010 - GENTE FINA É OUTRA COISA !

No ônibus lotado, Seu Argemiro consegue um lugar para assentar-se. Seus cabelos brancos despertam a atenção dos passageiros e logo um assento é oferecido. A rigor, Seu Argemiro nem precisava pagar a passagem, poderia ficar na parte da frente do ônibus, ocupando um dos bancos no espaço reservado aos idosos, às mulheres grávidas ou com crianças ao colo. Seus cabelos embranquecidos prematuramente acrescentam alguns anos à sua aparência e isso não o aborrece. Pelo contrário, tem orgulho da juba alva.

Sentado num banco quase no fim do ônibus, ao lado de uma jovem loirinha, percebe a senhora passando pela catraca, com alguns pacotes. Trocam olhares, Seu Argemiro faz um sinal quase imperceptível convidando-a a sentar-se no banco. Levanta-se quando a mulher ainda está a alguns passos, espremendo-se entre os passageiros que viajam em pé.

- Por favor, minha senhora, assente-se aqui.

Outra senhora em pé e logo ao lado de Seu Argemiro , sem perceber o convite feito à passageira, assenta-se no banco desocupado. Dá-se conta, entretanto, da gafe cometida, quando chega a senhora convidada, com seus pacotes dependurados pelos braços, ofegante.

- Oh, perdão ! Não percebi que a vaga era para a senhora. — Levanta-se e deixa o banco novamente vago.

As duas senhoras se confrontam: parecem iguais na idade, ambas do tipo baixinha-gordinha. Agora nenhuma das duas quer parecer mais velha, e ambas cedem, reciprocamente, o assento.

- Por favor, assente-se a senhora.

- Oh, não, a senhora tem preferência.

Assim, cada qual quer parecer mais jovem ou menos idosa.

- Essa não ! –

Seu Argemiro , de pé, encabulado pensa: “Eu desejando fazer uma gentileza e agora essas senhoras fazendo luxo pra ver quem se passa por menos idosa. Essas mulheres...”

Por alguns instantes fica o suspense, nenhuma das donas quer assentar-se, pois na cabeça de ambas está a certeza de que quem aceitar o assento se confessa mais idosa.

A situação só se acerta quando a jovem loira, assentada na outra parte do banco, levanta-se e oferece:

- As senhoras podem se assentar juntas.

Que alívio. Ambas se assentam e se põem a matraquear alegremente, satisfeitas por ficarem ambas no mesmo patamar etário.

A loirinha se posta de cara amarrada à frente de Seu Argemiro. A viagem prossegue, são mais alguns minutos até o centro da cidade.

- Pelo jeito – divaga Seu Argemiro – a loirinha aí não gostou nada da minha gentileza. Na certa, ela deve estar pensando: “ velho babaca, devia mais é ficar lá na frente, no curralzinho dos velhinhos, em vez de vir aqui bancar o elegante e bem-educado”.

2

- Toninho, vai chamar Tio Armando, que o almoço tá na mesa !

Corre Toninho atravessando o Jardim Novo, rumo à alfaiataria onde trabalha Tio Armando.

- Puxa, todo dia é a mesma coisa ! - caminha apressado pensando Toninho – Todo dia o almoço fica pronto às 11 horas, e todo dia tem que chamar o Tio.

Na pressa, nem percebeu Charnata, o rachador de lenha, que trabalhava ao lado do portão de entrada da casa. Suado e sujo, descendo o machado sobre as pequenas toras de madeira e desmanchando-as em achas e lascas apropriadas para o fogão da cozinha.

É um tipo esse Charnata: grandalhão, tem quase dois metros, forte, seus braços, tórax, pernas são pura musculatura. Idade indefinida: tanto pode ter 30 como 50 anos, ninguém se preocupa em adivinhar. Vive de rachar lenha, o que lhe proporciona exercício diário e manutenção de seu físico avantajado. Por força do ofício e por desmazelo anda sempre sujo, a calça rasgada nas bainhas, descalço sempre. Ao trabalhar, tira a camisa e fica com o dorso exposto, o suor escorrendo desde a testa, nuca abaixo e molhando o cós da calça. Usa o machado com vigor e maestria, cada machadada fende o tronco em dois. Para os troncos mais grossos usa uma cunha de metal que multiplica o efeito da machadada. E a cada vez que desce o machado sobre a tora acompanha o movimento um sonoro “Uáaaa!”, e então o ar se enche de sons, o machado sobre a lenha, os gritos do Charnata, a lenha rachada sendo jogada para os lados. O chão fica coalhado de farpas e gravetos, sobre os quais Charnata anda, pula, afia o machado, separa os pedaços já rachados.

Charnata é isto mesmo: uma barulhenta e imunda máquina de rachar lenha. Pouco fala e só resmunga para combinar o serviço, não dá bom dia nem até amanhã nem obrigado. Além de sujo, sem educação.

Hora de almoço. Na cozinha a mesa é forrada com a toalha, pratos e talheres são colocados, as cadeiras arrumadas ao redor. Dona Maria chama Seu Pedro, ocupado como sempre, em sua pequena oficina de marceneiro no fundo do quintal. Prepara o prato para o Charnata, antes de colocar à mesa a bacia de salada, as travessas e panelas com comida.

- Senta aí, Pedro, enquanto preparo o prato pro Charnata.

Dona Maria rapidamente coloca de tudo um pouco num prato fundo : sobre o arroz com feijão, carne e chuchu picadinho, uma porção avantajada de salada de alface.

Leva o prato feito para Charnata, que interrompe seu trabalho. Senta-se numa tora e começa a revolver a comida, procurando por debaixo da salada o arroz e o feijão. Não gosta de salada nem de legumes, sua preferência é arroz, feijão, farinha e carne.

Conversando animado com Toninho, chega Tio Armando. Solteirão , sempre morou com a irmã e o cunhado em harmoniosa convivência. Educado e cordial, tem sempre uma palavra amiga, um conselho, um sorriso para todos. Alto, muito loiro, olhos claros, elegante, o porte garboso de ex-militar, sua figura impressiona até mesmo as pessoas com as quais lida diariamente, e é modelo para os sobrinhos e amigos mais jovens. Um verdadeiro gentleman.

No que vê Charnata esgravetando seu prato, dirige-lhe um cumprimento apropriado ao momento:

- E aí, Charnata, passando bem, hein ?

E o Charnata, com a falta de educação que lhe é peculiar:

¬- Qual o quê, sô ! Desde quando cumê verde é passá bem, seu fio duma puta !

3

- Vamos lá em Jacuí comprar uma mudas de jabuticabeiras ?

O convite feito assim, às pressas, pegou de surpresa Paulinho , que já tinha uns planos para aquele sábado ensolarado. Mas visitar a Fazenda do Estado de Jacuí e adquirir algumas mudas de árvores frutíferas era também uma boa maneira (aliás, unia o útil ao agradável) de passar o sábado.

- Vamos sim, Amaral. Deixa só eu trocar de roupa e calçar as botinas.

E partiram no velho jipe do Amaral. Bom companheiro, boa prosa, causos sem fim, o Amaral estava sempre andando pra lá e pra cá, entre fazendas e sítios do município. Ele mesmo era proprietário de uma chácara próxima à cidade, uns 10 alqueires que começavam nos fundos do campo do Operário Futebol Clube e subiam até o alto do Morro Vermelho.

- Aproveito pra comprar também umas plantas. Estou precisando cortar uns pés de mexericas ponkã que já estão com mais de 10 anos, não produzem mais nada. Posso trazê-las aí no seu jipe, Amaral ?

- Claro, não vou comprar muita coisa .Lá tem umas mudas especiais de laranjas, mexericas.

Pelas estradas vicinais, comendo poeira, seguiram os dois amigos, companheiros de noites inesquecíveis, caçadas perigosas, pescarias memoráveis.

- Ei, por que não aproveitamos e fazemos uma visita pro Tião Borgia? Ainda é cedo, temos a tarde toda pra frente, dá tempo. Ele mora bem perto da igreja.

Animado pela lembrança, Amaral foi fazendo o jipe circular a pracinha e parando em frente à casa do amigo que há tempos não via.

- Cê que sabe. Olha que ele gosta de muita conversa, quando começa com seus causos, é difícil de parar.

Duas buzinadas curtas e freava o jipe, anunciando a chegada. Logo na porta, apareceu o Tião, cara de surpresa que se transformou num sorriso largo.

- Uai, gente, óia quem tá aqui ! Toninho ! Amaral ! Vão descendo, gente, vão chegando !

Abraços apertados, mãos batendo nos ombros, agitando poeira.

- Quanto tempo, hein ? Desde aquela viagem no Rio Verde, faz mais de cinco anos ! Mas vamos entrando, fiquem à vontade. – animado Tião Borgia encaminha os amigos para a sala e grita para o interior da casa:

- Mãnhê, óia só quem tá aqui, meus amigos de Guaranésia, o Amaral e o Toninho !

Surge dona Emerenciana, magra, alta, o rosto emoldurado por lenço que lhe esconde os cabelos, saia comprida arrastando no chão, avental limpo, no qual enxuga as mãos.

- Prazer. Emerenciana.

- Muito prazer, sou Paulinho . – Apertam-se as mãos D.Emerenciana e o visitante.

- Este aqui é o Amaral – todo sorrisos apresenta Tião o amigo.

- Prazer, D. Emerenciana. A gente ia passando, lembrei de ver o amigo aqui. Faz tempo, hein?

- Mãe, prepara um café pros amigos.

- Agora mesmo – retira-se D. Emenciana prometendo um cafezinho passado na hora.

Animados, os três se põem a conversar. Assunto é o que não falta. Coisas de agora, cada qual contando o que está fazendo. Coisas do futuro, os planos e sonhos dos três, e as recordações. Ah! Quando começam a relembrar as caçadas, pescarias, viagens que juntos fizeram, não param mais.

Depois de mais de hora de conversa, vem a primeira tentativa de despedida.

- Bem, Tião, a conversa tá boa, mas temos que ir – Amaral levanta-se.

- Que é isso, sô ! A mãe tá passando o café, espera aí.

Amaral senta-se, e a conversa volta a se animar. Uma hora depois, é Paulinho que se levanta:

- Bom, Amaral, acho que tá na hora de a gente se mandar. Tião, o café fica pra próxima...

- Ora, ceis já esperaram até agora, num demora vem o cafezinho que a mãe tá passando. É já-já.

Paulinho assenta-se e voltam os causos, as lorotas, etc. Mais uma hora se passa.

- Bem, Tião, temos mesmo que ir. Vamos até a Fazenda do Estado, estamos aqui só de passagem, já tá ficando tarde e temos ainda que...

- Não, não, não. Vocês não vão sem tomar o cafezinho que a mãe tá passando. Seria até um desaforo !

As coisas assim colocadas, ficou difícil para Amaral e Paulinho saírem sem tomar o café de Dona Emerenciana. Sentaram-se de novo e nova rodada de conversa animada seguiu-se.

Uma hora depois:

- Bem, Tião, agora tempos que ir – levanta-se Amaral, decidido a partir. – A gente passou aqui só de passagem, agora já está escurecendo, outro dia voltamos para continuarmos a conversa.

Desta vez, conseguiram se despedir. Ainda sob protestos de Tião Borgia, insistindo em que esperassem o café de Dona Emerenciana.

- Bem, agora não dá mais prá ir na Fazenda do Estado, já está de noite – Amaral Amaral o jipe voltando para a estrada .

- De qualquer forma, passamos uns bons momentos – comenta sarcástico Paulinho – Outra vez voltamos para tomar o café dos Borgias.

O acontecido causo foi contado na roda de amigos de Paulinho e Amaral. Criou fama, virou lenda. Assim, toda vez que uma situação não evoluía, uma pendência demorava-se na solução, vinha o conselho:

- Espera um cafezinho dos Borgias!

4

Vivia de limpar quintais, capinar lotes vagos, serviços exercidos com rapidez e cuidado. Isso lhe deu o apelido de Zé Capina, que, como todo apelido, simplificou-se para Zé Pina.

No seu mister não tinha concorrente. Era o primeiro e único, mesmo porque não tinha capacidade para aprender outro serviço. Era simples, sem ser beócio nem retardado. Simples. Inocente. Sem malícia. E como tinha que trabalhar pra viver, vivia da única coisa que sabia fazer: capinar.

Sendo manso e cordato, tinha lá seus dias de azedume. Então, era melhor não falar com Zé Pina. E foi num dia desses que se deu o causo com o Luiz Santos.

- Zé Pina, por favor, vem capinar o quintal, tá precisando duma limpeza – pediu Dona Glória, esposa do Luiz Santos, mulher da alta sociedade, educadíssima, finíssima no trato com as pessoas, etcetera e tal.

Isso foi numa terça feira, Zé Pina passava apressado, enxada no ombro, rumo à sua tarefa.

- Vou depois que acabar o serviço na casa do Alfredo Elias – prometeu solícito Zé Pina. – Pode esperar.

Na quinta feira, Zé Pina tocou a campainha da casa do Luiz Santos.

- Dona Glória, é o Zé Pina, diz que veio limpar o quintal.- Atende a empregada , dá o recado à patroa.

- Manda ele entrar pelo portão do lado, Mariana. Dá um cafezinho pra ele antes de começar o serviço.

O enorme quintal da casa estava mesmo precisando de uma limpeza. Cacos de tijolos, latas vazias, muito capim pelas beiradas, alguns canteiros de flores para serem refeitos.

Zé Pina ataca o serviço. Capina, ajunta o mato, amontoa as pedras, as latas, os cacos de vidro.

De repente, lembra.

- Diacho, nem combinei o preço.

E como estava num de seus dias azedos, foi prosseguindo nos seus pensamentos.

- Quando acabar, ela vai achar caro o serviço. Esse pessoal rico é sempre assim. Vive explorando a gente. Periga até ela num me pagar, deixar pra depois. – Zé Pina resmungou para Mariana , enquanto mexia seu prato de comida na hora do almoço.

- Dona Glória é gente fina – tranqüiliza Mariana – Que nem o marido, Dr. Luiz. Ela vai pagar direitinho.

Zé Pina pensa diferente, está convencido de que vai ser tungado.

Como afirmou Mariana, Dona Glória e Dr. Luiz são gente de primeira classe. Ela freqüenta a alta sociedade, tem passatempos chiques: pintura, música. Ele é alto comerciante, representante de firma exportadora de café, faz altas transações, mantém negócios e amizades com o melhor da sociedade local. Íntimo de fazendeiros e banqueiros, correto, cumpre o combinado e faz questão de ser pontual.

Zé Pina, simples e simplório, pouco ou nada sabe a esse respeito. Vai estendendo e aumentando o amargo de suas idéias, remoendo seus pensamentos, vai ser enganado, passado pra trás.

E trabalha que trabalha. Às três da tarde, o serviço terminado, avisa:

- Diz pra Dona Glória que já acabei o serviço. E é 10 cruzeiros.

Mariana sobe as escadas, fala com D. Glória no seu quarto, e desce:

- Dona Glória diz pra você ir até no escritório do Dr.Luiz, ali na praça da Matriz. Ele vai lhe pagar.

Pronto ! Eu tava certo. Vai vê, ele nem tá no escritório. Se tiver, num vai me pagar assim, vai querer ver o serviço que eu fiz, fica pra depois, sei como é esse pessoal. Cada vez mais amargo, pensa Zé Pina.

Sai, procura o dr. Luiz.

- O Dr.Luiz saiu, deve estar no Banco da Lavoura – explica a secretária – É qualquer assunto que eu possa resolver?

- Não, é comigo e ele.

Ríspido e já sentindo o prejuízo, sai Zé Pina do escritório.

Dirige-se para o Banco da Lavoura. Na porta do Banco, numa roda de amigos, está o Dr. Luiz. Falam de negócios, altos negócios. Aproxima-se do círculo dos homens respeitáveis, Zé Pina pensa nos 10 cruzeiros, em D. Glória que não lhe quis pagar, e se intromete:

- Quero fala com o senhor, Dr. Luiz. Vim recebê os 10 cruzeiros pela limpa do seu quintar.

E dirigindo-se para os demais :

-Esse é home bão. Correto e batuta, ceis pode confiá nele. Mais a muié dele, a tar de Dona Glória, ô muié safada !

ARGOS - Antonio Roque Gobbo - 5/fevereiro/2000

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 25/02/2014
Reeditado em 10/05/2014
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