O FIM DO FIM-DE-SEMANA
– Mas que calor ! Isto aqui tá insuportável.
– É por isso que os vereadores não conseguem fazer nada. Um forno assim é como o diabo gosta. Amolece o cérebro e assa as idéias.
Jacinto Fontes cochichava para o colega de trabalho, ambos encarregados de cobrir os acontecimentos da Câmara Municipal de Coxilha Verde . Trabalhavam para jornais diferentes, mas suas relações eram de amigos. Jacinto escrevendo artigos e crônicas para o “Diário de Coxilha Verde ” e Chico Fontes lavando a roupa suja da cidade e região em reportagens sensacionalistas para “Nosso Tempo”.
O ar parado e seco destacava o brilho das estrelas e da meia-lua. O veranico de maio era o responsável pelo desconforto da sala de reuniões dos vereadores.
– Não se engane, não. O presidente não manda ligar os ventiladores de propósito. Assim os vereadores nada fazem e espantam os assistentes das reuniões. Tática política.
– É verdade – concordou o novato repórter Chico Marques – Mas parece que hoje vamos ter novidades.
– Ouviste algum buxixo, tchê ?
– Ouvi dizer que o vereador Renan Gross tem um projeto de lei, sei lá.
– Esse Renan é metido a besta, gosta de aparecer. Um ignorantão.
– É , mas o homem tem votos. É protegido do Dr. Costa e Silva.
Enquanto conversam, a reunião de vereadores vai acontecendo: a parte protocolar de verificação de presença, as conversas ao pé-do-ouvido entre os vereadores do mesmo partido, as formalidades ditas de praxe.
Estabelecidos os preâmbulos, o vereador Renan Gross se levanta:
– Peço a palavra, Sr. Presidente.
– Com a palavra o vereador Renan Gross – autoriza o Presidente.
Dirige-se o edil à pequena plataforma. Leva na mão um bloco de papel.
Os jornalistas observam, fazem anotações. Na área destinada ao público, apenas meia dúzia de gatos-pingados, além dois . Fingem que não ouvem as preliminares do discurso do orador. Cochicham e quando prestam a atenção, o vereador já está expondo suas idéias .
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--“ O descanso semanal dos sábados e domingos transformou-se num verdadeiro pesadelo para todo mundo. Para usufruir algumas horas de descanso nos fins-de-semana, a população inteira das grandes cidades sofre o maior desconforto. Assistimos e nos metemos nos congestionamentos monstros nas rodovias de acesso às praias ou aos locais de entretenimento. A violência aumenta não só nos locais de grande afluxo de pessoas em busca de lazer, como também nos bairros desertos, onde os ladrões agem à vontade, na ausência dos seus moradores.
“ Coxilha Verde não está imunizada contra esta verdadeira onda de confusão dos fins-de-semana. Seus habitantes se deslocam quase na totalidade para as praias vizinhas ou para os parques das serras. A cidade fica entregue às moscas e aos bandidos. Cresce assustadoramente o número de assaltos e a polícia se confessa despreparada para essa situação.
“ Nas rodovias instala-se o caos. Um percurso de poucos quilômetros demanda horas e horas de viagem. Na verdade, passa-se mais tempo na rodovia do que nos locais de descanso. A impaciência e o desconforto nessas ocasiões predispõem os motoristas a desatinos de todo o tipo.
“ E por que tudo isto? Simplesmente devido a esse costume instituído do fim de semana prolongado, que na verdade começa na sexta-feira e vai até as manhãs das segundas-feiras.”
E por aí foi o vereador no seu arrazoado, enumerando, uma a uma, as desvantagens do fim-de-semana.
-- Acho que o vereador endoidou? Qual é a dele?
-- Calculo que vai querer modificar os dias da semana – o tom de deboche no comentário de Jacinto Fontes.
-- Tou lembrando daquela história do vereador que quis acabar com a lei da oferta e da procura. Cê lembra? Foi na década de ‘60. Ficou sabendo que a inflação galopava devido à lei da oferta e da procura, e o vereador... como era mesmo o nome dele? O cara apresentou um projeto suspendendo a aplicação da lei da oferta e procura em todo o município. Foi o maior vexame. Deu até no FEBEAPÁ do Stanislau Ponte Preta.
Chico Marques ilustrava sempre seus artigos e reportagens com pequenas lembranças de fatos evocados de sua longa carreira de jornalista. Seu trabalho era ponteado de saborosas evocações pitorescas. O que lhe fornecera material para seu livro revelador do besteirol político brasileiro.
-- Lembro, sim. Acho que o Renan Gross vai sair com uma besteira igual ou pior.
De pé, aprumado no seu terno de linho 120, continuava o massante discursador, insistindo na sua tese:
-- Senhor Presidente, caros colegas. E se não houvesse o fim-de-semana? Estou falando da semana sem o fim-de-semana. A semana continua a mesma, claro, os sete dias consagrados, mas os trabalhadores não teriam obrigatoriamente de trabalhar no esquema rígido de segunda a sexta. A cada jornada de trabalho de 5 dias, corresponderiam 2 dias de descanso, independente dos dias da semana.. Para tanto, todos os serviços públicos –as repartições , os bancos, comércio e indústria, escola passam a funcionar todos os dias da semana, ininterruptamente. Cada trabalhador, operário, funcionário, professor, comerciário faria, de acordo com seu trabalho ou com o empregador, a sua escala semanal. Seria, desta forma, superado o sistema atual no qual todo mundo é obrigado a usufruir os dois dias de folga semanal somente aos sábados e domingos.
Entremeando a voz do edil Renan Gross, um burburinho se ouviu a partir das mesas dos outros vereadores. Surpresos uns, sorrindo outros, todos estavam evidentemente chocados com a idéia do colega.
-- Num te falei que vinha besteira da grossa ?
-- Ah! Ah! Ah! Essa é de morte ! Só mesmo um desvairado teria uma idéia tão maluca.
-- Ordem ! Ordem! Caros colegas, vamos ouvir a proposta do vereador Gross. Depois todos terão oportunidade de discutir. – tentava o Presidente Nestor Peçanha abafar a confusão e o vozerio dos colegas.
O vereador Gross continuou por mais meia hora na sua peroração. Para concluir, apresentou o seu projeto de lei:
-- Isto posto, Senhor Presidente, caros colegas, apresento à apreciação dessa egrégia Câmara Municipal o seguinte projeto de lei:
“Artigo Primeiro: Fica extinto, em todo o Município de Coxilha Verde , o regime de horário de trabalho conhecido como “semana inglesa”.
“Artigo Segundo: Os empregadores e todos os trabalhadores ficam liberados da obrigatoriedade de obedecer a horários especiais de trabalho aos sábados e domingos.
“Artigo Terceiro: Empregadores e empregados negociarão livremente as escalas de trabalho, ficando assegurado aos empregados 8 dias de folga a cada período de 22 dias trabalhados.
“Artigo Quarto : Revogam-se as disposições em contrário. “
A confusão instalou-se no recinto, assim que o vereador Gross finalizou sua exposição. Todos pediam apartes, queriam falar. A balbúrdia foi tanta que não houve condições de prosseguir a reunião.
-- Declaro encerrada esta reunião ! – conseguiu finalmente o presente acabar com a mixórdia.
-- Barbaridade, tchê. Essa foi demais!. – descendo as escadas do prédio Chico Fontes estranhou.
-- Vindo de quem veio, até que não é de se admirar – gozando a situação criada, comentou Jacinto Fontes.
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Nestor Peçanha rolou sobre os lençóis a noite toda. Não conseguiu pregar os olhos.
-- Que tá acontecendo, Nestor? Tá sentindo alguma coisa? – a esposa estranhou.
-- Num consigo dormir. O Renan endoidou de vez, com aquele projeto de lei. E o pior é que a maioria da Câmara vota com ele, é capaz dessa lei estapafúrdia ser aprovada. Nossa cidade vai servir de deboche até no exterior.
-- E não tem jeito de retirar essa proposta? -- A mulher, que entendia um pouco das manobras políticas pergunta, querendo ajudar.
-- Não vejo como ! O Renan é obstinado, quando apresenta duas idéias, não aceita opinião. Vai ser impossível a gente se livrar dessa palhaçada imaginada por ele.
Insone, cansado, desanimado, Nestor dá tratos à bola, tentando achar uma maneira de segurar o Renan Gross.
Lembra-se de uma outra situação idêntica, há uns 30 anos atrás. Ele era o vereador mais jovem da Câmara, quando um colega apresentou uma questão mais ou menos idêntica. Era um vereador do PTB, e queria resolver o problema do abastecimento de água na cidade.
Um engenheiro havia informado que a água não chegava a todas as casas, principalmente àquelas situadas nos locais mais altos, devido à lei da gravidade. O vereador não teve dúvida: fez uma lei que tornava sem efeito em todo o município a “lei da gravidade”, tornando-a ilegal. Assim, a água poderia chegar até o bairro do Alto dos Cinamomos, bairro nobre de Coxilha Verde.
Foi um deus-nos-acuda na Câmara. O assunto “vazou”, foi para os jornais e a lei estava na eminência de ser aprovada, pois os vereadores do PTB constituíam a maioria.
Necessária se tornou a interferência do presidente do partido , que chamou o vereador à realidade com um argumento politicamente decisivo.
Numa conversa ao pé-do-ouvido, falou de modo paterno e conciliador:
-- Sabe como é, nobre vereador, essa lei da gravidade é uma lei importante. não pode ser desconsiderada assim de somenos.- Não podemos, nós do PTB, extinguir essa lei... – teatralmente a esperta raposa política arrematou – Sabe como é. Essa lei é do falecido Getúlio, nosso chefe eterno, não podemos acabar com ela.
Submisso e derrotado, o vereador concordou em retirar da votação seu projeto, com alívio para todos.
Lembrando-se dessa ocasião, num último átimo de lucidez, Nestor Peçanha engendra uma maneira de refrear o ímpeto legislativo do vereador Renan Gross.
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-- Pois é como lhe disse, Dr. Péricles. Se essa lei for à plenário, para ser discutida, certamente será aprovada.
Nestor Peçanha visitou o grande chefe local do partido que elegia sempre a maioria dos vereadores. Era ainda de manhã, Nestor tinha de acertar tudo antes da próxima reunião, marcada para a noite, o assunto era urgente.
-- Mas o que deu nesse menino? Nunca vi bobagem tamanha.
Político à moda antiga, Dr. Péricles Costa e Silva se abstinha de aparecer em público. Manipulava matreiramente nos bastidores os cordões da política municipal há mais de 50 anos. Não se aborrecia nem se surpreendia com nada. Nem mesmo a despropositada propositura do vereador Renan Gross lhe causava espanto.
-- O senhor sabe, apesar de ser independente, de querer ser o líder de seus pares, o Renan escuta o doutor. Se falasse com ele, a fim de não levar pra frente esse projeto, acho que ele lhe escutaria.
-- Pode deixar, Nestor. Vou demovê-lo desse desiderato.
Passando a mão carinhosamente pelo largo rosto bem barbeado e sobre o bigode basto e branco, o velho político ficou imaginando como iria chamar o vereador à ordem.
De tarde foi a vez de Renan Gross visitar o Dr. Péricles Costa e Silva, atendendo ao seu chamado “urgente-urgentíssimo”.
-- O caso é o seguinte. – Dr. Péricles foi direto e reto ao assunto – Esse projeto de lei que o senhor apresentou ontem na Câmara tem de ser retirado da pauta.
-- Mas, Doutor Péricles, é um projeto nobre, vai solucionar um monte de problemas. – argumenta ansioso Renan Gross.
-- Não pode ser. Só vai ter efeito no município, não vai alterar a situação nas outras cidades, principalmente nas grandes cidades. – Peremptório, o político sensato tenta argumentar. Inutilmente.
-- Alguém tem que começar a alterar esse sistema. Quando a lei for aprovada em Coxilha Verde , as outras cidades vão aderir, vão fazer leis idênticas. Poderá ser até motivo de lei estadual ou mesmo federal.
-- Não dá, seu Renan. Tem outra coisa que impede definitivamente.
Uma pausa estratégica. Renan Gross inclina-se para frente, o corpo todo falando de sua ansiedade e expectativa.
-- Essa semana inglesa é uma coisa criada pelos ingleses e adotada pelos americanos. Até o FMI aprova. E nós não podemos, em absoluto, fazer nenhuma lei que vá de encontro ao FMI. Seria motivo até para uma intervenção no município. E quem pode prever? Pode acontecer até uma retaliação do Fundo Monetário Internacional .
Retira da gaveta uma pasta de cor verde:
-- Tenho um dossiê sobre o assunto. Podemos até perder votos na próxima eleição, você sabe o poder de fogo dessa multinacionais. Você corre o risco de não se reeleger.
Abre a pasta , folheia algumas folhas. Faz, sem pressa, deixando que suas palavras entrem bem fundo na cabeça teimosa do outro político .
-- Não, não dá, meu caro Renan. A ocasião não é propícia, vamos aguardar. Quem sabe, quando o Brasil não tiver de obedecer às determinações do FMI, o senhor poderá fazer valer a sua idéia, a sua lei que propõe o fim do fim-de-semana, não é mesmo ?
Renan Gross escutou com atenção o velho líder. Se era assim como ele dizia, então tinha de dar um tempo, deixar para uma ocasião futura.
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Naquela noite, a abafada sala de reuniões da Câmara de Vereadores estava apinhada de assistentes. A notícia da maluca idéia do vereador tinha corrido mundo, espalhada pelos jornais e pelos diz-que-dizem . Tinha gente até da vizinha capital do Estado, repórteres, gente do rádio e da televisão, em busca de notícias sobre a estapafúrdia idéia do vereador de Coxilha Verde.
Renan Gross foi o primeiro orador (previamente combinado com o Presidente) a ocupar a tribuna. Elegante, dentro do seu terno de linho 120, de severas linhas, bem penteado e barbeado, impassível ante o burburinho da galeria.
- Senhor Presidente, caros colegas. Tendo em vista o mais alto interesse da Nação, e sabedor de que uma reação internacional poderia ser desencadeada contra nosso País, caso a lei que ontem foi por minha pessoa proposta a essa Egrégia Câmara, venho retirar da pauta de votação o projeto-de-lei. Espero confiante que dias melhores advenham para nossa pátria, de tal forma que, libertando-se dos grilhões que a subjugam ao Fundo Monetário Internacional e outras nocivas entidades internacionais, cessadas as interferências externas sob nossa soberania, possamos um dia voltar a discutir o fim do fim-de-semana. Tenho dito!
ARGOS = ANTONIO ROQUE GOBBO - Belo Horizonte - 9 de abril de 2000.
Conto # 17 da Série Milistórias
Publicado em “A Loucura do Cristal”, vol. 1 da Coleção Milistórias