007 - (IN) FELIZ NATAL

= (IN) FELIZ NATAL =

— Dona Silvinha, corre lá na casa do Zé Pedro, que ele acaba de morrer !

— Ai, minha Nossa Senhora das Dores ! Como foi?

— Num sei não, senhora, a Dona Maria José é que mandou lhe chamar.

— Já vou, diga pra ela que já vou agora mesmo.

Dona Silvinha nem bem tinha acabado de tirar a mesa do café da manhã, estava ainda de camisola. Trocou de roupa de qualquer jeito. Ainda bem que as crianças já tinham se mandado pro quintal, entretidas em brincadeiras. Bom, assim não precisava arrumar desculpa pra sair tão de repente.

Logo chegou à casa de Zé Pedro, vizinhos de porta . Da rua dava pra ouvir o vozerio agitado, choros, a agonia dos pais e irmãos . Entrou rapidamente. Tinha intimidade com a casa e com os moradores. Era madrinha de batismo de Zé Pedro.

A cena que encontrou no quartinho do rapaz deixou— a paralisada .Encolhido na cama, o corpo quase que atra— vessado sobre o leito, Zé Pedro mantinha as pernas metidas debaixo do lençol amassado e manchado de sangue. O peito descoberto, o rosto ceroso, da fronte esquerda um filete de sangue já coagulado descia em direção ao pescoço, manchando o travesseiro de vermelho.

— Que aconteceu? Com foi?

Num átimo, foi abraçada pela comadre Lavínia. Chorava convulsivamente e entre soluços tentou contar.

— O Zé Pedro, comadre, meu filho, meu filhinho, deu um tiro da testa! Ai, que desgraça! Ai, me ajuda comadre, não agüento mais !

— Ai, Lavínia, minha comadre! – Dona Silvinha acolheu em seus braços a inconsolada mãe.

A chegada do médico, longe de tranqüilizar os presentes, foi motivo de mais choros e lamúrias.

Entretanto, D. Silvinha corre em casa:

— Nicolino, aconteceu uma desgraça. O Zé Pedro da Dona Lavinia deu um tiro na cabeça, o médico tá lá, acho melhor levar nossas crianças agora mesmo pra chácara do Geraldo. Não quero que eles fiquem por aqui, assistindo a tudo.

— Isto é besteira, Silvinha. O Luizinho e Zequinha já tão na idade de compreender essas coisas da vida.

— Num acho não, eles vão ficar chocados. Vai lá dar uma olhada e depois volta aqui para levar as crianças.

Nicolino vai à casa de D. Lavínia. Com dificuldade, chega até o quarto, onde o pessoal está apinhado, não dando espaço para o médico examinar o corpo e atestar a morte do rapaz.

Quando vê o corpo uma dor lancinante atinge Nicolino. Remorso e culpa se misturam em seu peito. Reconhece a arma. Uma velha garrucha herdada por Nicolino de seu pai. Vendera ao pai de Zé Pedro no mês anterior. Só os dois sabiam da transação, arma de fogo não era pra ser mostrada para família ou estranhos.

Ao voltar, Nicolino ainda resiste à idéia de levar os filhos para a chácara do cunhado Geraldo. A Silvinha é muito apavorada, tem medo de tudo . Perde a cabeça por qualquer coisa. É melhor as crianças saberem das coisas quando elas acontecem. Lembra bem da última vez em que as crianças “sumiram”, há uns três anos atrás. Ficou apavoradíssima, foi um deus— nos— acuda, todo o bairro do Alto do Colégio ficou sabendo e empenhou— se na procura dos dois garotos, na tarde/noite fria de junho. Na realidade, os dois garotos estavam dormindo, encolhidinhos, na grande cama de casal . Silvinha não viu, botou a boca no mundo. Só depois de 3 horas, eram quase 9 da noite, quando ele, o pai, foi ao quarto, acendeu a luz e viu os garotos dormindo placidamente na sua cama. Assim era a Silvinha, o pavor em pessoa.

Finalmente aquiesceu, levou os dois garotos pra casa do Tio Geraldo, seu cunhado: uma chácara que as crianças adoravam, situada uns 4 quilômetros da cidade. Lá deixou os garotos para passarem uns 2 ou 3 dias. Viria buscá— los quando tudo serenasse.

— Não me conformo, o meu afilhadinho era tão bom, tão sereno. Lembro da sua primeira poesia. Ele escreveu pra mim, uma doçura de rapaz!

— Lembra quando o jornal do Mário Moura começou a publicar suas crônicas e poesias? Ele ficou tão alegre,tão realizado! Agora, esta tragédia!

As reminiscências, as lembranças, a ternura de Zé Pedro eram parte de todas as conversas. Poucos mencionavam sua deficiência física, desde os 14 anos preso ao leito e a sua cadeirinha especial, vítima de uma paralisia inexplicável.

— Quem poderia pensar...Na flor da idade, o seu primeiro livro recebendo elogios de todos aqui e até de um comentarista de jornal de S. Paulo.

Alguém cochichou a pergunta que estava no ar:

— Mas onde é que ele arranjou o revólver? Quem lhe trouxe? Mistério que ficou insolúvel, Zé Pedro carregou este segredo consigo para onde quer que esteja agora.

Completara dezenove anos não fazia muito. Inteligente e muito estimado, conseguira continuar estudando em casa, após ficar paralítico, graças aos amigos e professores que mantiveram acesa a chama da inteligência e a alegria de viver . Leitor insaciável, tinha lido praticamente tudo o que havia na cidade. Discutia literatura, fazia poesia, até uma peça de teatro .

Agora, este final . Até a data parecia ter sido propositalmente escolhida. Era véspera de Natal, todos estavam envolvidos em fazer presépios, cada casa querendo fazer mais bonito. A criançada pedindo presentes pro Papai Noel, algumas até escreveram cartinhas.

Luizinho tinha pedido um cavalinho de pau, que era de balançar, e Zequinha queria uma locomotiva de latão, brilhante, as rodas pretas e a cabine vermelha, a fumaça saindo com chispas pela chaminé, tudo em vivas cores desenhadas no metal. Já fazia mais de mês que eles viram esses brinquedos na Loja das Novidades, lá no centro da cidade, perto do Grupo Escolar. Tinham certeza, Papai Noel ia ouvir seus pedidos.

Zequinha foi batizado José Pedro em homenagem ao jovem que acabara de pôr fim à própria vida. Tamanha era a afeição de Dona Silvinha, sua mãe, pelo afilhado que estava sendo velado. A amizade passou para os filhos, eles ficavam com Zé Pedro sempre que podiam, fazendo recortes de papel, desenhando, aprendendo a escrever. O fato de terem o mesmo nome parece ter criado um vínculo especial, uma ligação diferente, entre os dois Zé Pedro.

Porisso Dona Silvinha não queria que seus meninos soubessem do suicídio nem assistissem ao velório e ao enterro. Luizinho e Zequinha nem quiseram saber o porquê da ida para a chácara do Tio Geraldo, assim tão de repente. O pai os levou e voltou para a cidade, a fim de ficar com a família, assistir o velório, o enterro, ajudar no que fosse possível. A amizade entre eles era muito grande.

Somente quando chegou a noitinha é que Luizinho e Zequinha se deram conta de que, dormindo ali na Chácara de Tio Geraldo, como é que o Papai Noel ia saber que eles estavam lá?

— Com certeza, ele vai deixar o cavalinho e a locomotiva lá em casa, na cidade! – explicou Zequinha aos primos e ao irmão.

— Mas quando é que papai vem buscar a gente?

Envolvidos com o velório e enterro de Zé Pedro, o pai e a mãe dos garotos não tiveram tempo nem disposição, aliás, nem se lembraram da compra dos presentes para os filhos.

— Puxa vida, Silvinha, me esqueci completamente do cavalinho e da locomotiva para os garotos. –

— Agora não dá mais. Já é quase meia noite, as lojas já fecharam. Não quero nem sair . Nem na missa do Galo estou com vontade de ir. Perdeu a graça.

— Tá bom, amanhã vou ver como resolvo esta situação.

Não foi fácil para o pai, no dia seguinte, manhã de Natal, ir à chácara do cunhado, pegar as crianças e contar— lhes porque o Papai Noel não trouxera os presentes.

Estavam quase chegando em casa, quando o pai, após muito pensar, explicou:

— Papai Noel mandou um recado. O trenzinho e o cavalinho de pau não tinha mais, fica pro ano que vem.

Da resposta pronta e esperta de Luizinho, o mais novo dos dois, compreendeu então que nada adiantaria o cuidado e a preocupação de Silvinha, tentando ocultar a realidade da vida de seus filhos, eles entendiam e percebiam muito mais do que se podia imaginar.

— Não faz mal, pai, a gente entende. Eu sei que Papai Noel nem existe mesmo.

Antonio Roque Gobbo— Belo Horizonte, 27.11.99

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 24/02/2014
Reeditado em 10/05/2014
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