O baile das tanajuras
O sertão estava ressequido.
José de Jovêncio olhava o horizonte. Seu olhar refletia o cinza amarronzado das folhas mortas da caatinga, o cinza claro do solo seco e poeirento, o cinza azulado do céu sem nuvens. E com todos esses cinzas misturados, seu olhar refletia o cinza da seca tórrida.
José de Jovêncio caminhava sozinho. Vinha de seu roçado, que agora era apenas um terreno vazio e limpo à espera das chuvas. Seu caminhar fazia crepitar as folhas esturricadas embaixo das solas de suas alparcatas.
Passou em seu reservatório, uma fenda entre as pedras, e recolheu um balde de água turva de algas e sujeira. Era a única que dispunha, mas depois de um laborioso trabalho de filtragem servia para beber. Ele não desanimava tão facilmente. Já limpara sua terra, queimando as ervas daninhas secas em coivaras. Também havia efetuado a limpeza das cacimbas e barreiros, à espera da abençoada chuva, que um dia haveria de chegar. Constantemente olhava o céu e o sol, na esperança de algum sinal.
Petronilho, um amigo seu, questionava tanto trabalho de José de Jovêncio.
- Espere a chuva chegar! Isso é perda de tempo – dizia ele.
- Quando a chuva chegar, quero estar com tudo preparado. – José retrucava, e continuava em sua rotina.
José de Jovêncio vinha pela trilha, quando notou um alvoroço no formigueiro das saúvas. Ele achou aquilo interessante. No dia seguinte percebeu que o alvoroço tinha aumentado. À tarde as primeiras tanajuras estavam saindo do formigueiro. Já era quase noite quando voaram em bando, acompanhadas dos formigões alados. No céu era como um baile. Cada formigão procurava uma parceira para acasalar em pleno ar. Valsavam à luz dos últimos raios do sol, que refletia-se dourado nas asas dos insetos. José de Jovêncio ficou ali, fascinado, observando aquele baile da natureza, até que escureceu.
Logo pela manhã, antes do raiar do sol, animado, ele separou as sementes e partiu. Ele sabia que as tanajuras só voavam na iminência de chuva. Isso amolecia o solo para elas cavarem seus novos formigueiros. Petronilho, mais tarde, não o encontrando em casa, foi até o roçado, onde o encontrou enterrando as últimas sementes de milho, abóboras e melancias. O feijão ele plantaria mais tarde, quando os pés de milho oferecessem um suporte adequado.
- Perdeu o juízo, Zé? Tu vai cozinhar todas as sementes nesta terra esturricada!
- Não, Petronilho. Já está na hora de plantar. A natureza está avisando! E tu devia fazer o mesmo. Não perca tempo.
Petronilho não discutiu. Achava que Zé já não estava raciocinando direito. Depois de observar o trabalho por algum tempo, retirou-se, preocupado com o amigo.
No entanto, naquela noite a chuva veio. Não uma chuva qualquer, mas uma tempestade estrondosa e persistente. Em pouco tempo os leitos secos dos riachos se encheram, as cacimbas e barreiros seguraram a água que corria. O solo ficou totalmente encharcado, despertando os sapos e insetos. A noite encheu-se com o barulho da natureza, que sobrepujou o barulho dos raios e trovões.
No domingo seguinte, o padre aproveitou o ocorrido para fazer seu sermão, clamando aos fiéis para arrependerem-se de seus pecados, citando a recente trovoada como o descontentamento de Deus pelas atitudes de seu rebanho.
- Arrependam-se, ajoelhem-se diante de Deus e peçam-lhe seu perdão! – gritava exaltado.
José de Jovêncio ouvia entediado. Não entendia porque o padre falava assim. Então decidiu sair da missa, antes de seu término. O padre, percebendo a fuga de José, o questionou:
- Seu José, vai deixar a missa pela metade? Minhas palavras o incomodam? Não teme a ira de Deus?
José, que detestava ser o alvo das atenções, corou violentamente. Ele não gostava de se expor, e gostava menos ainda de ser provocado dessa maneira. Então, apesar de todo o respeito que tinha com o religioso, retrucou:
- Na verdade, Padre, suas palavras me incomodam sim. Por que eu devo temer e me arrepender por ter recebido uma dádiva de Deus? Quando ganhamos um presente devemos nos alegrar e agradecer. Por acaso o senhor acha que a chuva foi um castigo? Vá lá fora e olhe as cacimbas cheias, com água em abundância para matar a sede de todo mundo. Veja a terra umedecida, pronta para o plantio. Os animais satisfeitos, as plantas rebrotando. Tudo isso é um presente de Deus. Quem se importa se veio acompanhada de barulho de raios e trovões? Eu não quero ficar aqui me ajoelhando e pedindo perdão por ter recebido um presente dos céus. Quero ir lá fora, olhar para o alto. Quero mostrar minha cara e meu sorriso, dizer a Deus muito obrigado pelas águas.
E saiu rapidamente da igreja. Lá fora suspirou aliviado, olhou para o céu e sorriu.
Dias depois, José de Jovêncio caminhava pelo roçado, acompanhado de seu amigo Petronilho. Este não se cansava de elogiar o trabalho e a beleza da plantação. Enquanto alguns ainda plantavam suas sementes, e outros nem tinham preparado o solo direito, o roçado de José já estava em pleno crescimento.
Voltavam pela trilha quando Petronilho viu o formigueiro.
- Veja, Zé! Que formigueiro enorme! Está na hora de tacar veneno e acabar com elas.
- Que nada, Petronilho! Tem verde para todo mundo, e elas merecem sua parte. Deixe as formigas em paz. Elas são mais importantes que nós, pois sabem com antecedência quando a chuva vai chegar.
- Besteira, Zé.
-Besteira nada! Nós, seres humanos, precisamos nos colocar em nosso devido lugar. Deixe as formigas em paz e vamos para casa, comer o bolo de goma que Zilda de Maricô me mandou. Ela tem uma mão danada de boa para bolos.
- Mão boa só para fazer bolo, Zé?
- Boa também para bater na cara de cabra atrevido. Deixa de bobagens e vamos.
Alguns dias depois, Zé de Jovêncio olhava o horizonte. Ele via o verde avermelhado das folhas novas de catingueira, o verde pálido dos pés de angico, o verde esmeralda do reflexo das águas nas cacimbas. Por todos os lados que olhava, havia nuances de verde, e com todos esses verdes misturados, o olhar de José de Jovêncio refletia o verde da esperança.
O sertão estava renascendo!