A Cheia.

Tudo começou logo depois do almoço. Seu Nhozinho, nos avançados oitenta e dois anos, estava a sentado em um tamborete na varanda de uma casinha simples perdida em meio ao bananal que margeava a várzea do Rio Madeira. Os olhos cobertos de rugas olhavam para o nada, perdidos em mundos que os filhos não entendiam mais. Há tempos o velho Nhozinho não falava coisa com coisa, quando falava... Na maior parte do tempo, ele ficava sentado no tamborete pegando a fresca na varanda, calado e taciturno. Raramente abria a boca para comentar alguma coisa.

O velho Nhozinho fazia parte da mobília paupérrima largada no alpendre da casa de madeira erguida sobre jiraus. O que a deixava com aparência de ave pernalta.

O neto caçula, um menino de quatorze anos, percebeu com o tempo, que o velho Nhozinho quando falava coisas estranhas, aparentemente sem sentido... Lá na frente, quem prestasse atenção ou lembrasse do comentário esquisito que o velho tinha falado há dias, semanas ou mesmo meses atrás, em noventa e nove por cento das vezes, o ancião tinha sempre razão para tecer comentários desconexos.

No entanto, ninguém da família dava a devida atenção às caduquices daquele velho que ficava o tempo todo olhando para o nada... Mudo como um tronco de castanheira caído na mata. Só o neto, o Neco -  Nequinho, como o avô carinhosamente o chamava -, conseguia entender as “maluquices” do velho. O Neco era tratado pela família como um menino meio “aluado”, igualzinho ao avô. O menino tinha a estranha mania de ficar horas sentado ao lado do velho taciturno... Solidário com os seus longos silêncios.

Naquele início de tarde, logo depois do almoço, o velho interrompeu um mutismo que perdurava dias.

Seu Nhozinho parou de olhar para o nada e fixou as rugas que cobriam os olhos para o chão do bananal onde longas fileiras de formigas de todas as espécies caminhavam para as terras altas, mais para o centro das matas. Elas estavam saindo das várgeas e caminhavam com pressa... Ligeiras. Carregavam tudo o que podiam tirar dos formigueiros.

Seu Nhozinho, deu uma longa baforada no cachimbo, acertou uma cusparada no cachaço de um bacorinho que passava em frente à varanda e, colocando a mão enrugada no ombro do neto Neco, balbuciou uma frase curta, quase inaudível:

-Elas ‘tão ralando peito! – o neto sem entender direito o que o avô grunhiu, perguntou: - O que foi, Vô? – o velho com os olhos fixos nas fileiras de formigas que caminhavam rápido, quase correndo, tornou a resmungar:

-Elas ‘tão fugindo! – o garoto olhou carinhosamente para o avô, pegou uma das mãos do velho e perguntou novamente: - Quem, Vô? Quem que ‘tá fugindo, Vô?

O velho espichou o beiço para a frente apontando o bananal e resmungou novamente:

-Ispia só... No meio do bananal... As formigas, Nequinho! – o neto olhou para o bananal e depois para o avô, e sem entender nada, perguntou mais uma vez: - O que é que tem o bananal, Vô? – desta vez o velho olhou para o neto e falou com um pouco mais de clareza:

-As formigas, Nequinho! Elas ‘tão fugindo... Acho melhor a gente fugir também.

O menino, ainda sem entender direito o que o avô estava falando, porém, acostumado com as esquisitices do velho, sabia que o avô nunca abria a boca para falar sem uma razão muito específica, olhou para o bananal e achou estranho a quantidade de formigas que caminhavam pelo bananal em direção às terras altas, aos morros e serras que fronteiravam o pequeno sítio à margem do Rio Madeira. Eram formigas de todas as espécies que povoavam as várzeas daquela parte da margem do Rio Madeira.

O rapazote caminhou em direção ao bananal, andou por entre as fileiras de formigas, sentiu várias mordidas entre os dedos do pé, sapateou, pulou e voltou correndo para junto do avô onde voltou a sentar-se e ficou batendo nas pernas com a viseira do boné.

-Que estranho, Vô! Nunca vi uma coisa dessa... Tem fileira de formiga-carregadeira, a saúva. Tem fileira de formiga Tucandeira, formiga vermelha, formiga-de-açúcar... Aquelas que vivem subindo e descendo das bananeiras. Aqueles formigões pretos que ficam atulhando os troncos caídos, parecidas com as tucandeiras... Vô, tem formiga de todo tipo, Vô! Tem formiga que eu nem conheço... E o estranho, Vô, é que elas estão caminhando praticamente juntas... Assim, como se fossem comadres... Tudo na maior paz...!!! Não tem nenhum tipo de formiga brigando com a outra... Vô, ‘tou achando isso tudo muito esquisito, Vô! Parece até mandinga, Vô!

O velho voltou a olhar para o nada, absorto em seu mundo silencioso e ficou um bom tempo quieto... Soltando baforadas e mais baforadas do cachimbo. Mudo que nem uma porta!

Após um longo tempo de mutismo, o velho olhou para o neto e tornou a resmungar:

-Vem cheia braba! Vai alagar “tudim” aqui... Vai ficar só o “cocoruto” dos morro do lado de fora. – o garoto, sem entender absolutamente nada do que o velho estava falando, colocou a mão sobre o joelho do avô e, intrigado com o que estava ouvindo, insistiu com o avô:

-Como assim, Vovô? Alagar? Tem jeito não, Vô! A gente está muito longe da beira do Rio Madeira... Como assim, alagar? Vixe! Tem jeito não!

O velho sem retirar os olhos do nada, resmungou novamente: - É por isso que elas ‘tão fugindo! Acho melhor a gente fugir também... Ainda dá tempo!

-O senhor acha, Vô? – o velho olhou fixamente para o neto e apenas piscou, como se desse um assentimento. – o garoto arregalou os olhos e exclamou: - Vixe! Agora, danou-se! – depois gritou para o pai, que, sentado mais à frente, tentava amolar uma enxada:

-PAI...!!! Ô pai!!! O vô ‘tá dizendo que este ano vai ter cheia, pai... Que tudo aqui vai ficar alagado... Debaixo d’água!

-Deixa de ser abestado, Neco! Todo ano chove tanto que só falta matar sapo afogado e as águas do Rio Madeira nunca alagaram nem a várzea, que dirá, chegar perto do bananal. – e levantando-se pesadamente para retornar ao trabalho na roça, o pai do garoto falou com desdém: - Vai procurar o que fazer, Neco! Não fica aí acreditando nas caduquices do teu avô, não! Era só o que me faltava, um velho caduco e um garoto abestado!

-‘Tá vendo, Vô! O pai não acreditou no senhor, não! E ainda chamou o senhor de caduco e eu de abestado!

O velho deu um raro sorriso, olhou com carinho o neto que era seu parceiro de longos silêncios e comentou:

-Liga não, Neco! No meu tempo de vida, aqui neste chão, as formigas só se mudaram duas vezes... Uma, meu pai me disse... Foi em cinquenta e oito! Nesse tempo, menino novo, eu corria mundo! A outra, eu vi... Foi em mil novecentos e oitenta e dois! Teu pai era frangote, assim como tu. Nunca prestou atenção nas coisas! Alagou tudim aqui!

O garoto perguntou ao avô: - E o pai sabe disso, Vô? – o velho respondeu lacônico: -Sabe! Esqueceu, mas sabe!

-Então por que ele não acredita no senhor? – o velho voltou a olhar para o nada, deu mais umas baforadas do cachimbo, cuspiu de lado e, com um sorriso sarcástico, falou curto e grosso:

-Quando a água bater no rabo dele, ele vai lembrar e acreditar... O leso!

Semanas depois os rádios, jornais e televisões noticiaram com alarde.

*RIO MADEIRA TEM A MAIOR CHEIA DOS ÚLTIMOS OITENTA ANOS*

*HELICÓPTEROS RECOLHEM RIBEIRINHOS ISOLADOS PELA CHEIA*

*PREFEITURA ABRIGA RIBEIRINHOS EM ESCOLAS DA CAPITAL*

*CHEIAS DO RIO MADEIRA, EM 2014, BATE O RECORDE*

 
João Pessoa/PB-Fev 2014.