015 - A VIAGEM
Pela primeira vez viajava em ônibus noturno. Meio desconfiado, entregou a passagem ao motorista, na porta do veículo, e foi entrando. Na mão, levava a maleta, a mala maior já tinha sido acomodada no bagageiro, o tíquete estava ali, junto com a passagem.
Sebastião não gostava de viajar à noite. Para ele, “a noite foi feita para o amor”, dizia aos amigos e colegas, traduzindo o título da canção de Jerome Kern.
Esta era uma viagem de última hora , Sebastião fora chamado à Capital para uma entrevista no Hospital Santa Cecília, na qual se candidatara a uma vaga de médico-residente.
Sua poltrona era ao lado da janela. Assentou-se e já procurou estirar as pernas. Experimenta o conforto do local onde passaria as próximas 7 horas, duração do percurso da viagem noturna de sua pequena cidade à Capital do Estado.
- Com licença, esta poltrona já está ocupada? – a pergunta veio de um senhor que procurava sua poltrona, exatamente aquela ao lado de Sebastião.
- Não, não. É a poltrona 13, é a sua ?
- Sim. Hoje não tive jeito de escolher outro número. Não sou supersticioso, mas fico meio desconfiado. – O senhor alto e magro, trajando terno completo, com camisa branca e engravatado sentou-se na poltrona 13.
- Não há pelo que temer, fui informado de que os motoristas desta viagem noturna são mais cuidadosos, especialmente treinados para estas viagens.
Na verdade, Sebastião havia se informado com cuidado, sobre a viagem. Seu espírito calmo, tranqüilo o levava a programar cada dia e cada passo de sua vida. Não fazia nada sem pesquisar, indagar, saber dos detalhes, enfim. Tinha certeza de que aquela vigem seria calma, repousante, e que ele estaria tranqüilo na manhã seguinte, apto para enfrentar a entrevista importantíssima para sua vida profissional.
A viagem começou no horário previsto. Às vinte e duas horas o ônibus deixou a estação rodoviária e logo chegou à rodovia. O veículo estava quase lotado, havia apenas umas quatro ou cinco poltronas vazias.
- Muita gente viajando esta noite – comenta o vizinho.
- E as poltronas vazias provavelmente serão ocupadas por passageiros que embarcarão na próxima parada. – Sebastião se acomoda melhor, desdobrando o cobertor.
Uma chuva fina começou a bater no vidro da janela. Sebastião ensaiava um cochilo, embalado pelo suave barulho das rodas sobre o asfalto molhado, e enrolando-se sob o cobertor.
De repente, um barulho selvagem, rascante ouviu-se por todo o veículo. Peças mecânicas atritanto-se violentamente, um ranger estridente de metais , que começava lá na cabine do motorista, e vinha para a parte traseira, através do cano da transmissão.
- Putz ! Que susto ! - exclamou Sebastião, sem poder se conter. - Que raio de barulho é esse?
- Provavelmente algum defeito na caixa de câmbio. Parece que a trepidação passa por debaixo do ônibus, pelo cano da transmissão.
O barulho durou alguns segundos, parou tão logo o motorista, numa mudança hábil de marchas, passou para uma marcha de mais força. Mas, a partir daquele momento, voltava o barulho toda vez que era necessário, numa subida ou descida íngreme, reduzir a marcha do veículo.
A intensidade do barulho era aumentada ao máximo devido aos períodos de silêncio entre uma e outra mudança de marchas. A partir de então, alguns murmúrios foram crescendo até se transformarem em conversa animada, acabando por completo com a possibilidade de puxar um cochilo, muito menos de dormir durante a viagem.
Como estavam a poucos quilômetros da próxima parada, o motorista nem parou na estrada para verificar o que era. Sabia de ouvido do que se tratava e previa que a viagem iria ser terrível.
Ao encostar o ônibus na minúscula estação rodoviária de Piraú, foi indagado por diversos passageiros, Sebastião entre eles, sobre o barulho.
- É na caixa de câmbio, a segunda marcha não pega, deve ter moído a engrenagem.
- E vamos prosseguir assim mesmo?
- É o jeito, por aqui não tem como consertar.
Protestos de alguns passageiros, conformismo por parte de outros. Sebastião se preocupava principalmente com sua entrevista: uma noite sem dormir seria cruciante. Na certa estaria cansado e amassado na manhã seguinte.
Contudo, nenhum passageiro pensou em abandonar a viagem. As poltronas vagas foram todas preenchidas: um homem idoso, aparentando 70 anos, sentou-se na poltrona logo à frente da fileira de Sebastião.
Nos dois assentos bem lá na frente sentaram-se duas mocinhas, ambas loiríssimas, muito vivas, roupas moderninhas, cabelos de corte curto. Chamando a atenção de todo mundo.
Com um forte bafo de cachaça passou um passageiro rumo ao fundo do corredor. Além do cheiro, o passo e as roupas amassadas denunciavam um amigo da “branquinha”.
A viagem, até então um tanto perigosa devido ao defeito mecânico do ônibus, transformou-se num verdadeiro pesadelo, a partir do ingresso desses passageiros.
O velho, tão logo assentou-se, disparou a tossir, uma tosse comprida, que o fazia ir dobrando o corpo, tossindo sem parar, até quase encostar a cabeça nos próprios joelhos. Sebastião diagnosticou de imediato uma crise causada pelo tabagismo do velho senhor, cujos pulmões já estariam totalmente cobertos pela nicotina de milhares de cigarros através dos tempos. A próxima etapa, pensava o jovem médico, será o enfisema, se não morrer de um ataque do coração.
As mocinhas desandaram numa conversa alta, entremeada de risinhos histéricos e troca de tapinhas entre elas, estralados como traques, pipocando sem parar.
O camarada mal-ajambrado, malcheiroso, acomodado no fundo, no último banco, começou a se manifestar com voz pastosa:
- Ô motorista, pára essa carroça, ninguém agüenta essa lata velha ! Que barulheira, seu !
O que parecia ser uma noite de repouso(pelo menos Sebastião assim desejava) virou uma verdadeira balbúrdia sobre pneus. O cobrador foi chamado duas vezes para acalmar o bêbado, inutilmente. Mas, apenas o cobrador virava as costas, se acomodava na cabine com o motorista, lá vinha de novo o vozerio pastoso e alto do inconveniente passageiro, reclamando de tudo e de todos. Protegido e encorajado pela escuridão, aumentava cada vez mais o tom de voz, num crescendo que se tornou insuportável.
Foi quando o vizinho de Sebastião levantou-se abruptamente e foi até o fundo do ônibus.
- Olha aí, camarada, cala essa maldita boca de uma vez! Se você não ficar quieto, mando parar o ônibus aqui mesmo e boto-lhe pra fora !
- Ô amizade ! (hic!) Cê é dono do ônibus ! Cê comprou todas as passagens ? (hic! ) Qual é a sua, cara?
- Camarada, sabe com quem tá falando? Sou major do exército, mando aqui e em qualquer lugar. Cala a boca!
Silêncio profundo e sinistro dentro da mais negra escuridão. O major volta a sentar-se.
O bêbado calou-se de vez, não deu mais um pio. Acatou as ordens, um recruta flagrado desrespeitando o regulamento militar.
Mas a viagem estava mesmo destinada a ser inesquecível – terrivelmente inesquecível.
O velho senhor continuava tossindo, não havia como amenizar sua situação. As duas loiras tambem continuavam sua algazarra lá na frente da qual -- estranho! -- ninguém reclamou . E o defeito do veículo continuava. A cada mudança de marcha era aquela parafernália sonora, um tonitruante rascar de metal.
Sebastião admirou-se da ordem dada pelo major.
- O senhor então é major ! Gostei de sua reprimenda no cidadão lá no fundo.
- Que major, que nada ! – cochichou-lhe o outro – Aqui no escuro todos os gatos são pardos ! Sou mesmo é farmacêutico !
Sorrindo do expediente usado pelo vizinho de poltrona, Sebastião tentou novamente tirar um cochilo. Inutilmente.
Quatro horas depois, chega a viatura ao ponto de parada de Divinópolis. São duas horas da madrugada, ninguém dormiu, todos estão cansados, mal-humorados.
- Gente, -– o motorista procura dar uma animação á própria voz –- o negócio é o seguinte: neste ônibus não vai dar pra prosseguir a viagem. Vamos ter que esperar um ônibus extra, que deve chegar de Belo Horizonte. Não é tão confortável como este ( risinho de sarcasmo ), mas vai dá pra finalizar a viagem.
Os passageiros se espalharam, uns entraram para o bar, outros foram aos sanitários. Sebastião e o vizinho conversavam perto do ônibus.
- Puxa vida, nunca enfrentei uma viagem como esta. – o falso major (ou farmacêutico real) reclamava discretamente – Também, quem manda comprar logo a poltrona número 13! Estava escrito !
- Não é por sua causa, não. Olha só quanto tipo estranho dentro do ônibus. E ninguém podia prever esse defeito no veículo.
Então chega o velho senhor que tossia, tossia.
- Pois é, a viagem até que tava boa, num fosse aquelas duas loirinhas lá na frente, conversando o tempo todo, parecendo duas maritaquinhas !
ANTONIO ROQUE GOBBO - Belo Horizonte - 23 de março de 2000 -Conto # 15 da Série Milistórias –
Publicado em “A Loucura do Cristal”, vol. 1 da Coleção Milistórias.