DOCE OBEDIÊNCIA
DOCE OBEDIÊNCIA
Costumava agir assim, seguir o conselho dos mestres. Jamais se furtava a obedecer, fosse qual fosse a ordem, a regra, a observação, o pedido. Era doce, plácida, quase sempre mergulhada em profunda melancolia. Gostava de sofrer, pois significava viver uma vida que não a sua. Quem sabe, a de uma heroína medieval, crivada de medos, de sentimentos obtusos, de falta de liberdade e cheia de inspiração e amor. Às vezes, tinha surtos de labirintite e gostava de sentir-se um pouco zonza. Mostrava ao mundo seu sofrimento e solidão. Já passava dos quarenta, tendo por companhia um gato siamês, castrado, gordo, calado, preso a uma corda. Subserviente, tal como ela. Se ao menos, tivesse um namorado, traria consigo a conspiração da vida, que se achegava pertinho, se arrastando, deixando- se avistar apenas pela janela. Mas só. Não tinha ninguém. Ah, também tinha suas costuras, das quais vivia e se sustentava. Mas por elas, não nutria nenhum sentimento. Detestava as mãos ágeis de como esticava o tecido sob a agulha da máquina, sem jamais espetar o dedo. A mão gorda e macia que se punha a desenrolar fios e mastigar sedas. Lá fora chovia ou fazia sol. Não importava. Tudo era igual e dentro dos conformes. Convertia os tecidos nas fisionomias desagradáveis de suas donas: seus olhares que brotavam perguntas inevitáveis. Suas bocas pintadas fervilhando em milhões de bactérias estimuladas, infiltrando-lhes na pele, nos olhos, nas têmporas, no pescoço, nas mãos execráveis que apertavam a sua. Sentia náuseas e percebia o quanto se intumesciam de críticas. Enchiam o gargalho. Nada podia fazer. Eram suas clientes. Seu pão diário. Obedecia apenas. Se queriam um bordado aqui, próximo ao seio, executava. Se solicitavam um talhe mais alongado, se exigiam um decote mais ousado ou a transmudação do molde num saco, obedecia. Era seu dever. Seu destino. Quando saíam, lavava as mãos várias vezes.
Por certo, não as desprezava, mas suas vozes agudas e esganiçadas ficavam em seus ouvidos alertando-a do perigo que invariavelmente sofria. Não podia odiá-las. Era uma pessoa generosa e boa. Às vezes, mirava-se no espelho e avistava uma mulher poderosa. Bobagem. Não passava de uma falsa magra, mal vestida. Tinha por hábito experimentar as roupas das clientes. Examinava-se detidamente, quase com carinho. Observava o seio pequeno, infantil. Então punha um enchimento qualquer, um trapo perdido das costuras antigas ou um maço de algodão e sentia-se adequada. Até sorria. Acertava a cintura, punha alfinetes, emoldurando o corpo, contraía a barriga, espichava os pés pequenos e chatos em pseudo saltos altos, ensaiava alguns passos pelo ateliê. Suspirava. Dava meia volta, dispunha um disco e se emocionava com o “Tema de Lara” ou “Dio como te amo” da Gigliolla Cinquetti. Gostava das músicas dos 50 ou 60.
Aquela tarde, especialmente, estava assim, enlevada. Vestiu sua melhor roupa, um vestido azul turquesa, que confeccionara imitando o modelo de uma atriz e partiu em direção à praia. Na verdade, nem tinha rumo certo. Queria andar pela rodovia, avistar as casas se afastando devagar, ouvindo a música preferida no carro um ponto zero, ano 96. E assim se deu. Avançou por avenidas que se cruzavam e deixavam a cidade para trás. Observou as pessoas imprudentes, os animais que se atreviam a atravessar a pista, cachorros desalmados, tirando a atenção dos motoristas, pondo em risco suas vidas e seus sonhos. Até um cavalo se antecipou ao passeio, atirando-a para o lado oposto da estrada. Do outro lado, a polícia rodoviária em seus uniformes sóbrios, fisionomias gentis, espíritos equânimes revelando a postura de líderes, verdadeiros heróis do asfalto. Sentia por eles, uma ponta de orgulho e uma tênue excitação. A música ressoava melódica nos alto- falantes. Já não avistava pessoas, nem casas, nem animais. Só campos que se alastravam, povoados de plantações organizadas, verdejando o que antes era apenas pasto selvagem. Em dado momento, porém, ouviu um som sibilante de alerta: os heróis do asfalto se aproximavam céleres de seu carro, como perseguindo um foragido. Sentiu seu coração pusilânime bater apressado. Não tinha o que temer. Eram homens da lei e certamente precisavam de ajuda. Prosseguia em sua quilometragem segura sem se afastar um milímetro do que mandava a lei. Ultrapassaram e ela até acenou. Nem teve tempo de acelerar a marcha que recuara para dar passagem, pois cortaram sua dianteira, em direção ao acostamento, fazendo sinal para que parasse. Obedeceu mais uma vez. Uma conversa rápida e um homem algemado e ferido passou para o banco de trás de seu veículo, ao lado de um policial parrudo, enquanto o outro acionava ajuda. Não refutou a solicitação. Viu que o sangue corria pelo tapete impoluto e a morte, tão avessa aos sentimentos românticos, ingressava cruelmente em seu carro. Se ao menos, fosse por amor! Era assalto. Sem desviar dos pensamentos, ainda ouviu a voz austera e precisa do policial.
_Por favor, moça, corra. O homem tá ferido, pode morrer.
Pelo retrovisor, observava o olhar renhido do prisioneiro. Havia um terror estampado na retina, tão forte que quase estilhaçava o espelho. Ela desviou os olhos, sentindo uma estranha tonteira. Não hesitou, porém, deixou-se levar pela brisa suave do campo, que lhe fustigava a testa, se introduzia nas narinas, atingindo o cérebro, desanuviando a mente. Sorriu para o policial, sem se fazer entender. Este ratificou a ordem, já irritado: _Não precisa trafegar a cinqüenta. Pé na tábua! O cara ta estrebuchando, não tá vendo?
Ela distinguiu uma certa ufania no rosto do policial. Seu lado heróico reclamava, mas ela não cederia. Obedeceria as leis, como de hábito. Já se aproximava da zona urbana e as lombadas se acumulavam, uma após a outra, além de sinaleiras, transeuntes, novamente os cachorros. Até o catador desavisado! Não, o policial só estava cumprindo seu dever humanitário. Ela, o de cidadã.
_Não posso, senhor. Veja, agora é só a trinta.
O algemado mastigou palavras sem nexo. A febre se transformava em suor que lavava o rosto. Ela ainda ouviu: _Troca de carro, me tira daqui! Esta mulher vai me matar!
O policial assentiu, pela primeira vez concordando com o preso. Insistiu: _Moça, eu sou a lei! Pode correr, tem pista livre. O homem vai morrer, não precisa obedecer o trânsito. – e balançou várias vezes a cabeça, num tique nervoso.
Ela sorriu, atenciosa, mas redargüiu: _Não, não, não. Lei é lei, senhor. Olhe, aqui é faixa de pedestre, logo ali, zona escolar. Em seguida, o quartel. Via de regra, a rua interrompida. Coisa de autoridade, né? E adiante, nem posso buzinar, sabe por quê? Asilo de velhos. Eles se assustam! Conheço esta região como a palma de minha mão. – e instintivamente olhou para a mão pequena, gorda e macia segurando o volante. Lembrou por um momento o gato castrado, amarrado à coleira, que ficara em casa. Se ao menos, o tivesse trazido...
E nem ouviu os apelos do policial e os gemidos do algemado. Nem este último, que num ato de pânico absurdo, decidiu por sua vida. Abriu a porta do carro e gritou: _Quero morrer!
O policial desceu, aproveitando a velocidade reduzida, entre a sinaleira e a passagem de pedestres. Ela prosseguiu sorrindo, satisfeita. Apenas um coisa a perturbava: aquela risca de sangue no banco de trás.