Os noivos

Noite de São João de 1958, em Várzea Pequena. A cidade comemorava a festa do santo e as vitórias da seleção brasileira. Dali a cinco dias, a final da Copa do Mundo. Ruas quase desertas, ás onze horas da noite. A queima de fogos, reduzida aos foguetões ocasionais. Nos limites da cidade, explodiam as últimas bombas de cordão.

Na rua principal, muitas fogueiras consumidas e desmanchadas. Em frente de algumas casas, tições fumegantes e o cheiro de pólvora, suspenso no ar. O velho Mané Gomes atravessava o Largo da Matriz. Caminhava em ziguezague. Na mão direita, uma garrafa de Serra Grande, segura pelo gargalo. Desafiava o frio, de camisa aberta no peito. Vez por outra, tropeçava nas pedras do calçamento. A cada vacilo, gritava “Viva Pelé!”, erguendo a garrafa como um troféu.

Na praça em frente á igreja, um casal sentado num banco, sob a amendoeira.

— Quinze anos. E eu é que lembrei – disse o rapaz.

— Pois é, um amor adolescente, como diz meu velho.

— Adolescente? Que história é essa?

—Quinze anos, meu filho. A menina-moça a desabrochar, o baile de debutantes e tantos etecéteras e tais. Ou algum tipo de bodas que ainda desconhecemos.

— Que doideira foi essa, Elenice?

— Não se faça de doido, você. Se casados, teríamos filhos de quinze anos.

— Teu velho é maluco. Aquele tabaco torrado, aspirado ventas adentro, quase de hora em hora, derreteu o juízo dele. E quem não quer casar é você.

— Lembrei do nosso primeiro beijo, nosso primeiro amasso.

— Doidos pra trepar e morrendo de medo.

—Medo? Sim, foi mesmo. Nem lembro mais do que eu tinha medo.

— De engravidar, sua tonta. Quase desmaiaste, quando apareci com a camisa de Vênus.

— Gilberto, não force a barra.

— Isso mesmo. Você tinha medo da camisa ficar dentro de você ou rasgar, não tinha?

— Nem tanto. O medo era engravidar e você correr. Lembra da Célia ou não?

— Porra, também não precisa falar da minha irmã. O João Babão comeu, não quis casar e foi embora.

— Pra onde? Ninguém mais ouviu falar dele.

— Sei lá, Elenice. Betinho já está com onze anos. Vive muito bem, mesmo sem o pai. Aliás, pai não. Emprenhador da mãe dele.

— Não é estranho, o cara ir pra Recife, tão perto e ninguém saber mais nada?

— Problema dele. Que Deus o ajude e a mim não desampare.

— O amparo vale pros vivos e mortos, não é?

— Elenice, eu sou tio do Betinho. O destino do pai dele é problema do pai dele.

— Fale olhando pra mim.

Ergue a cabeça, indignado.

— Se lhe aprontaram alguma, foi merecido. Se aconteceu, não tenho nada com isso.

— Onze anos sumido, sem dar notícias.

Risonho:

— Já estou com ciúmes do João Babão.

— Essa, agora.

— Não seria o primeiro a fazer isso. Muita gente some do mapa porque quer. Lembra de Geraldo, filho do seu Terto?

— Terto? Quem é?

— Terto, o primeiro dono da padaria. Geraldo escreveu pra família, depois de vinte anos em São Paulo. Pra dizer que tava morrendo de câncer e que a família fosse pra puta que os pariu.

— Lembro sim. A carta atrasou. O santinho, da missa de sétimo dia, chegou primeiro. Enviado por um amigo dele.

— Amigo? Macho dele, isso sim. Viviam amancebados.

— Que coisa horrível.

— Ser viado?

— Não. A vida era dele. Quem tem o que é seu, dá a quem quer. Lembro a reação da mãe dele, com o santinho na mão, parada na porta do Correio.

— Ele foi embora, porque queria soltar a franga e por aqui, não podia.

—Ele sempre teve um jeito meio diferente. Não gostava de repetir roupa. O cabelo, encharcado de Brylcreem, dia e noite. As sobrancelhas, aparadas a cada quinze dias. Camisa Ban-Lon, só ele tinha, por aqui. Era uma boa pessoa. O único a ajudar dona Neuzinha, a vestir o corpo do marido.

— Morto de lepra. Quem era doido? Só ele mesmo.

— Ela sequer agradeceu. Deu a foto autografada de Bellini, porque ele pediu e ela não gosta nem de futebol. Herança inútil, só isso.

— Ainda dizer pra todo mundo, que ele só ajudou pra aparecer. Gente ruim é mato, nesta cidade.

— Não querer ser feliz, é um jeito de ser ruim.

— Poderíamos ter nosso lar, nossa casa, nossos filhos.

— Pra que?Assim está bom demais.

— Bom pra quem? Pra você?

— Pra nos dois. Quando trepamos,trepamos por tesão,de verdade.Não dependo de você nem você de mim.Engravidei uma vez e não quis o filho.Olho os meus pais e fico apavorada.Juntos há quarenta anos.Comem.Dormem.Vão á igreja e ás festas.Sempre juntos.Horrivelmente juntos.Nem percebem que a vida já passou e viraram mortos-vivos.Um beijo,um carinho? Nada. Dois mudos, na sala de jantar.

—E ainda falas em bodas de namoro?Fico encabulado em ouvir essas coisas. Procuro um buraco no chão para me enfiar. Parece até gozação com minha cara.

— Porque falo do que você teme e não sabe. Tem medo da liberdade e não sabe.

— Não diga besteira.

Elenice, risonha:

— Somos livres nesta cidade de merda. E as pessoas nem percebem isso. Quer algo melhor?

— Que liberdade é essa?Há quinze anos, somos noivos. Você, tomando conta do cartório do seu pai. Eu, tangendo os bois do meu velho. Vez por outra, tiram sarro com minha cara. Dizem que vão me aposentar por tempo de serviço. Afinal de contas, sou um noivo profissional.

— Que se danem. Eles só conhecem o tédio. A solidão de viver junto. Viver, do jeito que cada um quer que o outro viva, na merda.

No relógio da igreja, onze horas e trinta minutos. Levantam-se do banco e tomam a calçada da rua principal. Abraçados, enfrentam a garoa de junho, que transforma suas palavras em fumaça.

andre albuquerque
Enviado por andre albuquerque em 23/01/2014
Código do texto: T4661378
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