O Crime do Seu Genaro
Mãos espalmadas sobre faces chorosas, era a imagem comum naquela tarde chuvosa no cemitério campal da cidade, todos presentes para lançar o último olhar para o homem que era, enquanto vivo, simbolo de compostura e retidão, o homem que sucumbira ao chamado fatal da ceifadora, aquele que não admitia que nomeassem desonestidade como desvio de conduta, que abominava a idéia de que um homem poderia ser levado a cometer delitos pelo simples fato de não ter posses, para ele o ser humano deveria ser, acima de tudo, integro, correto e honrado. Descia naquele jazigo o corpo sem vida de Seu Genaro. Mas o que fizera chegar tão rápido aquele estágio era um segredo que só um dos expectadores detinha, assim como o significado do epitáfio em sua lápide.
Seu Genaro mantinha uma rotina rígida, pela manhã comprava o Diário Campineiro na banca do Olavo, discutia a principal manchete, discordava da opinião do proprietário, pagava e se dirigia a passos cadenciados até o empório, lá se provia de três pãezinhos, pegos por ele mesmo, e duzentas gramas de bolacha de maisena, colocava sobre o balcão onde o Arnaldo embalava, era o único que não portava uma caderneta de “pindura”, pois pagava sempre na hora, voltava para casa, tomava seu café, sentava-se a poltrona por exatas duas horas para ler o jornal e logo depois saia novamente em caminho oposto em direção ao centro onde visitava a livraria dos Assis, era lá que ele esperava encontrar as últimas novidades dos escritos vindos diretamente da capital, caso algum livro novo despertasse sua curiosidade, era prontamente adquirido e introduzido em sua biblioteca particular, quem conhecia sua coleção dizia que ele deveria viver pelo menos mais duas encarnações para completar a leitura de todos ali depositados. Ao sair da livraria caminhava até o Buffet Fermat onde almoçava e já pedia uma refeição leve para levar para casa onde esquentariana hora do jantar. Chegando em casa se ocupava de verificar se a Dona Janete havia feito todo o serviço doméstico por ele contratado, depois ocupava uma cadeira confortável na varanda e começa a leitura do livro abandonado no dia anterior, pontualmente ás seis horas ia para a missa, hábito que mudava aos domingos pois comparecia pela manhã a igreja, voltava para casa e recolhiasse para dormir ás dez horas. O único dia que adiava seu sono era a quarta-feira, porque recebia a visita do padre Amaro com quem mantinha acaloradas discussões.
Bem a quarta-feira começara como de costume, a caminhada, o jornal, os pãezinhos, volta para casa e o café da manhã com os um, dois e três... algo errado, havia quatro pães no pacote, mas Seu Genaro tinha certeza de ter contado três ao pegar, seus pensamentos começaram a fluir, como era possível, ele a pessoa que não admitia os erros alheios errar daquele jeito e pior praticamente furtar, não, era obrigação dele ir até ao empório e ressarcir o Arnaldo, mas como manter sua postura depois de confessar seu delito, ele não poderia manter a postura de defensor da incorruptibilidade humana, e principalmente da sua. Verificou o troco, talvez tenha pago pelo pão a mais, logo confirmou que havia pagos apenas três pães. Imaginou que após confessar em público tal ato, todos passariam por ele na rua e não mais o encarassem como exemplo de conduta e sim como Genaro o falastrão e pior como Genaro o ladrão. Não, aquilo estava sendo demais para ele, começou a ter sensações alternadas de frio e calor, procurou desesperadamente por um dos calmantes de sua finada esposa Marlene, não encontrou, tentou esquecer o assunto lendo o jornal, não conseguiu, pensou em sair para o almoço, Dona Janete ficou surpresa ao encontra-lo em casa e mais ainda de ser dispensada do serviço aquela tarde, seus livros perderam a irresistível atração, se arrumou para ir a missa, mas como encarar todos os presentes sem demonstrar alguma fraqueza em sua postura. O dia transcorrera em velocidade surpreendente, tanto que se assustou com as batidas na porta, era tarde da noite, e já imaginou que era Arnaldo vindo cobra-lo e humilha-lo, abriu a porta e deu de cara com o padre Amaro que se espantou com a aparência do amigo. Genaro o fez entrar e indicou o lugar de sempre para sentar, mas ao invés de pegar a última literatura separada para discussão, ele ajoelhou e disse que nunca até aquele momento havia necessitado se confessar, mas naquela tarde tinha pecado pela primeira vez. Padre Amaro escutou espantado o relato e ao final não sabia se ria ou sentia compaixão pelo pobre homem ali prostrado. Genaro recusou veementemente a opinião do padre de que aquilo era um delito insignificante, e pediu a penitência merecida, Amaro não teve outra escolha a não ser aplicar o sacramento e ir embora mais cedo do que de costume e deixa-lo com seus lamentos.
Após uma noite sem o convite do sono, Genaro pulou algumas etapas de seu roteiro e foi direto ao empório do Arnaldo portando um fardo com quatro pães intocados, ele queria ser o primeiro cliente daquela manhã para evitar a presença de outras pessoas em sua humilhação pública. Ao entrar Genaro notou que o ajudante retirava uma tabuleta, que não havia notado no dia anterior, onde indicava:
__“Toda quarta compre três pães e leve quatro.”
Sentiu um leve aperto no peito, dobrou os joelhos e caiu com a face voltada para o chão, segurando firmemente a prova de um crime que não cometera. No dia seguinte sob a chuva, além de se indagarem o motivo que o havia levado ao infarto fulminante, o mistério maior ficava por conta do significado da frase final em seu túmulo, mas era um segredo quase de confissão que só o padre Amaro sabia, pois a mesma gerou semanas intermináveis de discussões entre eles sem chegarem a acordo algum.
__“Talvez ao encontrarmos os Deuses, descubramos que eles também os procuram.”
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