
E sem querer observou novamente Davidson na primeira fileira. Um pensamento aleatório atravessou-lhe a mente, estabelecendo uma relação, estranha conexão entre Davidson e Hugo Elias. Bobagem, estou caducando, pensou o culto professor de História e Geografia.
Era o primeiro dia de aula no Ginásio Municipal de São Roque da Serra. A aula do professor Oduties foi tranqüila, ele sabia despertar a atenção (e espantar o sono) dos alunos. O sinal de término da aula foi dado pelo badalar do sino dependurado no corredor que ia do edifício principal - onde ficavam a diretoria, o auditório, a parte administrativa -- às salas de aula.
No pátio, pela primeira vez encontraram-se os alunos que vinham da classe de 1º ano, e os outros, os veteranos, da 2ª, 3ª e 4ª séries. Os gabirus, os alunos que estavam começando uma nova vida de estudantes, foram envolvidos pelos mais velhos, alguns já bem taludos, como Hugo.
Hugo era repetente, pela terceira vez, da classe de primeiro ano. Por isso destacava-se entre os seus colegas de classe e, já conhecido dos alunos da 2ª e 3ª série, fazia com eles um grupo separado, poderoso, temido pelos gabirus.
O que os principiantes não sabiam, mas logo iriam saber, era do terror que Hugo impingia a todos os alunos menores. Exercia uma violência que não chegava a ser física, impunha-se pela própria fama de terror, que tinha ultrapassado os muros do ginásio e corria entre os estudantes na cidade.
Davidson desconhecia essa fama de Hugo quando este aproximou-se do pequeno colega.
-- Davidson é o seu nome, né? Olhaí, gente o tamanho desse catatau de gente. Davizinho , cê é mesmo um toco de amarrar cavalo. -- Hugo ia falando para os colegas e para si mesmo, suas próprias palavras infundiam-lhe coragem para o que viria a seguir.
Davidson não gostou nem um pouco de ser tocado pela manopla de Hugo e, com um movimento rápido, bateu com sua mão delicada sobre o dedo indicativo de Hugo, avançado em riste sobre seu rosto.
-- Uai, garoto, tá me estranhando? Vamo, passaí essa linda canetinha -- avança Hugo, agora direto para o bolso da camisa de Davidson, onde brilhava a tampa de uma caneta-tinteiro, presente de sua professora Dona Marocas, na formatura do Grupo Escolar.
Sem conhecer o adversário que enfrentava, Davidson fecha a mão e manda um soco na direção da barriga de Hugo, na tentativa de afastar o incômodo colega. Mas erra o alvo, e acerta, sim, numa pontaria certeira , o baixo-ventre, aquela região mais sensível do corpo masculino.
Hugo abaixa-se, num urro de dor, pondo as mãos entre as virilhas. Um dos garotos grita:
-- Puxa, ele acertou o saco do Hugo! Corre, Davi, senão ele te pega e te mata !
Mas Davidson não tem pernas pra nada. Fica ali, estático, vendo Hugo contorcendo-se de dor, a seus pés.
Instantaneamente a notícia corre pelo pátio, chegam os outros alunos, formando uma roda ao redor dos dois: Hugo no chão e Davidson de pé, o punho ainda fechado, tremendo, não se sabe, de satisfação ou medo.
No mesmo momento, o pequeno garoto catalisa toda a simpatia dos outros alunos, quase todos vítimas, numa situação ou outra, do temível Hugo Elias.
A terrível revanche, esperada por todos, à saída do ginásio, no fim da última aula, não aconteceu. Davidson, que era pequeno mas não era bobo, ao se aproximar o fim da última aula, pediu licença para ir ao sanitário, e não voltou mais à sala de aula. Saiu zunindo pela porta principal do colégio e correu pra casa. Quando a aula terminou, Hugo Elias e seus comparsas não viram mais o garotinho.
A vingança não aconteceu. Inexplicavelmente, no dia seguinte, Hugo Elias não fez nenhum movimento na direção de Davidson, nem no pátio nem na saída, no final das aulas. O primeiro enfrentamento entre Davidson e Hugo Elias terminou com a consagração do primeiro e degradação do segundo. Davidson tornou-se popular entre os alunos, admirado e respeitado até mesmo pelos maiores. E Hugo Elias, a partir de então, perdeu todo seu poder.
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O tempo... Ah! O tempo, essa misteriosa dimensão que nós, habitantes da Terra, temos como referência básica para nossa existência, mas cuja compreensão nos escapa totalmente, o tempo que cura as dores mais profundas, que apaga as mágoas e diminui as diferenças, não foi capaz de aplainar o enorme fosso entre Davidson e Hugo Elias.
Vivendo sempre na pacata cidade, cada qual tomou seu rumo. Davidson seguiu a tradição do pai Jacob Mitzak: continuou exercendo o comércio de jóias e relógios na loja, e agiotagem na salinha dos fundos. Prosperou, aumentou a loja, adquiriu a casa ao lado e acrescentou duas portas à loja herdada.
Hugo Elias tambem cresceu. Não só em tamanho como em fama. Se já era grande quando menino de ginásio, tornou-se gigantesco ao atingir a idade adulta. Era filho de Murad Elias, imigrante sírio que incorporara rapidamente os usos e costumes dos habitantes de São Roque.
-- Terra abençoada essa aqui. Só tenho que agradecer a Deus. -- Não cansava de alardear sua satisfação e contentamento com a vida que ele, com seu esforço, ia levando, embora modestamente. Comerciante disposto e esperto, exercia a antiga atividade, quase em extinção, de mascate. Passava a maior parte do tempo viajando pelo interior do estado, indo até os mais distantes sítios, vendendo e comprando mercadorias. Usava um velho Fordinho 29, viajando por lugares nunca dantes percorridos por veículo motorizado. Saía com a mala cheia de bugigangas e voltava com o carro entulhado de fumo, queijos e outros produtos da roça que vendia para o Totó Miranda, atacadista de secos e molhados.
Como passava grande parte do tempo fora de casa, não deu a devida atenção e o exemplo salutar de pai ao seu único filho, Elias. Não acompanhou nem mesmo o crescimento do garoto, que de repente já era homem feito, um gigante com quase dois metros. Moreno escuro, puxando mais à mãe, a linda cabocla Marinalva que Murad descobrira lá nos cafundós de Jacuíta, a região mais remota da quantas havia percorrido o esperto mascate, e que se tornara sua esposa de papel passado e casamento na Igreja.
Mas, enfim, Hugo cresceu e começou a viajar com o pai. Logo, tinha já seu negócio próprio: comprou um caminhão Chevrolet para fazer transporte de cargas das fazendas para a cidade: sacas de café, cereais misturavam-se com queijos amontoados num canto da carroceria e rolos de fumo no outro canto. Conseguiu exclusividade para trazer tijolos da olaria do seu Olavo Barroblanco.
Levava para os sítios os mantimentos, arame farpado, sacaria vazia, essas coisas que os sitiantes compravam na cidade e ajustavam os serviços de transporte de Hugo Elias. Ágil, honesto, esperto, seu negócio prosperava.
-- Meu filho vai longe. Num demora, vamos ter uma frota pra fazer carretos. As fazendas estão aumentando, os cafezais tão produzindo muito. É o progresso, é o progresso! -- vaticinava entusiasmado o velho Elias.
Ou porque fosse um trabalho árduo, ou porque a própria índole de Hugo Elias se impusesse, não se sabe bem, o fato é que ele mantinha e aumentava a fama de violento e destemperado. Aliás, não era só fama, não. Por várias vezes foi dar com os costados na polícia, em conseqüência de bebedeiras e quebradeiras na zona boêmia de São Roque.
Foi o responsável pelo encerramento da quermesse da festa de Santa Terezinha na segunda noite de funcionamento. Promoveu a maior quebradeira, ele sozinho, bêbado que nem um gambá, não deixando em pé uma só das sete barraquinhas erguidas no Largo da santa. Nessa ocasião, nem a influência do pai e de seus amigos o livrou de uma semana na cadeia e pesada indenização à paróquia e aos proprietários das barracas.
Criou fama, deitou na cama. Todo mundo tinha medo de Hugo Elias. Corriam histórias de que Hugo teria forçado algumas mulheres pelo interior, em suas viagens de transporte. Mas, sabe como é, o povo da roça é muito envergonhado, não se queixa de nada, tem mais medo da polícia do que de valentão. A lenda corria na boca do zé-povinho.
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Homem de hábitos rigorosos, metódico de formação e por gosto, Davidson Mitzak só saía de sua loja (a residência ficava nos fundos da loja), durante os dias da semana, para ir ao Banco do Comércio. E, nos domingos, para dar uma caminhada, esticar as pernas, como ele mesmo afirmava.
O roteiro de sua caminhada era um só e durava, invariavelmente, três. De sua casa ia até o Largo da Saudade, a pracinha situada defronte ao cemitério. Seguia por uma rua lateral á necrópole, que se transformava na estrada para o distrito da Ponte de Pedra. Caminhava uns dois quilômetros pela estrada bem conservada pelo município, já que por ela passava todo o tráfego entre a cidade e o vilarejo , até o sítio do Chico Marques, antigo colega do Ginásio.
-- Bom dia, Chico ! Como vai essa força? E a família?
-- Bons dias, Davi -- Chico não conseguia ou não gostava de dizer o nome completo de Davidson, dizia-o pela metade. -- Vamos entrando, a Izoldina tá acabando de passar o café.
Limpando a testa do suor com um bizarro lenço xadrez de quadros vermelhos e azuis, Davidson subia os degraus e abraçava o amigo.
Após um dedo de prosa, uma xícara de café forte, a gosto de ambos, a despedida:
-- Tá cedo, fica mais -- convida Chico Marques.
-- Não, tenho que ir, Leonora me espera pro almoço, não quero atrasar. Obrigado, Chico, obrigado, dona Izoldina.
-- Tá bem, volte sempre.
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Coincidências existem ou não? E a História se repete? O professor Oduties estava certo na sua intuição do primeiro dia de aula? Para cada pergunta pode-se dar a resposta que se quiser, tudo é provável e passível de se realizar, nesta ou em outras dimensões -- que são tantas quanto as estrelas do firmamento.
Coincidência ou não, numa clara manhã de domingo , lá vem Davidson de volta do sítio de Chico Marques, o sol forte provocando intenso suor na sua testa e uma respiração um pouco ofegante, que já não sou tão moço assim, pensa.
Por outro lado, tendo abarrotado seu caminhão de mercadorias para serem entregues na Ponte de Pedra, lá vai Hugo Elias, a cabeça ainda pesada do excesso da noite anterior, a vista um tanto prejudicada pela extrema claridade da manhã, dirigindo devagar o veículo, por um trecho difícil da estrada, descida íngreme cheia de buracos e facões.
De longe Davidson vê o caminhão, conhecido de todos, vindo lentamente em sua direção. Não se importa, sabe que Hugo é bom chofer. Mas fica alerta quando o caminhão se aproxima, num estranho ziguezague pela estrada. E, assustado ao ver o veículo vindo-lhe direto em cima, pula para o barranco à beira da estrada, escapando agilmente de ser atropelado. Pelo menos é o que pensa.
Deixando-se se dominar por uma irracional onda de raiva, e com gestos muito rápidos sua idade, apanha uma pedra ali mesmo no barranco e a atira na direção do caminhão.
-- Seu filho duma puta, queria me matar !
Nem fez pontaria, atirou a esmo, num ato de puro reflexo, de contra-ataque. Num lance incrível de pontaria, a pedra atinge a pequena janela traseira da cabine, estilhaça o vidro e bate com violência na cabeça de Hugo Elias.
Talvez ainda curtindo uma ressaca da noite anterior, talvez sentindo realmente a dor da pedrada -- ninguém jamais poderá marcar a alternativa correta -- Hugo perde o controle do veículo. Assustado, Davidson vê o caminhão sair da estrada e despencar pela lateral, caindo pela ribanceira de uma altura de uns dez metros, capotando diversas vezes.
Quando termina a agitação da cena, baixa um silêncio de morte.
-- Puta merda, que desastre !
Corre Davidson aos tropeções, batendo a canela em tocos secos na direção do que sobrou do veículo. Descendo pela barranceira, observa que a carga está toda espalhada pelo campo, uma vaca assustada corre mais para baixo, e ouve o último estertor do motor, que pára de funcionar com pequeno estrondo, soltando fumaça na parte da frente do caminhão destruído.
Ao abrir sem dificuldades a porta da cabine, o corpo de Hugo escorrega para a grama, manchando o capim com o sangue que lhe escorre da cabeça, da boca e da garganta.
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Davidson é um homem pequeno, pouco cresceu em tamanho desde os tempos de ginásio. Porém cresceu em vivacidade e inteligência (e em esperteza, outro tipo de inteligência aliada à malícia). Perante o delegado de polícia, dois soldados e diversas pessoas que acorreram da cidade ao local do acidente, narra os lances principais do acontecimento. Não mente, mas não diz toda a verdade. Se conto tudo, ninguém vai acreditar e vão me chamar de mentiroso, eu, pequeno desse jeito, quase um anão, atingindo um gigante desse com uma pedrada, vão rir de mim, pensa .
-- Daí, vi quando o caminhão saiu da estrada e caiu na ribanceira, capotou duas ou três vezes e, quando cheguei perto, Hugo já estava morto.
-- Ele devia tá mais é de ressaca, ainda esta madrugada ficou na casa da Zica Espanhola até às quatro -- revelou um dos meganhas.
-- Bom, -- acrescenta aliviado o delegado -- pelo menos estamos livres desse cabra , que só dava trabalho . Tem muita gente, mas muita gente mesmo, que tá contente com esse final pro Hugo Elias.
Ao saber do trágico acontecimento , o sábio velhinho no qual se transformara o professor Oduties, conhecido de todos na cidade por sua perspicácia e seu estranho jeito de adivinhar coisas, sorriu de mansinho e comentou:
-- Dessa história eu já conhecia o final. Estava escrita. Quem
tivesse olhos pra ver que visse.
ARGOS = ANTONIO ROQUE GOBBO = Belo Horizonte = 2 de maio de 2000
Conto # 19 da Série Milistórias
Publicado em “A Loucura do Cristal”, volume 1 da Coleção Milistórias