A FILHA DA PUTA
Estava pensando na vida parada em frente a um carro preto. Ajeitava o cabelo, passava o dedo nos lábios. Abria a bolsa, tirava de lá um lápis preto e contornava o olho. Via-se no retrovisor. Piscava o olho. Pelo retrovisor, atrás de si, via a igreja da Consolação. Vezes tinha vontade de chorar, vezes não. Emocionava-se. Passava a mão nas orelhas e percebia que estava sem os brincos: “Se ao menos tivesse umas argolas douradas...". Vestia uma minissaia jeans envelhecida, esfiapada nas pontas e blusa branca com caricatura de Jane Joplin.
Era tarde do dia, ainda cedo para a noite. Um carro mais adiante faz sinal de sair e logo corre para tirar o papelão e pedir alguns tostões. Nada. Mãos vazias. É chamada pela ocasião quando o dono do veículo faz sinal para que se aproxime do carro: “Se tiver a fim de ganhar alguns tostões". Um rapaz jovem, de dentro do carro, tocando nas partes já em sinal de intenções mais íntimas. A moça tira a mão do bolso. Fica estranha. Pensa por segundo e mostra-lhe o dedo erguido: "Você aguenta?". Silêncio. O carro sai em disparada. A moça volta, junta papelões. Mais um carro no espaço. Suor no corpo. Fome. Os pés calçados com meia e tênis. Calor. Saudade de casa.
Parada. No lugar de antes. Pensativa. Vontade de se agredir e de sorrir ao mesmo tempo. Toca o sino da igreja. Voam os pombos. Os mais velhos põem milho aos pombos. As velhas senhoras carrancudas, de sombrinhas nas mãos, e véu, e terço sobem os degraus da velha igreja e ela senta de cansaço no meio fio. Do meio fio uma vontade de ser gente. Grita para um carro mais adiante, mais adiante ainda há tempo de pedir um trocado e aberto o sinal, para, fecha-se em si. Vontade de tomar sorvete. Um vento passa levando um papel, do papel se sente amassada. Pensa. Na vida. Vontade de comer pizza, beber Coca-Cola e arrotar. Mais uma vez de frente ao carro preto, no retrovisor, ajeita o cabelo, mostra a língua e uma pontada de dor de dente. Vê-se refletida em si, olho a olho, como nunca antes. Uma força uterina a nascer em si e fora de si, sente-se desconsertada, pálida, ávida pelo agora ou nunca e como nunca se vai com o vento, vai a procura da consolação para seus conflitos.
De súbito entrou na igreja. Encantada. A música trazia paz para sua alma, pensava. Todos os olhares voltados para ela e seus olhos fechados, mergulhados nos acordes do órgão. Mais adiante os braços da Santa abertos para ela. Como num sorriso. Música. Vozes. No altar o padre dizia palavra sobre o corpo de Cristo. O sangue. O convite para a ceia do senhor. Todos de pé. Ela ali. Estranha. Os braços da virgem, a voz do altar, um embrulho no estômago e a vontade de sair correndo em pleno estado de inércia. Pasma. Vozes, música, corpo de Cristo, vinho, sangue, embriagues, estranha e de frente a santa que lhe estendia os braços e a voz que rezava o credo, a oração tantas vezes ouvida enquanto o sono era embalado... concebido pelo espírito santo... padeceu... morto... sepultado... ressurreição... Correu como um pombo. Livre, sem direção. Seguiu pela rua estreita, por trás da igreja, encontrando tumulto da vida pelo desespero de pedestres querendo chegar em casa. Sente-se estranha. Sente-se suja. Sente-se como nunca. Como nunca tem vontade de sumir e uma vontade de ir ao banheiro a conduz ao mercado público. Vomito negro. Cólera. Banha o rosto na pia e o cheiro da infância, a lembrança da mãe. Som de vozes no íntimo... o corpo de Cristo... O sangue do cordeiro... A comunhão... A água saindo na torneira, o rosto molhado a borrar o rosto todo. Gosto de lápis na boca. Gosto de solidão. Escuro. O tempo muda. Do outro lado a missa acaba e a igreja começa a esvaziar.
No banheiro a água encerra. Torneira fechada. Coração em lacre. Sai do banheiro, caminha entre as bancas do mercado, toca alguns vestidos, põe chapéu, dança suave pelos corredores. Senta-se no colo do cadeirante vendedor de pilhas, tira cigarro da boca do cambita, pergunta o palpite do bicho, belisca o bumbum do vendedor de calçados e pela calçada desce, encontra a rua, a luz restante da tarde, a pequena escuridão da noite. Carros, buzina, poeira e gritos de gente por todos os lados. Sentimento de alívio, de alma lavada. Ela vai, se vai, atravessa a rua, sobe a calçada da igreja. Entra na igreja, ajoelha-se, reza, chora, sorri. Uma vontade de tirar a roupa, de ficar nua, de se dizer: Maria Estela, analfabeta, vinte anos, pastoradora de carro. Moradora da favela do alho. Mãe aos treze anos de idade sem querer. Sem querer tocada a ferro e forca. No mato. Ferrada pelo homem bruto, pelo macho no cio. As carnes defloradas pelo tosco que lhe queria enquanto ela perdia as forças. Vencida pelo cansaço. Ensanguentada, jogada no mato, diferente de antes. Chorava sangue enquanto a mãe a procurava pela casa das vizinhas e se falasse perderia a cabeça. O filho desconhecido, dado para ser criado. Usuária de crack de vez enquanto. A mãe enlouquecera pensando ser castigo do céu. Maria do céu, pulara da ponte e do mergulho não voltou mais. Sozinha no mundo, sem ninguém, sonhava de dia e de noite em ser gente..."Alguém pode me ajudar, por favor?". Só o eco, a igreja e a preocupação do sacristão com o choro da mulher ali parada, piedosa, descontrolada.
O homenzinho sai correndo, suplicando ajuda, quando a moça resolve tirar a roupa, se aproxima do altar, em pranto, solícita, pensativa, nua. Apenas querendo sentir o abraço da virgem da Consolação. Ali, no altar da igreja, entregue como oferta. Dentro de si a musicalidade do órgão. A música que fazia seu coração ferver. Fervorosa, suplicante, piedosa, mansa como ovelha. Encantada, entregue as lágrimas e ao silêncio da mansidão do altar. A virgem piedosa como a sua mãe, de braços abertos.
Vem o padre, aproxima-se da jovem mulher. Um homem alto, aparentando quarenta e cinco anos, olhos e cabelos castanhos. Ainda usava a batina escura e esta acentuava a cor da cútis. Vem a passos mansos, ensaiando um sorriso e gestos concentrados. Faz o sinal da cruz, movimenta o terço que carrega na mão e vem ao encontro da ovelha, como o Bom Pastor, para trazer-lhe a consolação. Suavemente vai abrindo a boca de lábios roseados, a mostrar os dentes brancos. Pergunta quem é e a olha nos olhos. A moça o vê ali, ao seu lado. Cai no choro. O padre ainda tenta uma aproximação e um eco é explodido quando a mesma diz:
_ Sou eu, pai, não se lembra de mim? Maria Estela, a filha da puta que o senhor fez o favor de por no mundo.
Comoção. Choro. Comunhão. O corpo de Cristo ali, os braços da virgem, a sagrada família no altar.