008 - A REPÚBLICA DA LIBERDADE
Chegaram à pequena cidade quase na mesma época. Foi no segundo semestre de um ano muito seco, os campos crestados num amarelo de desespero, poeira levantada das ruas , vento frio e seco dia e noite uivando nos telhados , pelando as árvores.
Eram quatro rapazes, vindos do norte, com estranhos sotaques e gíria de gente folgada, para trabalhar na agência do único banco da cidade. Wilson, primeiro a chegar, ficou no hotel. O segundo, Lourenço, foi para uma pensão. Quando chegou o terceiro, Miguel, trataram os três de alugar uma casa, organizar uma República .
Dessa forma, quando chegou Roberval, o quarto funcionário solteiro, vindo também do norte, foi muito natural o seu ingresso no grupo. Foi morar diretamente com os demais.
- Temos de apresentá-lo à proprietária da casa, como combinado com Dona Sofia. Ela faz questão de conhecer todos os seus inquilinos.
- A mulher é um modelo de organização. Aprendeu com o falecido marido. Conhece todos os seus inquilinos, tem mais de 20 casas alugadas na cidade.
Organizada ela era, a viúva de Elias Karum. Mantinha um registro, cadastro, informações obtidas de fontes que só ela conhecia, marcava a rentabilidade, evitando calotes e atrasos nos pagamentos. Durona e perspicaz, tinha um verdadeiro faro para selecionar os bons e os maus clientes. Seu negócio continuou prosperando mesmo após a morte do marido. A cada ano, ajuntava mais uma ou duas casas ao patrimônio.
II
- Precisamos dar um nome à nossa república.
A sugestão era do Miguel, com um título na ponta da língua, certo da aceitação. Escolheram o sugerido: República da Liberdade.
- Vamos bolar um emblema, um distintivo.
Mais do que depressa Lourenço, bom de desenho e de ideogramas , imaginou um trevo de quatro folhas, em cada folha a letra inicial de cada um .
Uma reprodução grande do emblema foi colocado na porta da rua. O nome pegou.
III
A exigência de Dona Sofia foi cumprida à risca. Numa tarde de sábado foram os quatro rapazes em visita à proprietária. Roberval sentiu o olhar da matrona: magnético, indagador, cheio de significados .
- Bem, agora que estamos reunidos todos – e olhou nos olhos dos quatro, um por um, com muita calma e firmeza – vamos nos entender. Para que cada qual saiba da responsabilidade assumida no contrato, quero que a cada mês um de vocês venha fazer o pagamento. É a maneira de saberem como funcionam as coisas. Vocês são jovens, estão começando a vida.
Voltando para casa, os rapazes estranharam um pouco aquela exigência de Dona Sofia. A autoridade de quem sabe negociar estava em cada palavra, em cada frase de proprietária.
- Pensei que ela ia me engolir com aquele olhar devorador.
- É, Roberval, você estava mesmo basbaque, não falou um “a” durante toda a visita. Mas num tem nada de mais essa coisa de cada um fazer o pagamento. Vai ser até mais fácil pra nós. A cada mês, um paga o aluguel.
- Sei lá. Sinto algo de estranho, alguma coisa que não sei dizer bem o que é .
IV
O primeiro mês passou voando, não tinham nem comprado o necessário para mobiliar a casa e já chegara o dia de pagar o aluguel.
- Quem vai ser o primeiro? Eu não quero –avisou Roberval , cuja desconfiança inicial persistia.
- Ô, Roberval, deixa de ser besta, sô. Dona Sofia é boa gente, num precisa ter medo. Mas num tem problema. Eu , o super-valente, o grande Wilson Prado, vou lá acertar as contas ! SHAZAM ! La vai o Super-Wilson !
Ele foi. Pagou o aluguel. Voltou, muitas horas depois, com um ar esquisito de satisfação. Nada falou a respeito da visita. Ninguém perguntou nada .
O que Wilson não contou constituiu segredo por algum tempo. Recebido pela própria Dona Sofia, que o tratou com muita cordialidade, fez com que se sentasse na pequena sala de visitas. Feito o pagamento, trouxe o recibo assinado e, antes de entregá-lo, sentou-se bem perto do rapaz.
Com aquele olhar já conhecido de Wilson , mirou-o devagar, tranqüilamente. Wilson lembrou-se das palavras de Roberval, da impressão do colega na presença da exuberante mulher. Um “flash” no cérebro: ali tinha coisa. Wilson entendeu súbito a demanda: um por vez, um cada mês.
- Aqui está o recibo. Guarde-o bem, assim, no seu bolso - e foi logo colocando o papel dobrado no bolso da camisa de Wilson. – Afinal, todos somos humanos, cada qual tem suas fraquezas...
- Sim, vou tomar tento.
Levantou-se, pretendendo despedir-se.
- Mas por que a pressa? Deixe lhe servir um refresco. Ou prefere um café?
- Um refresco, sim, por favor. A tarde está quente. – sentou-se de novo .
Ela foi e voltou rapidamente.
Colocou a bandeja sobre a mesinha, sentou-se de novo ao lado de Wilson, mais perto, as pernas se tocando. Deu o copo ao rapaz, pegou o próprio copo, levou–o gentilmente aos lábios, bebeu em pequenos goles, os olhos colados nos de Wilson.
- Gostou?
Um mundo de insinuações numa só palavra.
- Delicioso.
Bebericaram lentamente os copos de refrescos, A conversa se tornou frouxa, solta, estendeu-se por assuntos inimagináveis, bem orientados pela viúva.
Das palavras à ação. Movimentos lentos, sensuais, Wilson aceitando o jogo, participando. Mãos nas mãos, a confissão da solidão de uma viuvez. Ela era ainda mulher de desejos. Um beijo suave seguido de muitos não tão suaves, os corpos se aproximando.
Tudo aconteceu ali na pequena sala, sobre o sofá. Os humores do desejo transformados em suores de satisfação. Roupas amarfanhadas alisadas finalmente, por mãos ainda trêmulas. Ajeitando os cabelos.
V
- Tô que não agüento este marasmo. Nada acontece aqui. As notícias chegam com três, quatro dias de atraso.
- Num é bem assim, Roberval, tem jornal da capital diariamente ali na banca do Camargo.
- Roberval tem razão, Miguel. A vida aqui é um paradeiro que mete medo. Nem cinema tem nessa miséria de cidade.
- Tou detestando isto aqui. O pessoal é fechado demais, não convida a gente pra nada, nenhuma festinha, nada. Aliás nem festinhas, nem bailes, nada acontece por aqui. Como é que o pessoal se diverte ?
- Bem, os casados eu sei bem como se divertem. Pra nós solteiros é que não tem nada mesmo. Nem umas garotas pra gente namorar.
- As coisas acontecendo no país e a gente neste buraco. Vocês sabiam que em S. Paulo já foi inaugurada uma fábrica de automóvel? O presidente JK ganhou o primeiro carro fabricado na fábrica. É uma marca alemã, Volks...Volks....
-Volkswagen, Miguel.
Lourenço explicou, assoprando as sílabas, reproduzindo o ouvido no rádio: “folkis-vaguem”.
VI
Wilson, calado, não tinha dito pra ninguém o entrevero havido com D. Sofia. Pensava seriamente em voltar, mas a viúva não o convidara, nem havia pretexto para tal. Tinha certeza de que os colegas seriam seduzidos pela proprietária, mas ia deixar as coisas acontecerem.
Passado o segundo mês, chegou de novo o dia de pagar o aluguel. Wilson queria voltar, os outros discordaram. Dona Sofia tinha falado claramente: a cada mês tinha de ser um.
Quem vai, quem não vai? Roberval negou-se , um medo inconfessável de algo inexplicável, intuitivo. Miguel aquiesceu e lá foi, dinheiro contado no bolso.
- La vai o inocente para as garras da viúva solitária – Wilson pensou.
Exuberante, Sofia abriu ela mesma a porta para Miguel. Os trâmites burocráticos de pagar e receber decorreram sem estranhamentos. Mas quando ela veio com o recibo assinado em fresca tinta, colocou-o significativamente no bolso de Miguel (“camisas com bolso são bastante convenientes”), então Miguel notou algo no ar.
-Aceita um café, meu caro... Miguel ?
Ao falar o nome, seus lábios estavam quase que tocando a face do rapaz.
- Sim, por favor.
Sem demora, eis o café servido sobre a mesa de centro. Saboreando a presa, ela coloca o café, o açúcar, oferece a Miguel – numa languidez e num intimismo cujo significado qualquer um perceberia.
Miguel percebeu. E concordou. E eis que, nem bem sorvido o último gole, o ataque veio , fulminante .
Caprichosa, com certeza querendo variar, levou Miguel para seu quarto. Ali no leito onde tantas vezes usufruíra o falecido Elias, agora era Miguel quem lhe satisfazia a insaciável volúpia e o desejo incontido.
Pisando nas nuvens, eis Miguel de volta à República da Liberdade. Ao contrário de Wilson, foi logo revelando o sucesso do pagamento:
- Meu camarada, essa mulher é fogo! Imagine que nem bem acabei de pagar... – e perante os três amigos, relatou, tim-tim por tim-tim, todos os momentos da visita, do pagamento aos acompanhamentos exigidos pela viúva.
Wilson, desenxabido e aborrecido por saber que a sua experiência não fora a única, foi revelando o seu encontro com a mesma senhora.
- É, comigo também aconteceu – só que não tive a honra de ir pro quarto, não.
VII
- Mas que merda de trabalho é esse? Nunca tem fim. A gente trabalha o dia inteiro, e até nos sábados e domingos... Tou que num agüento mais!
A queixa era de Lourenço. Dedicado ao trabalho, não deixava nada atrasar. Nenhum papel sobre sua mesa ficava para o dia seguinte. Talvez por essa eficiência fora “convidado” pelo gerente da agência para uma nova tarefa.
-Olha só o que o homem tá planejando: quer ir, nos domingos, com dois ou três funcionários para o interior do município, visitar os distritos onde há maior número de proprietários rurais, a fim de conversar com eles, explicar como podem obter dinheiro no Banco.
- Calma, Lourenço. - Roberval era cordato, procurava pôr água-benta em todas as situações difíceis. – Cê pode até encontrar alguma chinita por aí, quem sabe?
- Qual o que, Roberval! Quer saber duma coisa? Vou mais é mandar esse gerente praquele lugar...Num tou aqui pra aquentar água pro mate dele, não senhor !
- Pois aposto que no domingo você vai pra onde ele lhe mandar, e ainda vai aproveitar. Um bom churrasco, um “potiero” antes, um chimarrão depois...
- Nem pensar !
Afinal, Lourenço foi, sim, acompanhando o gerente. Passaram o dia num pequeno sítio onde se reuniram muitos proprietários da região, para os esclarecimentos dados pelo gerente e por Lourenço, sobre as particularidades dos empréstimos aos agricultores.
E conforme previra Roberval, conheceu uma linda morena, filha do sitiante que os acolhera durante o domingo.
VIII
Fim do mês. Hora de pagar o aluguel.
- Quem é a próxima vítima ? - Wilson estava ansioso para revisitar a proprietária. Lourenço e Roberval não chegaram a um acordo, nenhum queria ir.
- Vamos tirar a sorte na “porrinha”.
Lourenço perdeu o jogo e ganhou a vez de visitar a viúva.
Lourenço era o mais velho dos quatro republicanos, mais ladino, com truques e surpresas. Foi preparado para o “ataque” de D. Sofia. Agora sabia porque ela planejara aquela história de cada um pagar o aluguel a cada mês.
Seja por isso, seja porque estava entusiasmado com a moça que conhecera há algumas semanas, já tinham se encontrado na cidade, na casa de uma prima, Lourenço não caiu fácil no de laço D. Sofia.
Mas, vai daqui, vai dali, não houve como escapar, entregou os pontos. A balzaqueana era sabida.
- Que é isso? – assustou-se (ou fingiu-se assustado) na primeira tentativa de sedução. – Melhor parar por aqui.
- Meu bem, vem cá, só quero ser gentil e amável. Venha, seja tambem compreensivo. Sou uma viúva solitária...
De novo, a conversa fatal. Lourenço resistiu. Ela insinuou-se mais ainda, sufocando as objeções com seus beijos, suas mãos experientes tocando deliciosamente cada parte sensível do rapaz.
- Venha, querido, vamos pro quarto...
A mulher envolveu Lourenço completamente nos seus anseios, abraços, beijos, suspiros.
Conforme Lourenço depois contou aos colegas:
- A coisa começou na saleta, fomos pro quarto e terminamos na cozinha: uma mesa muito bem arrumada com as melhores quitandas “feitas por ela mesma”. Um lanche que devoramos entre mais afagos e beijos. A viúva é fogo!
IX
Roberval fora o último a se integrar ao grupo dos republicanos: calmo, tranqüilo, bom ouvinte. Muito responsável, assumiu logo a administração da casa. Encarregou-se das compras, organizava a faxina nos sábados de tarde.
Era mais de ouvir do que de falar. Entre suas raras revelações, os colegas foram descobrindo coisas de sua vida: mãe e pai muito religiosos, católicos de fervor. Queriam-no sacerdote, padre de paróquia. Depois, bispo, que sonho difícil..
- Nunca pensei em ser padre, nem mesmo nos dois anos que passei no seminário. Minha mãe fazia gosto, meu pai insistia, eu detestei. No final do segundo ano, deixei tudo.
- Você precisa se soltar mais, Roberval. Qualquer noite dessas vamos lhe ensinar a jogar sinuca, você vai gostar. Afinal, o salão de bilhar é o único local de reunião do pessoal, por aqui.
- É, pode ser...
Mas ficava por aí a tentativa de socialização do Roberval. Recebeu um convite para lecionar no Colégio local, nas aulas matutinas. Aceitou entusiasmado. Lecionava História. Tanto as freiras do Colégio quanto os alunos gostavam do novo professor. Competente. Calmo. Tranqüilo.
Até o dia do pagamento do aluguel. Foi um sufoco. Roberval, o pagador da vez, não queria ir de jeito nenhum. Pretendeu trocar de vez com Wilson, cada vez mais ansioso para rever a viúva. Os colegas foram inflexíveis.
- Camarada, você é um homem ou é um rato? Vá lá, enfrente a fera e escape de seus tentáculos.
Enfim, vítima de seu próprio senso de responsabilidade, teve de ir. Foi e cumpriu o exigido pela proprietária, em todos os itens.
- E então? Como foi? Gostou de “pagar o aluguel”?
Uma pitada de crueldade temperava as perguntas. Roberval nunca respondeu às perguntas carregadas de malícia. No semblante, entretanto, a expressão de beatitude, de bem-estar, de dever cumprido. Jamais disse uma palavra sobre seu encontro com Dona Sofia Karum.
O que não foi surpresa para os colegas. Já conheciam o temperamento recolhido de Roberval. Surpresa de verdade foi o cartão (dentro de perfumado envelope azul-claro) entregue por um garoto, na semana seguinte, enviado por Dona Sofia. Nele, liberava os republicanos da obrigação de se revezarem no pagamento do aluguel.
“De agora em diante ( finalizava a mensagem), o aluguel deverá ser pago, todos os meses, somente pelo sr. Roberval”.
Argos - Antonio RoqueGobbO-Belo Horizonte 6.12.99