O CLUBE DOS COLECIONADORES
A Reunião
-- Mas o Jairo não pode fazer parte do nosso clube ! Ele não coleciona nada.
-- Deixa ele entrar. A gente inventa alguma coisa pra ele colecionar.
-- A mãe dele falou que ele tem mania de falar as palavras ao contrário.
-- Que besteira ! Isto nada tem a ver com colecionar coisas.
A discussão estava animada. Quatro garotos querendo organizar o “Clube dos Colecionadores”. Cada um tinha a sua coleção. Para eles, entretanto, não era bastante ajuntar coisas e ir guardando.
-- Olha, se a gente não tiver mais colecionadores, nós quatro formamos o clubinho. –- Zezinho queria encerrar logo a reunião, ansioso para ir jogar bafo com a sua turma.
-- Espera aí, essa mania do Jairo até que pode ser boa – Luiz Claudio tentava manter o interesse dos outros para a reunião. A idéia do clube não era só sua, queria que todos participassem do seu entusiasmo. -– Ele pode entrar como falador de palavras ao contrário. Pode ser o orador do clube.
-- Essa eu não entendi -- falou Douglas, a voz fina saindo sibilante através da falha de um dente quebrado.
-- Já vi o Jairo falando assim. -– Foi a vez de Rafael, o pai da idéia do Clube dos Colecionadores. –- Ele fala de trás pra frente, invertendo as palavras e até frases inteiras. Em vez de casa ele fala asac; apour por roupa; otapas é sapato. Um dia ele chamou o pai de acerac oãdnam e o pai nem percebeu que Jairo estava falando careca mandão.
Rafael, o mais miúdo dos quatro garotos, era o que mais aparecia, dava palpites e explicava tudo. Sem esperar a resposta dos outros, continuou:
-- A gente deixa ele fazer parte como o colecionador de palavras ao contrário.
-- É muito sem graça. E ele não vai ter com quem trocar nada. É só ele que faz isso, ninguém mais.
A objeção vinha do Zezinho que queria mais era sair logo dali a fim de pegar sua caixa com marcas de cigarro. O jogo de bafo tá muito mais animado do que essa reunião besta, pensou.
Douglas interveio. De pé, era o mais desenvolvido, alto e gordo. Mas o rosto denunciava a pouca idade e a voz estridente não combinava com seu porte. Foi incisivo:
-- Puxa vida, Zezinho, deixa o Jairo entrar ! Ele com sua mania não é pior do que esse negócio de juntar marcas de cigarro pra jogar bafo.
-- Deixa de sê bobo, Douglas. É melhor colecionar marcas de cigarro do que ajuntar caixinhas de fósforos vazias. Que besteira !
Zézinho e Douglas tinham uma diferença de longa data. Uma antipatia gratuita, aumentada pela disputa entre os dois, a ver quem conseguia namorar a Soninha, colega de classe do 4º ano. Cotejada por ambos, ela não se decidia e contribuía para aumentar a cada dia a rivalidade entre os dois garotos.
Luiz Cláudio se intrometeu:
-- Epa ! Se a gente começa a bater boca e brigar, não consegue nada.Afinal, vamos ou não vamos deixar o Jairo entrar ?
-- Deixa ! Deixa! -– gritaram Douglas e Rafael. Zezinho ficou mudo.
Rafael tirou o boné, coçou a cabeça e alisou os cabelos loiros como se espiga-de-milho fossem, e propôs:
-- Vamos fazer uma prova para o Jairo: se ele passar, entra pro clube.
-- Que prova?
-- Vamos combinar o seguinte: cada um de nós fala uma palavra e ele tem que falar de trás pra frente.
-- Uma palavra só é fácil, ele tá acostumado. A gente deve falar uma frase, ele tem de responder na bucha, rápido. Do contrário... –- A proposta era do Luiz Cláudio, de longe o mais ladino do grupinho.
-- Vai ser gozado!
-- Se ele concordar, claro.
A Prova
Alguns dias depois, de novo os jovens colecionadores se reuniram, Jairo com eles, a fim de fazerem a “prova”.
Tudo explicado, Jairo atento, interessado em passar no teste e fazer parte do clube.
Luiz Cláudio exercitava uma liderança sobre os demais, foi o primeiro a fazer uma frase para Jairo falar de trás pra frente.
-- Hoje está um dia muito quente.
Jairo ouve atentamente, fecha os olhos (encenação?) pensa alguns segundos e:
-- Etneuq otium aid um atse ejo.
Os quatro ouvintes não entenderam bem. Pedem para Jairo repetir e na segunda vez, compreendem -– ou fingem que.
-- Agora, sou eu -– Zezinho adiantou-se. Olhou demoradamente Jairo, que pensou: sujeitinho metidinho.
-- Aqui só tem colecionador.
E Jairo, sem demora, fala na sua bizarra maneira:
-- Rodanoiceloc met os iuqa.
Novo silêncio curto –- e Zezinho aprova:
-- Tá certo! É isso mesmo !
-- Não gosto das aulas de português. -– Propôs Rafael.
-- Seugutrop ed saluas sad otsog oãn. -– Replica Jairo.
-- Credo ! Parece que tá falando grego. -– Exclama Douglas.
O que Jairo traduz para sua linguagem:
-- Ogerg odnalaf at que ecerap oderc.
E Douglas, não satisfeito com a resposta de Jairo, pergunta:
-- Jairo, quantos anos você tem?
Jairo traduz imediatamente:
-- met eçov sona sotnauq oriaj ?
Luiz Cláudio terminou a sabatina, propondo:
-- Agora faça a declaração “Eu quero ser sócio do clube dos colecionadores”.
Jairo nem titubeia, parece ter a resposta na ponta da língua:
-- Serodanoiceloc sod ebulc od oiços res oreuq ue.
-- Muito bem ! Tá aprovado ! – batem palmas e gritam alvoroçados Luiz Cláudio, Rafael, Zezinho e Douglas.
Os sócios
As reuniões dos cinco garotos eram sempre na casa de Luiz Cláudio, moderno bangalô na Praça da Matriz, com jardim na frente, alpendre amplo e um quarto só para ele. No quarto, além de uma cama grande, estantes cheias de livros e revistas, uma mesinha redonda, uma escrivaninha e almofadas por todos os cantos. Os garotos ficavam à vontade, sentados nas cadeiras ou refastelados sobre as almofadas, pelo chão.
-- Hoje tem um gibi novo, Rafael. O "Globo Juvenil" já chegou na banca do Alfredo Jornaleiro.
-- Eu trouxe dois pra lhe emprestar. Quem me deu foi o Bruno, ele compra mas não pode guardar em casa, o pai dele não deixa.
Às vezes, trocavam os gibis. Passavam horas e horas lendo os quadrinhos e resmungando onomatopéias quando a aventura ficava mais empolgante.
-- Sabe o que comecei fazer, Luiz Cláudio? Estou escrevendo as aventuras do Homem Pássaro.
-- Ué, mas ele já tem história. É o mesmo Homem Pássaro do rádio?
Luiz Cláudio falava do personagem das aventuras que eram transmitidas diariamente na Rádio Nacional do Rio. Todas as tardes, às 5 e meia, tinha um capítulo da novelinha de aventuras.
-- É sim -- Rafael se entusiasma. -- De noite escrevo os principais lances do capítulo da tarde, e depois vou melhorando. Tou seguindo as aventuras do Homem Pássaro, agora ele tá procurando uns bandidos que roubaram um leão do circo.
-- Quero ver os capítulos que ocê já escreveu -- interessou-se Luiz Carlos.
-- Eu também -- entrou Zezinho na conversa.
As horas passavam depressa. Zezinho, o colecionador de marcas de cigarro, era o que permanecia menos tempo com a turma. Saía logo para jogar bafo. Era viciado e bom no jogo. Ganhava sempre, sua mão era bem maior que a dos outros jogadores.
-- Olha, ontem ganhei mais de 20 marcas. Tem algumas bem difíceis. -- Orgulhoso, exibia as marcas que ganhara.
A fim de jogar o bafo, tinha de rasgar os maços de cigarro vazios, de tal forma que só ficava a marca, o nome da embalagem. Chegava a apostar três marcas contra uma do adversário. Deixava que o outro jogador batesse primeiro a mão em concha. Quando ele batia sua mão enorme, virava todas as marcas para cima, ganhava todas.
-- Rapei! Rapei! -- Era o grito de vitória, que se ouvia bem alto quando ele estava jogando.
-- Tem marcas que não servem pra jogar. Por exemplo, Fulgor, Clássicos, Adelphi, Liberty. Essas marcas são em caixas de papelão. São muito pesadas. -- Explicava Zezinho aos colegas do clubinho.
-- Faz o seguinte : vai guardando as caixinhas de papelão e então você terá uma coleção de caixas inteiras. -- A sugestão era do Douglas. -- Você vai ter uma coleção de caixas de cigarros, como eu tenho a de caixas de fósforos.
Douglas colecionava caixas de fósforos vazias. A maioria de suas quase cincoenta eram caixinhas velhas, muito manuseadas, ele as trocava muito com seus colegas. As mais difíceis passavam de mão em mão, ficavam encardidas, sujas de tanto comércio.
Douglas usava suas caixinhas para guardar miudezas: anzóis, botões, penas de escrever, pedaços de linhas de pescar, chumbadas, e até cápsulas vazias de balas de espingardas. Um tesouro em miniatura.
-- Olha que engraçada esta marca!
Jairo pegou uma caixinha de fósforos da marca GRANADA e mostrou aos amigos.
-- Vejam bem a marca. -- E cobrindo as letras com seus dedos, contava uma historinha, enquanto brincava com as letras da marca:
-- Eu casei com ANA, pensando que ela era cheia da GRANA, mas no fim descobri que ela não tinha NADA.
Jairo era o mais novo colecionador e se esforçava para entrosar com os outros. Sua habilidade de brincar com as palavras era difícil de entender. Falar palavras e frases de trás pra frente não era coisa para ser colecionada. Participava do clube como uma espécie de curiosidade. Entretanto, ensinava aos outros, principalmente de Rafael, a ler e falar a língua de trás pra frente.
Começou com simples palavras, e foi ensinando até que os outros amigos de clube aprenderam a falar frases inteiras no sentido contrário.
-- Vejam, trouxe hoje uma série de palavras que a gente pode falar normalmente de trás pra frente que faz sentido. -- Por exemplo: Ana, ama, arara, ele, oco, ovo, uau.
-- Ah, mas essas são fáceis. Qualquer um sabe -- interrompeu Rafael, que ia escrevendo para depois usá-las.
-- Então tá. Escreve essas aí: anilina, merecerem, rodador, socos, sopapos...
-- Tá bom, chega.
Os garotos foram melhorando e inovando suas coleções.
-- Olha, ganhei umas figurinhas de artistas de cinema, vou começar outra coleção. -- A notícia era de Douglas, que mostrou uns 10 retratos de artistas de cinema mais famosos na ocasião.
-- Onde você conseguiu essas figurinhas? -- Curioso Zézinho manuseava as estampas.
-- Meu tio Roberto quem me dá. Elas vêm dentro dos maços de cigarro Clássicos, que ele fuma sem parar.
E as reuniões decorriam numa brincadeira gostosa, nas tardes quentes daquele fim de ano de '44.
Jairo era quem mais se esforçava para se enturmar.
-- Gente, vou mostrar pra vocês uma coleção de frases que tanto a gente pode falar normalmente ou de trás pra frente, que não muda nada.
-- Como assim? - Interessado Luiz Cláudio quis olhar logo a lista na mão de Jairo.
-- Por exemplo: Roma me tem amor. A gente fala de trás pra frente, é a mesma coisa.
E completava com outros exemplos:
-- Rezar paga prazer. A cara rajada da jararaca. Socorro, subi no ônibus em Marrocos.
-- Peraí, tenho que anotar todos. -- Afobado, escrevia Luiz Cláudio com o lápis de ponta rombuda.
Expansão Final
Os cinco garotos começaram a pensar em aumentar o Clube dos Colecionadores.
-- Olha, a gente podia chamar o Carlinhos Pompeu, ele tem um monte de pedaços de filmes. -- A informação era do Zezinho.
-- Pedaços de filme?
-- É, pedaços de filmes arrebentados. Quando o filme queima ou arrebenta, tem de ser emendado. Cês lembram da matinê de domingo passado , no seriado do Flash Gordon, quando o filme arrebentou? Cada vez que arrebenta, o filme é emendado rapidamente pelo operador do projetor. E quando o Vítor emenda, tem de cortar uns quadros, que ele dá pro Carlinhos.
-- Que coleção mais besta ! -- Menospreza Rafael a idéia de colecionar pedaços de celulóide queimado.
-- Ué, mas é uma coleção, né mesmo? -- insiste Zézinho. -- Cada um tem a sua.
-- Tem também o Geraldinho do Seu Zico. Ele tem figurinhas de aviões da guerra, que vêm em pacotinhos de balas, e tá fazendo um álbum. Tem muitas figurinhas repetidas, até troquei com ele umas caixinhas de fósforo -- Douglas fala do amigo e vizinho.
-- Essa é uma boa ! A gente pode fazer esse álbum e trocar figurinhas. -- Interessou-se Luiz Cláudio.
As intenções de incrementar o Clube ficaram no ar. Chegou o mês de novembro, a revisão das matérias aprendidas durante o ano para as provas de fim de ano não deixavam tempo para as reuniões do Clube.
Durante o período de provas, então, nem falar em reuniões! O esforço concentrado nos livros e cadernos.
Em seguida, a atenção voltada para a formatura, a festa de entrega de diplomas. Todos os colecionadores foram diplomados, nenhum levou bomba. Aliás, estavam entre os melhores da classe, e Jairo foi o orador da sua turma.
Luiz Cláudio viajou com a família, passou uns meses fora.
A casa, que era a sede do Clube dos Colecionadores, ficou fechada, o grupo se dispersou.
Perto do Natal, Zezinho encontrou-se com Jairo mas não falaram sobre os outros possíveis sócios. Em janeiro de '45, Rafael começou o curso para admissão ao Ginásio Municipal. Zezinho foi trabalhar na marcenaria do seu Totonho, Luiz Cláudio nem voltou das férias, ficou em Campinas para freqüentar um colégio importante.
Jairo -- quem diria? -- foi para o seminário. Ele que nunca tinha falado em ser padre. Foi surpresa pra todos.
Quando as aulas começaram no Ginásio Municipal, Rafael e Douglas freqüentavam a mesma classe. Continuaram colegas e amigos, jamais voltaram a falar nas suas coleções e nas reuniões.
ARGOS = ANTONIO ROQUE GOBBO = Belo Horizonte = 29 de Abril de 2000
Conto # 18 da Série Milistórias
Publicado em “A Loucura do Cristal”, vol. 1 da Coleção Milistórias