INIMIGOS DO PEITO

Mais uma história de Jerimundá, a cidade fictícia onde acontecem coisas que você lê e jura que já presenciou algo assim.

Diz que nasceram no mesmo dia, na mesma hora. Parteira Geralda estava assessorando os trabalhos de Dona Ambrosina na casa de Seu João do Ó, quando Expedito Canavieiro aparece na porta, gritando desesperado:

_Oh Cumpá João! Cumá Gerarda de Deus, acode Joana, pelo amô de Deus. O bicho pontô a cabeça e vem que vem, Joana ta gemendo que nem vaca com cria travessada…

Inda bem que os Compadres moravam de porta a porta. Parteira Gerarda orientou Ambrosina a fechar as penas, respirar pra dentro, correu rebolando a lordose e entrou esbaforida na casa do Canavieiro:

_ Uai, Cumá Joana, vamos espremê esse bicho pra fora. Vai. Reganha as perna, muié. Morde a lençor e força. Traz a bacia dágua, Cumpá Dito. Dexa na porta e arriba. Home pode vê essas coisas não. Eta diacho, que o bichim ta vino quente.

_ Corre, Cumá Gerarda. O bicho escapou das coisa lá da Brozina. Tá lá dependurado pela barriga. Corto ou num corto a corda? Era João do Ó, esbravejando na porta.

_ Minha nossinhora. Corte não, Cumpá Jão. Remedeia as coisa por lá que já dispacho esse caso aqui e tô ino… Espreme, Cumá Joana. Ah meu Deus, espirrô. Vem Cumpá Dito. Seu fio rebentô aqui.

Canavieiro na porta:

_ Cruz credo, oh baita, Cumá Gerarda. Joana, minha fia, esse danado deve tê cabado concê. E ri gostosamente.

_ Traz a tesoura, Dito e dexa de trololó. Sigura o bichim aqui, que Cumá Brozina tamém disimprenhô lá… Eh função!

Nasceram juntos, cresceram juntos. Jãozim do João do Ó e Ditim Canavieiro. Juntos, chuparam manga, roubaram cana, comeram araçá e araticum no pasto. Espantaram novilhas, arrebentaram os dedões nas mesmas pedras, beijaram as mesmas meninas, enfim, eram unha e carne, batom e lábio. Casaram-se com irmãs gêmeas e batizaram os filhos mais velhos um do outro.

A política os separou…

Homens feitos, Jãozim do Ó e Ditim Canavieiro foram convidados a participar do quadro eleitoral.

Pra dar continência da história, é preciso entender o cenário político de Jerimundá. De um lado, havia o grupo do emérito prefeito permanente e em contínuo exercício eterno, vitalício (por vezes representado por algum testa de ferro) e hereditário, Dr. Jacinto Pinto Aquino Rego, o Cintim do Rego, nome deveras pornograficamente reconhecido nas redondezas e quadradezas da região. Eram os Jerimuns do alto. Do outro, os Jerimuns de baixo, liderados pelo Dr. Ponciano Porfírio Preferido e Pontes, um nobre vindo do vizinho município de Dores da Causa Íntima, radicado em Jerimundá há décadas e conhecido como opositor contínuo, perdedor contumaz e responsável por espinafrar o Cintinho do Rego em cem de cem ações desenvolvidas.

Os Jerimuns do Alto procuraram Jãozim do Ó:

_ Tamo precisando do seus serviços, seu Jãozim. Caboclo bão, entendido das leis e das necessidade do povo, como o senhô, precisa alinhá com Cintim do Rego, uai.

_ Mai eu num sô home de política, num intendo nada dessas pataquada de eleição, voto, essas coisa.

_ Pois é, Ditim Canavieiro diz que é, né?

_ Ditim? Na política?

_ Pois é. Fechadim com os Jerimum de baixo. Diz que ocê, se candidatasse, num tiraria voto ninhum, mai ele…

_ Uai, que disgrama. Vamo vê isso. To conceis, uai.

Com Ditim Canavieiro, foram os Jerimum de baixo. A mesma conversa. E não é que os dois se elegeram?

A primeira ação do vereador do Ó foi erguer um muro separando o seu quintal do de Ditim. Canavieiro, pra não ficar atrás, lascou mais duas fieira de tijolo e encompridou o muro pra cima. Nascia ali uma disputa que se estenderia pro resto da vida daquelas famílias, até os dias de hoje.

Mas, a ação que marcou a inimizade dos dois aconteceu em uma reunião da Câmara Municipal, evento tão emblemático que virou ditado presente na boca de dez entre dez jerimundanos, mesmo décadas depois.

“Estava Ditim, como de costume, já no terceiro sono, quando, no plenário, entrou uma pauta qualquer entrou em votação. Voto aberto, por sinal. Cutucado, Ditim Canavieiro acordou assustado, olhou em volta, ainda zonzo e soltou:

_ Que que foi gente?

_ Vota Ditim, gritaram uns três edis de uma só vez.

Ditim olhou em volta, ficou sem jeito de perguntar o assunto. Pensou, pensou e teve uma epifania.

_ Cumpá Jãozim do Ó votô?

_ Votô home, farta só ocê disgrama. Respondeu um vereador impaciente, doido pra voltar pra birita.

_ Intonce, se Cumpá Jãozim do Ó foi a favor, eu sô contra. Se Cumpá do Ó foi contra, eu sô a favor.

A Câmara ruiu numa risaiada sem fim.

_ Tenho dito, completou Ditim.

Estava decidida a questão.

E até hoje, quando um jerimindano está diante de uma escolha difícil, solta logo:

_ Se Cumpá Jãozim do Ó…