005 - JOGO DE FINCA

— Não pode, por aí, não!

— Quié qui tem, ocê também pode puxar pra lá!

— Assim fica difícil continuar. Desse jeito, num jogo.

— Tá bom, tá bom, vou desenhar o triângulo mais pra baixo.

Eram só os dois irmãos jogando a finca, mas pela zoeira que faziam, parecia mais um bando de guris. Era sempre assim: quando começavam a jogar, tornavam-se adversários pra valer.

— A terra aqui está mais fácil.

Assim falando, Artur pega o estilete, e záz! joga-o direto ao chão, onde cai a prumo, a ponta enfiada na terra macia mais de um terço do seu comprimento. Rápido, Arthur traça sua linha, tentando cercar a linha do adversário . Mais uma vez, záz! acerta de novo, rápido, risca a linha. Animado , limpa o estilete na bainha da calça .

— Essa cê já perdeu! Presta só atenção !

— Vá, joga logo, agora ocê erra, tenho certeza, tou fazendo mandinga!

— Assim num vale!

Artur lidera o jogo, quase fechando o labirinto e encalacrando Armandinho. Passa a ponta do estilete na calça, limpar a terra que pode prejudicar sua pontaria. De novo, marca a direção.

— Errou, errou !Bem feito ! Agora, eu é que vou te fechar !

— Deixa de sê besta! Cala a boca e joga logo.

Armandinho pega na finca: é um estilete feito de um arame bem grosso, uns 15 centímetros de comprimento, a ponta bem aguda.

— Agora ! — e acerta o lance, o estilete afundando na terra úmida de chuvas recentes. Puxa o risco com categoria de bom entendedor.

— Este estilete tá torto, precisa de endireitar.

— Joga assim mesmo, depois eu endireito ele. — promete Artur.

Armandinho não sabe. Pra fazer o estilete, Arthur tinha tirado uma agulha de tricô do estojo da mãe. Afiou a ponta no esmeril da oficina do pai, tudo escondido. Quando a mãe der pelo fato, vai direto falar pro pai. Artur nem quer pensar nas conseqüências.

Armandinho joga: záz!, záz!, záz!, záz!. Em quatro habilíssimas acertadas, fecha completamente o labirinto em torno do risco de Arthur.

— Pronto! Essa foi fácil demais !

Artur está surpreso, atarantado com o desfecho rápido do jogo.

— Num valeu, num valeu, cê mesmo falou que o estilete tá torto !

— É, bébé, mamá na vaca cê num qué, né ?

A tardinha já escurecia, era hora de chegar em casa , tomar banho antes do jantar. Os dois irmãos, num acordo tácito, deixam o Jardim Novo.

— Passa a bolinha de vidro que cê perdeu.

— Esta partida num valeu, o estilete tá torto. Vou endireitar e amanhã a gente joga a valer.

— É sempre assim, cê nunca paga as apostas que perde. Não quero mais saber de jogar com você.

Armandinho está amuado . Toda vez em que ganha do irmão mais velho, seja na finca, no dominó, na dama, nunca leva o prêmio que disputam. Artur toda vez arranja uma desculpa, e não paga mesmo.

— Olha, te prometo. Amanhã, com o estilete bem direito, a gente aposta aquele gibi que cê comprou semana passada. Valeu?

Era tudo na ilegalidade, tudo escondido. O estilete feito da agulha de tricô da mãe. O gibi comprado escondido do pai. Daí, fica difícil resolver as disputas de maneira clara.

— Tá bom. Mas é meu gibi contra três bolinhas de vidro. Cê topa?

— Topo !

No dia seguinte, à tardinha, depois de feitos os deveres da escola , ambos saíram de fininho, sem que o pai ou a mãe percebessem.

Vão para o Jardim Novo: largas calçadas na parte exterior, as ruas e alamedas internas de chão batido, o lugar ideal para o jogo da finca. Ainda mais quando o chão está molhado, devido às chuvas abundantes de fim de ano. Encontram Piaça e Waguinho, que estão jogando bolinha de gude. Tocas num local aplainado, ótimo. Artur e Armandinho vão mais para as bandas do enorme jacarandá, também um local bom para o jogo.

— Aqui tá bom. Vamos limpar um pouco as folhas.

Limparam o chão com os pés descalços, meio chutando as folhas, meio arrastando as solas dos pés no solo de areia.

— Quem começa?

— Par ou ímpar?

— Par !

— Ímpar ! Um, dois, três !

As mãos avançam, dedos esticados, jogo feito !

— Ganhei !

Tendo decidido o início , Arthur, o ganhador, pega o estilete e traça no chão o triângulo, ponto de partida do jogo.

— Cê endireitou o estilete?

— Num deu tempo. Papai num saiu da oficina nem um minuto, hoje.

— Então, se eu ganhar, você num vai dizer, outra vez, que o jogo não vale, hein ?

— Hoje num tem perigo, eu vou ganhar, pode contar !

Arthur começa o jogo. Záz!, acerta, traça o risco, záz!, acerta de novo, outro risco no chão úmido, Záz! outro acerto, novo risco, záz! – e o estilete bate de lado, jogando areia pra cima, caindo ao longo do último risco.

— Errou ! Arrá! Agora cê vai ver, papudo, vou te cercar de todos os lados !

Artur tenta distrair Armandinho, interrompendo seu lance:

— Que é que tá valendo?

— Como a gente combinou ontem: meu gibi contra as suas três bolinhas de vidro!

— Pode jogar.

Artur joga, acerta 2 vezes, erra na terceira. Armandinho, a seguir, acerta 1 jogada, erra na segunda.

— Esse estilete tá desequilibrado. Não consigo pegar seu jeito !

— Nós já falamos nisso ontem. Agora, o jogo tá valendo!

— Não, num quero continuar jogando.

Artur pega o estilete e se prepara. Armandinho agacha e avança com a mão na direção dos riscos para apagá-los.

— Tira a mão daí, vou jogar !

— Num tá valendo !

Artur lança o estilete, antes mesmo do Armandinho retirar a mão. O metal voa, uma faisca prateada em direção ao solo, mas encontra, antes, a mão de Armandinho.

— Ai ! Você me acertou, seu desgraçado !

— Falei pra você que eu ia jogar! Era minha vez ! Quem mandou...?

Interrompe bruscamente, ao ver a mão de Armandinho varada pelo estilete, que entrou pelo dorso, a ponta aparecendo na palma da mão.

— Ai! Ai! Que dor! Ai, Ai!

Armandinho geme, estupefato, segurando com a mão esquerda o pulso da mão direita.

— Deixa ver.

Artur segura o pulso do irmão. Num gesto desesperado e repentino, zap! arranca o estilete, que sai sem dificuldade, a ponta limpinha, sequer um risco ou marca de sangue.

— Aaaaai! ai-ai-ai-ai! Que dor !

— Fica quieto, tá tudo bem, nem sangue tá saindo.

Armandinho continua gemendo. Senta no chão. Aperta o pulso, pretendendo aliviar a dor. O ferimento não sangra, mas tanto no dorso (onde o estilete entrou) como na palma da mão, há sujeira, pequenos grãos de areia e terra.

— Vamos pra casa. É bom a gente lavar logo a mão, e num conta a ninguém, senão a gente vai apanhar uma surra de verdade !

Chegam em casa, a tarde está clara, a ausência de ambos não é notada. O pai pensa que estão dentro de casa. A mãe acha que estão estudando.

Lavada a mão, Armandinho sente-se melhor, a dor quase que passada, nenhum sangue. Artur acalma o irmão.

— Vê se fica quieto. Ninguém precisa saber, nem sangrou, já, já, tá curado.

Armandinho obedece. Pouco janta. Artur tambem permanece calado. Não são mesmo de muita conversa.

No dia seguinte, o fato vem a furo. A mão de Armandinho inchou muito durante a noite, e de madrugada teve febre. A mãe ouviu seus gemidos abafados, bem de manhãzinha, e ao verificar que tem febre, descobre a mão inchada.

— Armandinho, que é isto?

Artur, de mansinho esgueira-se do quarto, já de roupa trocada, toma café depressa, pega a pasta e sai , rumo à escola.

— Foi ontem...jogando finca...

— Meu Deus! sua mão tá toda inchada, até o pulso ! Zeca! Chega até aqui no quarto ! O Armandinho tá mal!

O pai atende o chamado e ao ver o filho, já vai perdendo as estribeiras, zangando com o garoto:

— Não, Zeca, agora não. Cê tem que ir buscar o Dr. Taborda. Ele tem de ver logo o Armandinho. Vai!

Zeca nem tinha acabado de tomar o café, sai assim mesmo, em passadas rápidas, rumo à casa do médico.

Dr. Taborda já conhece todos, é o médico da família. Entra no quarto e, com sua presença, enche o lugar de respeito e dignidade. É um senhor médico, temente a Deus, o melhor da cidade. Atende a todos, em qualquer lugar, a qualquer hora.

— Que foi desta vez? — A voz é calma, o semblante bonachão, parece o avô.

— A mão do Armandinho tá furada. Foi um estilete. Tava jogando finca com o irmão.

— Quando foi?

— Ontem de tarde.

Dr. Taborda examina. A mão está muito inchada, a palma violácea e os dedos vermelhos, de um vermelho doentio. Nada fala.

Depois do exame , passam os três para a sala de visitas.

— Demoraram a me chamar. A infecção tá brava. Vamos tentar esta pomadinha que trouxe. Se não melhorar, será melhor ir pra Santa Casa.

Pomadas. Compressas. Comprimidos contra dor: usam de tudo durante o dia, sem qualquer indício de melhora. A febre não cede, o inchaço e a coloração passam para o pulso, subindo braço acima. À noite, Dr. Taborda determina o internamento do garoto na Santa Casa, para receber medicação através de soro e um novo medicamento, a penicilina.

Artur fica anulado. Nem o pai, nem a mãe lhe dirigem qualquer palavra, qualquer censura, nada.

Longas e tenebrosas horas noturnas passou a família no quarto do hospital, na expectativa de qualquer indício de melhora.

De madrugada, Dr. Taborda fala sério com Zeca:

— Estamos fazendo tudo para deter esta inflamação. Vou ter de limpar o ferimento. Em último caso, vou aplicar a penicilina na veia.

Bem sabe que está agindo no limite. Manda a mãe e Artur pra capela, rezar pelo garoto, enquanto apazigua o pai.

O corpo de Armandinho, quente pela febre, não reage mais aos medicamentos. Sofre espasmos e convulsões e em alguns momentos delira.

Num ato desesperado, extremo recurso até então não registrado nos anais da medicina, Dr. Taborda manda injetar diretamente na veia de Armandinho cinco miligramas de penicilina - uma droga chegada aos hospitais, testada nos campos de batalha da segunda guerra mundial.

— É o recurso extremo. Depois, só Deus !

E foi Deus quem salvou Armandinho. A penicilina foi apenas o veículo. Horas e mais horas de expectativa, durante o dia seguinte. Ao entardecer, a febre diminuiu, Armandinho entrou num sono tranqüilo e, pela meia-noite, Dr. Taborda sorriu:

— Graças a Deus! O pior já passou. Veja: a mão está desinchando e voltando à cor normal. Demos Graças !

Mais um dia no hospital. Na manhã do terceiro dia, Armandinho tem alta, volta para casa.

Artur continua calado, engolindo toda a culpa pelo acontecido e imaginando as conseqüências.

Armandinho, ainda no leito, mas já bem disposto, é sabedor dos terríveis momentos de angústia e sofrimento vividos pelos pais e irmãos:

— Vem cá, Arthur .

Artur atende o chamado do irmão, aproxima-se da cama, ressabiado. Ao lado está o pai e sentada nos pés da cama, a mãe. Com a voz ainda fraca, Armandinho falou para o os três:

— A culpa foi minha, eu num tinha nada que botar a mão na frente. Quero que vocês me perdoem, e não culpem o Artur.

E dirigindo-se ao irmão, num cochicho:

— Você me perdoa, tá? Eu num queria acabar com o jogo desse jeito, não! Pode pegar o gibi, que essa eu perdi de verdade. Me perdoa, tá?

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte- 20/outubro/99 - Conto # 5 da Série Milistórias

Publicado no Volume 1 da Coleção Milistórias: A LOUCURA DO CRISTAL

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 24/02/2014
Reeditado em 10/05/2014
Código do texto: T4703975
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