O Tatu
O calor estava insuportável e o ônibus barulhento vinha preguiçoso, serpenteando pela estrada esburacada com destino à pequena cidade do interior. Os passageiros apáticos olhavam incômodos pelo vidro embaçado, que por causa da poeira intrusa, tinham que ficar fechados.
De repente o motorista deu um grito:
_ Oba, um tatu!
E depois de uma manobra arriscada, que deixou o veiculo em diagonal, freou bruscamente e em disparada, abandonou o volante. Ao voltar trouxe a vítima, ainda agonizando, dependurada pelo rabo. Olhou para os passageiros e deu um breve sorriso ao imaginar, vaidoso, as mil maneiras de comer o bicho, porém, ao observá-lo atentamente, fez um muxoxo e duas foi logo descartando:
A primeira, não poderia ser consumido ao molho pardo, já que o sangue, material indispensável para o preparo, fluía escuro e pegajoso pelo focinho dilacerado. A segunda; era ainda mais complicada, pois, para rolar o clima, teriam que jantar a luz de velas. Sem falar na fantasia de odalisca que teria que arranjar para esconder o estrago que a roda fez na carinha bonitinha dele.
O motorista em sua imaginação pecaminosa chegou a ver o tatu, com as mãozinhas atrás da cabecinha, ensaiar uns passinhos tímidos da dança do ventre. Voltou à realidade quando ouviu um homem bêbado usando uma camisa vermelha e preta gritar:
_ É bom com quiabo!
O “bebum” logo levou um safanão que veio ligeiro da mão ossuda de um rapaz que estava em pé no corredor que foi logo dizendo:
_ Só se fosse frango imbecil!
Uma velhinha de vestido florido, falou alto, enquanto tentava conter a dentadura arisca como uma rã ensaboada:
_ Só não pode é chupar o osso!
O garotinho do lado gritou no ouvido dela:
_ Não é gato, vovó, é um tatu!
Uma mulher com uma peruca esquisita disse:
_ Faz com batatas que fica uma delícia!
Todos os passageiros, eufóricos, davam sua sugestão, que o motorista, salivando, ouvia atentamente. Mas, em seu íntimo já estava decidido. O tatu ficaria uma noite inteira lambuzado em uma pasta de alho e sal e depois de entupido de farofa seria levado ao forno até ficar tostadinho tal como um leitãozinho.
O motorista, exibindo um canino de ouro, com o tira gosto do final de semana garantido, já ia tomar o volante e dar continuidade a sua sacolejante viagem, quando um Policial com um chapelão que fazia lembrar as orelhas de um elefante africano levantou-se no último banco.
O silêncio foi total, até as crianças calorentas, pararam de chorar. Imediatamente, o motorista, que até então, não tinha percebido a presença do Policial, deu um grito desesperado:
_ Meu Deus, coitadinho do tatu! Foi suicídio, eu sei que foi. Ele saiu correndo do meio do mato. Eu fiz de tudo para frear e foi em vão, estou arrasado, acabei com a vida desse pobre animalzinho. Meu Deus! Ele não merecia esse fim tão trágico. Todo mundo viu. Eu tenho testemunhas. Foi uma fatalidade, um tatu ainda menino, quando muito um adolescente, tão cheio de vida, com tantas tanajuras para comer...
O Policial barrigudo, já beirando aos cinqüenta anos, levou a mão à testa para conter o suor que encharcava as sobrancelhas espessas como escovas de dente e disse com uma voz que parecia ter vindo das profundezas do inferno:
_ Ele ainda é um animal jovem e parece querer viver. Deve ter tido uma parada cardiorrespiratória. Tente ressuscita-lo, do contrário, as coisas podem se complicar para o senhor, e pelo visto, para todos os passageiros.
O desespero transformou a cara de todos em carrancas diante do Policial, que coberto de poeira e suor, ganhou as características de um viscoso e abominável homem dos pântanos.
O motorista colocou o bichinho em cima do capô com cuidado quase maternal, e, após cambalear e segurar o volante mirou à poltrona e simulou um desmaio.
Uma mulher obesa, com dificuldade sobre-humana, conseguiu driblar os passageiros que estavam em pé em meio aos sacos de mantimentos e galinhas colocados aleatoriamente pelo corredor e ao chegar disse arfante depois de pisar em um leitão que gritou estridente dentro de um saco de linhagem.
_ Sou enfermeira e também uma mulher religiosa. Vamos fazer de tudo para salvar essa criaturinha de Deus.
A mulher mostrando conhecimento no ofício foi logo gritando:
_ Atenção todos os passageiros abram as janelas para que o meu paciente possa respirar:
A enfermeira depois de um longo suspiro pegou uma garrafinha de aguardente que estava numa bolsinha de crochê roxa e molhou um paninho com o conteúdo. Mas, quando viu o focinho estragado, fez uma cara de nojo e pôs se a massagear com força excessiva o peitinho do animal que começou a colocar sangue por todos os orifícios possíveis.
Um outro, com um bafo de cachaça dos diabos, usando roupas encardidas, gritou fazendo voar cuspe por toda parte:
_Deixe comigo, pai Zé Véi resolve isso num minuto!
A enfermeira ficou momentaneamente aliviada. Pai Zé Véi era considerado o maior Macumbeiro da Região.
O homem depois de se contorcer como uma cascavel no cio tirou uns raminhos catingudos do bolso e começou a bater no corpinho inerte, pronunciando palavras ininteligíveis e soprando no ouvido do moribundo até perder o fôlego. Como o animal não reagiu ao ritual, disse que precisava pegar algumas ervas no mato e fugiu.
O Policial começou a gostar da brincadeira. Acostumado a trabalhar na Capital não imaginava o medo que aqueles matutos tinham da imponente farda que ostentava. Lisonjeado resolveu prosseguir com a tortura psicológica. Pegou um rádio de pilhas na mochila, mas poderia ser até a garrafa térmica que o efeito seria o mesmo, e começou a gritar após levá-lo a boca:
_ Atenção todas as viaturas da Capital venham já pra cá, venham também os helicópteros, inclusive o Pegasus. Mande o resgate a perícia, o Exército a Marinha e a Aeronáutica. Parece que a vítima já esta em coma, preciso que tragam o desfibrilador e uma equipe treinada porque se não revertermos esse quadro terei de efetuar várias prisões.
Todos adquiriram de repente uma palidez cadavérica. O Policial em meio ao desespero ainda gritou quase mordendo o rádio:
Atenção Comando da Capital não se esqueça de mandar dezenas de algemas talvez centenas...
O garotinho cuja avó confundiu tatu com gato deu um risinho mostrando um dentinho quebrado.
_ Mande também algumas algemas infantis. Disse o Policial vidrado nele.
O garotinho abraçou a avó e começou a lançar rajadas de vômito para todos os lados.
Outras crianças, solidárias, começaram a gritar e a tossir ininterruptamente dando início a uma sessão de vômito.
Quando o motorista viu que a coisa estava ficando realmente preta, descolou a cabeça do volante e com o rosto desfigurado pela dor pegou o tatu nos braços e disse entre soluços enquanto o ninava candidamente:
_ Pobre bichinho tão bonitinho! O que te levou a tentar contra a própria vida? Talvez tenha brigado com a namorada. Ninguém lhe avisou que aquela “tatuzinha” que andava com o casquinho sempre empinadinho não valia nada, que lhe botava chifre até com gambá e porco espinho. Ou você foi expulso de casa por ter se tornado um “tatulescente” rebelde? Ou quem sabe comeu alguns cogumelos alucinógenos e saiu por ai doidão achando que pneu de ônibus é rosquinha de polvilho? Por esse seu ato insano, tatu do céu. (Ao dizer tatu do céu o motorista o sacudiu e berrou). Você pode prejudicar a nós todos. Eu tenho família e blá...blá...brá...
O Policial, diante da atuação cinematográfica do motorista, queria ter em sua mochila uma estatueta do Oscar para lhe ofertar, mas, como não tinha, pegou as algemas mesmo e falou com uma entonação que fez com que o motorista molhasse a calça:
_ Você tem curso de primeiros socorros?
_ Tenho sim Senhor! Gritou o motorista fazendo careta, com os olhos grudados nas algemas impecavelmente polidas.
_ Mas não parece... Não vê que as vias aéreas estão obstruídas? Esse tatu precisa urgentemente ser submetido a uma respiração boca a boca...
Ao ouvir o procedimento a enfermeira balofa sumiu levando o leitão acidentado.
O motorista olhou para o focinho esmagado do bicho impregnado de sangue e terra e engoliu seco. Ia mesmo tentar o ultimo recurso, já tinha fechado os olhos e estava fazendo o biquinho característico, quando o Policial que passou a ter um carinho especial pela tenra iguaria gritou:
_ Pode parar! Pelo jeito o bicho finou-se mesmo. Só te cabe agora, pobre homem, é dar a ele um funeral digno.
_ Como assim. Disse o motorista aliviado, em parte, pela constatação do óbito.
_ Enfeite-o com batatas e cenouras.
_ Algumas rosas e margaridas! Posso colocar senhor? Disse o motorista meio grogue.
_ Claro que não, tatu não gosta de flores. Use folhas de repolho como mortalha. Coloque-o em um caixão, tipo panela de pressão, e chame alguns amigos para o velório, e não se esqueça que de hoje em diante eu sou o seu melhor amigo...
O motorista ainda atordoado pela iminência de ser preso por crime ambiental olhou para o céu e com os olhos rasos d àgua mirou um ponto qualquer no infinito e disse quase num sussurro:
_ O que eu mais quero agora, meu bom Deus, é que a bondosa alma deste tatu desapareça pelo buraco de ozônio e fique por lá por toda a eternidade.
E todos disseram AMÉM.
FIM