A Carta e o Tempo

“Rio Grande do Sul, 20 de janeiro de...

Resolvi não mais te esquecer, filha querida. De meus filhos, és a que menos vi quando pus sobre ti o meu olhar de pai. Tua mãe, assim como eu, se esqueceu de lembrar-te. Nós dois fomos enganados pela fuga do tempo e, hoje, com esses cabelos brancos, cansados de tanta coisa, resolvemos escrever-te. Nunca é tarde fazê-lo quando amamos profundamente nossos filhos. Tu, filha minha, saudosa, de mimoso coração e tão triste esquecimento, ouves o som dessas palavras que te enviamos tua mãe e eu, em um mesmo papel de carta.

Quando partiste do nosso convívio, tu, teu marido e teus filhos, não pensávamos que nos fosse doer tanto, embora tardiamente, quando nós nos lembramos de não mais te esquecer. Nossos olhares de pais deram apenas atenção aos outros dois ficados e mais próximos de nós.

Ontem, quando parou a chuva e o tempo nos permitiu, sem que sentíssemos muito frio, retiramos o álbum de família e nossos olhos abraçaram tuas fotografias, quando ainda eras uma criancinha. Teus loiros que esvoaçavam até com o Minuano brando, cobrindo teus olhos, que lindos retratos! Tua mãe e eu choramos muito. Nesse choro, achamos nós, está enraizada a culpa que temos pelas vagas lembranças dadas, apenas. Quantas cartas ou telefonemas podíamos ter-te dado! Caçamos agora, com esta tão tardia, teu perdão. Nunca te deixamos de amar, mas, confessamos, o fizemos muito pouco. Há amor subtraído desde que foste para Maceió morar e trabalhar.

Tuas irmãs nos vêem todas as semanas. Marta separou-se e Rute foi morar em Santa Cruz – enviuvou e logo em seguida caiu em profunda depressão. Não gostamos de recebê-la em casa, dado o estado de sofrimento em que ficamos. Bem sabes da idade de teus pais, o que não nos permite fortes emoções.

Aí, como te andam as coisas? Sei que podes banhar-te em belas praias e sentir um forte sol beijador cheio de luz. Temos muita vontade de passear por tua nova morada, abraçar-te, diminuir a dívida que temos com tua alma, desde o dia em que viajaste. Quem sabe ainda não o faremos?

Temos incluído todos vocês em nossas orações diárias. Tua mãe reza bem mais que eu. Não pode ver um pêssego serrano maduro que se lembra de ti. Hoje, entendemos, esse Rio Grande imenso é pequenino sem a tua grande presença. Sei o peso de tuas qualidades e o quanto falhamos. Tuas cartinhas, todas elas, tua mãe e eu guardamos num caixote velho de charutos. São o espólio de nossas saudades e lembranças. Releio-as de vez em quando, sem que ela veja, para não sofrer ela ao meu lado e encontrar os espinhos de sua velha depressão.

Quando virás por estes lados do Sul? Apressa-te e aí poderei abraçar-te com vida. Já nos atrapalham os tantos janeiros vividos nessa saudade que se fez cruel porque não permitiu falar com a tua saudade menos calada também. Da penúltima para a última cartinha tua que recebemos, passaram-se seis anos. Foi só aí quando percebemos que é dando que se recebe e nós te devíamos muito mais.

Estas letras trêmulas que ora te escrevo, são mais de emoção do que de senilidade. Tua mãe, sim, não consegue mais apanhar e segurar firmemente a caneta e fazer a carta. O Parkinson está vencendo sua vontade. Eu faço por ela e por mim.

Diogo vai bem? Luci, Bárbara e Afonso, também? A última foto que vi de vocês, vai fazer três anos. Por quê? Não, não é necessário nos responder. Sabemos os “porquês”, sem que para isso careçamos engendrar qualquer esforço para seu entendimento...”

É uma pena que eu não possa enviar para minha amiga essa carta. Sou apenas um escritor, cheio de sonhos, fantasias, vontades. Mas acho que nossos pais podem esquecer de dar notícias, porque o amor deles por nós não carece de pernas ou olhadelas – é o vento cheiroso que nos chega à pele, o sol e a lua que dividem as horas de um dia inteiro, que nos trazem.

-Senta-te à escrivaninha, querida amiga, apanha o papel e que o molhem suas lágrimas de amor e inquietude, mas escreva, antes que o orvalho o faça e que seja intraduzível seu enredo. Voa até tua casinha onde moraste na infância, abraça-os e volta para casa, cheia do amor desletrado. Não nos basta a carta, nem a tinta: o coração dos pais fala sem o registro físico de discurso algum.

-Obrigada, amigo. É o que vou fazer agora. Meus pais adorarão receber notícias de nós. Obrigada mesmo!