004 - VADINHO VAI À VENDA
— Vadinho, vai na venda do seu Tobias. Pede pra ele um litro de leite na conta, que seu pai vai chegar amanhã da “frente” e nóis vai lá pagá ...
Uma lagartixa, Vadinho sai pela estreita porta da frente. Quando dá com o sol chapado, o menino se assusta com a claridade, modera o ímpeto. Ergue o braço, fazendo da mão esquerda um pára-sol. Segue em frente, obediente ao mandado da mãe.
Sabe da importância do leite para o irmãozinho, Lairson, que há dias está prostrado no seu bercinho, tomando as colherinhas de leite, puro ou misturado com um pouco de farinha de pau. Sem ânimo, nem mesmo chora mais, de tão fraquinho.
Caminha depressa pela senda seca e empoeirada. Não há mais sinal de grama nem capim, só umas moitas de mandacaru é que insistem em manter seus gomos espinhentos e amarelados, (a seca tá tanta que até o mandacaru tá morrendo ). O chão esturricado não tem nem mesmo sinal dos pezinhos de milho. Morreram quando estavam com palmo, palmo e meio de altura. Não tem mais nem sinal de estrada. O caminho que leva até o povoado desapareceu sob a camada de poeira. É tudo uma desolação, tudo amarelo, seco, pó em cima de pó.
Os pezinhos judiados, os calcanhares gretados, faz tempo que não tem água que chegue pra tomar banho, sequer refrescar os pés, as perninhas finas e expostas ao sol até às coxas. A calça é um resto de roupa rasgada e esgarçada, mal cobre suas vergonhas. Vai Vadinho, em busca do último alento para o irmão.
Passa em frente do pequeno cemitério do povoado, onde três pessoas estão ocupadas em fazer um enterro. Ainda é de manhã, e já estão enterrando o primeiro. Mais tarde, Vadinho já sabe, mais um ou dois enterros vão ser feitos. Todos de crianças. A morte anda rondando o povoado, levando consigo as crianças e até alguns velhos, dois, três por dia. Tem dia em que até quatro enterros acontecem.
Quer parar um pouco, ver, perguntar, saber de quem se trata. Não, tem de andar depressa com o leite. Depois, lá na venda, “seu” Tobias sabe de tudo. Vai lhe dizer quem morreu esta noite. É lá na venda , afinal, que todos têm de ir, em busca do caixão, para enterrarem seus mortos.
O sol da manhã é quente, muito quente, sobre a moleira de Vadinho. Passa a mão pela cabeça, na vã tentativa de afastar o calor. A boca está seca. Sente o estômago fundo. Já faz tempo que esta sensação está presente. É a fome crônica, durante todo o dia. Ultimamente, diversas vezes, à noite, quando acorda com umas pontadas na boca do estômago.
Chutando o pó, a sede e o calor, o menino chega em minutos ao povoado. Na verdade, uma fileira de casas enfileiradas ao rés-do-chão. Um renque de paredes de diversas cores, ocre, azul, verde, amarelo, as portas e janelas semi-cerradas algumas, a maioria fechadas. Ninguém na única rua, nenhum animal. Tudo deserto.
Amanhã de tarde, quando os trabalhadores (e o pai de Vadinho entre eles) voltarem da frente de trabalho, um pouco de animação voltará ao povoado. São poucas as famílias restantes, que persistem em ficar por ali. Todas dependem do trabalho da “frente”. Geralmente o pai e um ou dois filhos maiores voltam com o pagamento semanal, e fazem as compras, pagam as contas que as mulheres ficaram devendo na venda do “seu” Tobias. Única do povoado e da região, num raio de quilômetros e quilômetros.
Vadinho chega até a porta da venda, que já está aberta desde cedinho. “Seu” Tobias é madrugador, escancara a porta ao clarear do dia, num convite silencioso aos fregueses. Nada mais é que uma sala da casa de morada do proprietário. Parece enorme ao menino, um pouco por causa da exigüidade de sua própria casa, outro pouco devido aos escassos móveis da sala. Há o balcão-frigorífico, guardando as latinhas de guaraná, coca-cola, cervejas, poucos pacotes de alimentos refrigerados, caixinhas e saquinhos de leite de diversas marcas. Presas nas paredes, com parafusos e pregos, a metro e meio do chão, prateleiras de metal com outras poucas mercadorias: vidros de azeitona, latarias de doces, saquinhos de balas, garrafas de cachaça e outras bebidas “de homem macho”, tem até na prateleira superior meia dúzia de garrafas térmicas, empoeiradíssimas. Devem estar lá há anos...
De uma armação presa no teto, dependuram-se vassouras e rodos de lavar chão, também mostrando demorada permanência no local. Encostada na parede do fundo, ao lado da porta que faz a comunicação com as outras dependências da casa, uma vitrina estreita, de portas fechadas à chave, exibe brinquedos, pratos de louças, copos de vidro. Enfim, um capital investido há anos e que não tem saída, ultimamente.
Entretanto, o que mais chama a atenção de todos os freqüentadores da venda são os caixões. Sim, os caixões para enterrar pessoas. Vadinho sempre se assusta um pouco ao entrar na venda e dar logo de cara com aqueles três caixões encostados na parte da frente, antes do balcão-frigorífico: são três tamanhos diferentes, para crianças e adultos, e mais um pequenino, para criancinhas bem pequenas, para os “anjinhos”, este preso no alto da parede. Todos forrados de branco e com uma cruz de fita de seda, também branca, sobre a tampa.
São caixões toscos, feitos às pressas. Vadinho acha que o “seu” Tobias mesmo é quem os faz, lá nos fundos da sua loja. O pessoal já se acostumou com essa mistura de comércio, gêneros e bebidas para os vivos, ao lado das embalagens para a última viagem, a derradeira, a que só tem ida.
Vadinho sempre tem um estremecimento, um arrepio, ao passar pela coleção de caixões. Na venda, já estão Zenilda, garota de uns 15 anos, mirrada, de grandes pés metidos em “chinelos-de-dedos”. Sentada num canto, numa caixa vazia de sabão, os cabelos presos atrás por uma fitinha elástica, o rostinho queimado. Olhos vivos.
— Aí, Vadinho ?
— Oi, Zeni!
Apesar de brincarem juntos quase todos os dias, o vocabulário é curto, não têm muito o que dizer um ao outro. Na venda também está um menino. É o Zezinho da Dona Constança, uns 3 ou 4 anos mais velho que Vadinho, porém forte, crescido, bem desenvolvido. Senta-se folgadamente num banquinho de madeira, as costas apoiadas no balcão-frigorífico. Nem se dá ao trabalho de conversar.
Do fundo, chega “Seu” Tobias:
— Então, moleques, estão procurando trabalho? Aqui num tem não, trabalho só na lá na “frente”...— referindo-se à frente de trabalho, que só emprega adultos.
— Oi, “seu Tobias! A mãe mandou pedi pro senhor mandar um litro de leite. Põe na conta, qui amanhã pai chega e paga tudo.
— O leite acabô !
Vadinho olha para o balcão branco com vidros.
— Tem ali uma caixinha, a última.
— Tá passado, já azedô.
— Num faz mal, levo assim mesmo.
— Tá loco, menino, depois vocêis vão passar mal, ter piriri, e aí vão me botar a culpa de tudo...
— Mais a mãe mandô pedir...O Lair só tá bebendo leite. O nosso acabô ontem...
— Tá azedo, num vendo! – diz seu Tobias, dando a conversa por encerrada.
Mais depressa do que a vinda, volta Vadinho desanimado, mãos abanando. “ Talvez o leite não estivesse azedo, quem sabe...? “Seu” Tobias bem podia me vender a caixinha. Ela estava fechada. Como ele sabia que estava azedo? Acho que não quis me vender por outro motivo...”
Vadinho, esperto, dessa esperteza que as dificuldades avivam, tinha seus conhecimentos e tirava suas conclusões. “A Conta lá na venda tá alta, mas o “seu”Tobias podia me vender mais um litro de leite. E amanhã mesmo vem o Pai, com dinheiro, e paga ele...”
Passa de novo em frente ao cemitério, agora deserto. O pessoal já terminou o serviço do enterro. Não tem muito o que ver. É sempre aquela brancura no meio do amarelo, a cerquinha bem cuidada. ”Ô xente, o lugar dos mortos é mais cuidado que a cidade dos vivos”.
Chega em casa. Num safanão escancara a porta. Deixa entrar o sol, revelando a miséria do cômodo, que é, ao mesmo tempo, cozinha, lugar de comer , e de por as redes de dormir. Já faz tempo, a casa tinha dois cômodos, mas a parede dos fundos do quarto caiu e o pai não teve como consertar. Passaram a dormir, as 8 pessoas da família, na única dependência. Dentro, um calor abafado.
— Mãe, “seu” Tobias diz que num tem mais leite, que o único litro que sobrou tá azedo.
A mãe ouve sem responder. Seu rosto é desânimo, fracasso, derrota. Está com Lairson no colo, o bebê quieto, olhos fechados, como que dormindo. Os outros filhos, meia dúzia de meninos e meninas de diversas idades, ficam por ali, ou atrás da casa, brincando na sombra e na poeira. Há silêncio.
Com movimentos lentos, a mãe molha um pedacinho de pano, um trapinho, na água turva da caneca de lata, e leva à boca de Lair, que suga com força, sem abrir os olhos. Faz isto de tempos em tempos, de tal forma que o garoto sempre está com o paninho na boca, chupando, lambendo o alento de energia que lhe entra pelo corpo.
Pensa que, àquela hora, o marido deve estar já trabalhando. Na “frente”, pelo menos têm comida, e no final da semana trazem algum dinheirinho, que dá para acertar a conta com “seu” Tobias, e comprar mais alguma comida...quando tem comida pra comprar na venda...o caminhão da prefeitura, que vai na capital buscar gêneros, nem sempre volta toda semana...E têm de guardar um dinheiro pra quando chegar o caminhão d’água, o carro-pipa, que esse só enche os tambores de quem paga no vivo, sem “choro nem vela”.
As horas passam . A comida acabou ontem, agora só tem água. Água turva. As crianças não se incomodam. Já se acostumaram a períodos de fome. Se o fogão, no chão da sala, está apagado, elas já sabem: não tem comida. Ficam brincando lá fora, nada reclamam... O neném ainda reclamou um pouco de madrugada, mas agora de manhã se aquietou.
O sol sobe, cresce o calor, a luz aumenta de modo quase insuportável. A poeira não se assenta, fica pairando no ar. O silêncio é total. Não se ouve um balido, um mugido, um cacarejo, um pio. Até as crianças brincam caladas, ensimesmadas, solitárias , mesmo quando juntas .
O sol estava a pino, a luz reverberando no horizonte, o calor insuportável, desânimo no máximo. A mãe sentiu um leve estertor da criança no colo. Lentamente, retirou o pano úmido de sua boca imóvel, levantou a cabecinha até seu ouvido, colocou o ouvido sobre o peitinho esquelético da criança. E teve a certeza de que tinha terminado. Lair não precisava mais do trapinho com água, nem do leite que ficara na venda do seu Tobias. De nada mais precisava neste mundo. Terminava ali aquela curta vida de poucos meses, aquela porção de si mesma, que até poucas horas antes ainda se manifestava, em um choro fraquinho, um vagido, um alento fugaz.
— Vadinho !
O garoto chegou até a mãe, que permanecia estática, com Lair no colo.
— Vai lá na venda do “seu” Tobias. Diz pra ele mandar o caixão de anjinho, que amanhã, quando seu pai chegar, nóis vai lá pagá a conta de tudo...
Uma lagartixa, Vadinho sai...
ANTONIO ROQUE GOBBO Belo Horizonte outubro de 1999
Conto # 4 da Série Milistórias