014-MARIA CEGUINHA

Morava no local mais miserável da cidade, a Coréia: um amontoado de casebres feitos de tábuas de caixotes, paredes de pau-a-pique, cobertas com plásticos, pedaços de latas, e até com sapé.

O nome da favela já era a evidência da sua pobreza: começou a ser habitada ao mesmo tempo em que, do outro lado do mundo, acontecia um conflito pavoroso, localizado na península coreana.

O casebre de Maria Ceguinha, por estar quase no final da ribanceira, sofria constantemente quando chovia, pois a enxurrada passava pela sua porta da frente e, inúmeras vezes, chegou a inundar a pequena “sala” e a cozinha, contígua.

A bem da verdade, havia apenas algumas cadeiras na “sala” e o fogão de lenha, na cozinha, o que fazia a diferença entre os dois cômodos. Havia ainda o quartinho, onde dormiam Maria Ceguinha e o garoto Sebastião, sobre catres de varas grossas, sem colchões, cobertos com panos e cobertas ralinhas.

Sebastião aparentava ter uns 12 anos, magro, raquítico. Orgulhosa, Maria Ceguinha apresentava:

- É meu querido netinho, a mãe morreu quando deu à luz. O pai caiu no mundo, ficou o minino pra mim. No começo foi difícil. Mas agora já tá grandinho, vai na escola, quase num me dá trabalho.

Era difícil imaginar como uma velha cega conseguia cuidar direito de uma criança.

- Quando ele nasceu, eu num era cega, não. Mas fui perdendo a vista, e agora só enxergo uns vultos. Não distingo mais nada, nem dinheiro, nem cor de roupa. Sei que é de noite quando escurece. Tomo cuidado pra não deixar a lamparina acesa, que pode tocar fogo no barraco.

A situação de pobreza de Maria Ceguinha causava pena a todos os que a conheciam. Entretanto, os componentes do Grupo de Voluntários de Ação Social que visitavam a área em um trabalho de muito mérito, tinham uma verdadeira admiração pela pobre mulher.

Pobre ela era, sim, mas de uma riqueza espiritual sem fim. Antes de perder a vista, ajudava todo mundo, com palavras de ânimo, entusiasmo, rindo da própria miséria, dando o exemplo de fortaleza e fé.

O marido Tonhão tinha sido um tormento na sua vida, cachaceiro de cair nas sarjetas: jamais foi repudiado por ela. Cuidava de seu homem com carinho, dava-lhe alimento e alento, embora todo seu esforço fosse em vão. Quando morreu, os vizinhos acharam que tinha sido um alívio para Dona Maria, que nem era cega então.

Mas ela sentiu - e como ! – a morte do marido. Ficou triste por uns tempos, curtiu o seu luto; depois de uns meses, deu o assunto como encerrado e voltou, animada, distribuindo coragem, ânimo, risos para os companheiros de infortúnio.

Todos os dias Maria Ceguinha ia à cidade em busca de comida e esmolas para sua sobrevivência e do garoto.

Era totalmente banguela, e tinha bom humor para gozar a falta de dentes:

- Óia a boca, nem um dente pra cumer feijão...rá-rá-rá...

Nunca ficava triste ou falava mal de sua situação. Andava gingando pelo meio do passeio. Quem não tomasse cuidado era abalroado pela velha.

Passava pelas casas onde habitualmente recebia uma esmola, resto de comida, alguma roupa e calçados para o garoto. Ela sempre andava descalça.

Tinha um roteiro para suas andanças. Tinha, também, as pessoas que habitualmente a ajudavam.

Dona Terezinha era uma dessa almas caridosas, que todo dia reservava um donativo para Maria Ceguinha.

- Olha, Dona Maria, hoje tem este resto de comida do almoço, a senhora leva pra comer de tarde.

Ou:

- Hoje a senhora vai levar esse casaco que eu não uso faz anos, mas ainda tá bom pra esses dias frios.

Maria Ceguinha recebia sempre com muita alegria, o riso frouxo escapando na boca por entre as gengivas vermelhas.

Dona Terezinha se preocupava com a situação precária de Maria Ceguinha. Tanto que conversou com o Miguel, antigo funcionário do INSS, a fim de conseguir uma pensão para a velha.

- É difícil, dona Terezinha. Mas vamos tentar.

O processo durou uns dois anos: foi feito um levantamento da vida da ceguinha, com arrolamento de testemunhas de que ela sempre fora uma mulher trabalhadeira, que não tinha nenhuma renda, etc. Coisas da burocracia.

O esforço valeu a pena. Uma pensão foi conseguida, motivada pela idade superior a 65 anos e mais a comprovação de que Maria Ceguinha precisava realmente de um sustento.

Quando ficou sabendo da pensão, foi através de Dona Terezinha.

- Ô, minha Nossa Senhora da Aparecida ! Que coisa mais boa, essa pensão ! Graças à senhora, dona Terezinha ! Deus lhe pague !

A alegria e o contentamento de Dona Maria Ceguinha eram indescritíveis. Só faltou beijar as mãos de Dona Terezinha.

- Ora, dona Maria, a senhora merece, precisa mesmo desse dinheirinho certo pra poder se manter. E o Sebastião tem de continuar na escola. Com este dinheiro ele não precisa ficar aí pela rua procurando biscates para fazer.

E, na sua alegria e inteireza de princípios, Dona Maria Ceguinha saiu-se com essa:

- Pois é, dona Terezinha, de agora em diante a esmola que a senhora me dava pode reservar pra um outro pobre. Graças a Deus, eu num preciso mais amolar a senhora com esmola, não senhora.

ANTONIO ROQUE GOBBO - Belo Horizonte, 09.03.2000 -

Conto 014 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 27/02/2014
Reeditado em 08/09/2014
Código do texto: T4708940
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