009 - DOZE CONTOS PARA O NATAL
Era um mestre da marcenaria. Fazia mobílias completas, lindas peças para refinadas salas, quartos confortáveis , quaisquer móveis que lhe fossem encomendados. Só trabalhava mediante encomendas, serviço artesanal caprichado, com madeiras de lei. Preferia o jacarandá, o cedro, o mogno, o marfim ou a imbúia.
Fazia de tudo com as madeiras. Com um prazer intenso e muito cuidado, escolhia as peças nas serrarias da cidade. Era exigente na madeira cortada na lua apropriada, bem seca, mandava “traçar” nos tamanhos adequados para as mesas, camas, guarda— roupas, enfim.
Atendia com paciência tanto aos clientes compreensivos quanto às mais aborrecidas madames, que vinham com fotografias de revistas americanas.
— Seu Renato, quero uma cama igualzinha a esta aqui – e a página colorida aparecia nas mãos de Dona Francisquinha, a mais antiga, a mais chata, a que melhor pagava.
Também, pudera! Seu Renato nunca recusava um pedido, pegava todas as encomendas que lhe apareciam. Só que havia um prazo muito longo para a entregas.
— Tá bem, dona Francisquinha, faço sim, como a senhora quer. Mas só posso lhe entregar em... – e aí espichava o tempo, porque tinha muito serviço pela frente, de compromissos assumidos.
— E se eu lhe pagar adiantado?
— Num tem jeito. As encomendas já tão todas marcadas, tenho de entregar, senão perco os fregueses.
Nem mesmo adiantamento por conta recebia. Só queria saber do dinheiro quando entregava a mercadoria, as mobílias ou peças avulsas.
Moveleiro nos dias de semana, nos domingos, Seu Renato cuidava de suas parreiras. Eram cinco caramanchões espalhados pelo quintal, nos quais as videiras estendiam seus galhos e faziam sombras refrescantes. O capricho do artesão dos móveis continuava no cuidado com as plantas: a poda bem feita na lua certa sempre na Nova de julho, a guia dos novos brotos sobre as grades de madeira e arames, a substituição das madeiras – ripas e caibros – tudo a tempo e a hora.
O resultado era a abundância das safras, produzidas todos os anos, por ocasião do Natal. Era uva que dava e sobrava. Por amizade e cortesia, o casal tinha por hábito enviar, às vésperas do Natal, a cada vizinho e aos parentes, um brinde: um prato de uvas fresquinhas, coberto por delicada toalhinha de crochê feita pela mulher. Os dois filhos do casal, molecotes espertos, eram os portadores do presente de Natal.
— Este prato tá melhor, vai pra Dona Rosinha; esse outro menor, vai pro seu Melquíades, que mora sozinho. Aquela travessa vai pra família do Zé Ferreira, os filhos chegaram de S. Paulo, a casa fica cheia de gente.
Assim dona Carmélia ia determinando aos garotos onde entregar as uvas.
Sai ano, entra ano, Seu Renato fazia móveis e cuidava das parreiras. Apesar de sua maneira simples de fazer os móveis e só receber o valor combinado no final, ia tocando a vida, sem grandes ambições, mas completamente feliz, realizado no seu ofício , exercido com amor de verdadeiro artista.
— Seu Renato, quero uma mobília completa de quarto, igualzinha àquela que o senhor fez pra Dona Juju Pimenta. –
O pedido era de Dona Florípedes (Flô só para os mais íntimos, que o marido Coronel Juventino não gostava, era sério demais).
— Se a senhora não tem pressa.
— Não, posso esperar sim. Sabe, é presente do Coronel Juventino para nosso aniversário de casamento.
— Só posso fazer pro começo do ano que vem.
Passaram para os detalhes da combinação: da qualidade da madeira, dos entalhes e preço.
— Tá puxado este preço. Só mando fazer se baixar pela metade. –
Foi o comentário do Coronel Juventino, quando Dona Florípedes lhe falou do acerto.
— Mas, Juventino, já combinei com Seu Renato, ele já marcou até a ocasião da entrega.
Embora demorasse na confecção o preço combinado era mantido até à entrega, e Seu Renato nunca levara calote por falta de pagamento. Seus clientes eram gente boa.
Demorou a entrega da mobília de quarto de Dona Florípedes. Foi um pouco antes das bodas do casal. Após a entrega, o Coronel diz para Seu Renato:
— Tá certo, seu Renato, tá tudo de acordo com o gosto da Dona Florípedes. Ela é exigente mesmo, tá uma beleza de mobília.
Elogio na boca do Coronel Juventino era coisa rara. Animado, Seu Renato desdobra uma folha de caderno, entregando— a ao Coronel.
— Aqui tá a relação dos móveis, com os preços conforme combinado. Dá tudo doze contos de réis.
— Ah! Sim, tá bom. – Pegou a nota com descuido. – Vou providenciar logo o pagamento. O senhor sabe, doze contos de réis no contado, assim de repente, é difícil. Mas estou negociando uma boiada no ponto de ir pro abate. Logo que eu vender, mando lhe pagar.
— Mais ou menos pra quando, Coronel ?
— Ora, seu Renato! A demora na entrega dos móveis foi tanta ! Prometo— lhe que não demoro tanto pra pagar.
Atarantado com a resposta, com tom de descaso na voz do Coronel , de bolsos vazios, ei— lo de volta à sua oficina. Era a primeira vez, em tantos anos de trabalho que tal lhe sucedia.
— É bom pra você deixar de ser bobo. Pelo menos devia ter pedido um sinal, um adiantamento.
— Ora, mulher, como eu ia adivinhar ? Nunca ouvi falar nada contra o Coronel. O remédio agora é esperar ele vender a boiada .
Nenhum documento ou testemunha daquela conversa. A preocupação encheu os dias e as noites do marceneiro. O prejuízo se fez sentir de imediato: aquele dinheiro iria direto para a serraria dos irmãos Louzada, fornecedores da madeira. Enquanto não houvesse o pagamento, não haveria mais fornecimento a Seu Renato.
No próximo domingo, Seu Renato se encontra com o amigo Lourival Rosendo após a missa. Ouve o relato de Seu Renato e comenta:
— Pode ser que você receba. Não sabe da fama do Coronel Lalau? Além de trapacear no jogo no Clube Social, o homem tem jagunços em sua fazenda. É desse tipo que não dorme com desaforo.
Seu Renato engoliu em seco. Pior do que o prejuízo, entrou a temer o marido de Dona Florípedes.
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Quatro anos após, a conta não fora paga. Seu Renato jamais reuniu forças para a cobrança, e do Coronel Lalau, nem notícias.
Aos trancos e barrancos, o marceneiro conseguiu superar as dificuldades advindas do calote, não tocou mais no assunto com seus amigos e colegas de profissão.
Foram anos difíceis, de carestia, de guerra, de mudanças. Até a moeda mudou de nome, passou de Mil Réis para Cruzeiro.
No verão quente e úmido de 1944, as parreiras ofereceram uma carga extraordinária de uvas, de suave sabor, uma doçura de melar a boca.
— Olha aí, Carmélia, as uvas que não forem colhidas agora vão se estragar no pé. Maduraram todas ao mesmo tempo. Se cortarmos todos os cachos, vamos ter uva demais.
Feita a tradicional distribuição para os amigos, vizinhos e parentes como todos anos, sobrou uva.
— Vamos mandar também para alguns clientes.
Brilhante idéia ! E na seqüência:
— Vou mandar até pro Coronel Wenceslau ! E vai ser com um recado de paz.
— Olha lá o que você vai aprontar ! — avisou a mulher ainda temerosa da fama do Coronel.
Seu Renato mandou as uvas acompanhadas de um cartão escrito com sua bonita letra de ex— seminarista:
“ Caro Coronel Wenceslau e Dona Florípedes: Um modesto presente de Natal com votos de Boas Festas, Feliz Natal e Próspero Ano Novo. De: Renato e Carmélia.
P.S. Aceite este como quitação de sua dívida dos móveis de quarto. – O mesmo R. “
Lá se foi Julinho, levando as uvas e o cartão. Era um sábado antes do almoço.
À tardinha, banho tomado, Seu Renato estava na sala quando soaram batidas à porta. Atendeu.
— Seu Renato?
Um sujeito enorme, mal encarado, feições rudes, barba por fazer. Chapéu de couro, roupas amarrotadas, guaiaca e revólver na cintura. Na mão, o prato de uvas enviado de manhã ao Coronel.
— Às sua ordens.
— Tou aqui com um mandado do Coronel Wenceslau. Mandô devorvê as uva que lá na casa dele ninguém chupa essa fruta.
Estendeu a manopla, segurando o prato. Seu Renato percebeu no instante o equívoco de seu recado. A gentileza e o perdão da dívida tinham sido recusados. O Coronel recebeu como desaforo que agora o jagunço vinha desaforar.
Sem ter resposta, Seu Renato recebe o prato com as uvas, coberto com a toalhinha, tal qual saíra de manhã nas mãos do filho.
— E tem mais.
O jagunço falava devagar, orgulhoso de ser o portador do mandado do Coronel.
— O Coronel manda dizê qui num quer perdão de dívida nenhuma...
Levou a mão na guaiaca, na direção do revólver. Seu Renato viu o seu fim, “é agora, chegou minha hora”, escondeu— se atrás da porta.
O jagunço tirou um pequeno embrulho da guaiaca, um pacotinho feito em papel pardo, que jogou através da porta.
— ... O Coronel só tinha si isquicido.
Morrendo de medo, escondido atrás da porta, Seu Renato viu pela fresta o jagunço virar as costa e sair do seu campo de visão. O pacote ali no chão da sala.
Alguns minutos passaram lentamente, o galope do cavalo se afastando. O embrulhinho no chão.
Que seria? Uma armadilha? Escorpiões, uma aranha caranguejeira?
Devagar, muito devagar, o medo foi abandonando Seu Renato. Levou o prato com as uvas para a cozinha, voltou com a maior faca que encontrou. Com a ponta da faca, remexeu o pacotinho. O embrulho começou a se desfazer, nem amarrado estava. Mexe e vira, o papel pardo foi se desdobrando, revelando... notas de dinheiro !
Basbaque, Seu Renato acabou de abrir o pacote: muitas notas de mil cruzeiros. Não podia acreditar. Contou: 12 notas amarelinhas, de mil cruzeiros, doze “abobrinhas”, o valor exato da mobília que há quatro anos entregara a Dona Flô e Coronel Lalau.
Antonio Roque Gobbo - Belo Horizonte - dezembro/1999