O general

O caso narrado a seguir aconteceu no tempo da ditadura militar. Naquela época em que era proibido quase tudo, Dagoberto Martins vivia, com seu extremado bom humor, driblando o regime, tornando o seu próprio dia a dia mais ameno, mais feliz.

Chegava invariavelmente à seção da Secretaria de Agricultura às 8 horas da manhã para iniciar as atividades, todas feitas com muito zelo na condução da velha máquina de escrever, companheira já de alguns anos. O que se falar, discutir, sobretudo numa repartição pública onde sempre se corria o risco da inconfidência de algum companheiro ou da delação impiedosa dos alcaguetes de plantão? Nada a discutir, nada a declarar se o assunto fossem as decisões do governo. E assim as repartições eram sempre locais sisudos que abrigavam as mais ressentidas anuências aos poderes da ditadura.

Mas Dagaberto minimizava aquele ambiente da secretaria com seu humor constante e as situações surpreendentes em que se envolvia, algumas de desfecho obscuro até para os companheiros de seção.

Eis que certa feita, chegou à cidade um cronista esportivo para o lançamento de um livro. Dagoberto lamentou porque não tinha convite. Mas, pensando bem, o que ele queria mesmo era ganhar um exemplar da obra. E, se fosse até ao clube onde o livro seria lançado, naturalmente que teria de comprar. Havia, entretanto, uma saída...Matutou... matutou... e disse aos amigos da repartição.

- Amanhã, vocês esperem, chego com um livro autografado do Natan do Amaral.

- Impossível, você não tem convite. Duvido. Você está blefando, respondeu alguém em tom desafiador.

Dagoberto Martins encerrou o expediente, foi para casa e concluiu os detalhes de seu plano. Jantou, calmamente, e disse à esposa que precisava sair. Caminhou, então, para uma cabine de telefone público. E ligou para o clube onde o cronista estava recebendo os admiradores.

Alguém atende e Dagoberto imediatamente se identifica, em tom de voz muito firme:

- Aqui é o general Dagoberto Martins; quero muito falar com meu amigo Natan do Amaral.

Do outro lado, a pessoa muito solícita:

- General, o senhor aguarde um pouco. O cronista está autografando, mas já estou avisando que o general quer falar.

Alguns segundos depois, o cronista está ao telefone, e Dagaberto já tinha a história pronta:

- Meu prezado Natan, sabe que gosto dos seus comentários, das suas crônicas.

- É uma honra, general.

- Infelizmente, não posso estar aí. Compromissos com o presidente, Natan.

- Entendo general.

- Ficaria muito honrado se você deixasse aí mesmo um livro pra mim.

- Claro, general.

- Mas quero autografado! E, por favor, Natan... Nada de general na dedicatória. Me trate por Dagoberto.

- Se o general prefere assim!

- Amanhã, então, na parte da tarde, alguém de minha assessoria busca o exemplar.

- Perfeito general, será uma honra.

O general fez mais alguns elogios, agradeceu e desligou.

No dia seguinte, pela manhã, Dagoberto chegou à repartição, alegre como sempre e foi para a rotina de trabalhos. Não faltou quem lhe cobrasse:

- E aí, quede o livro do Natan? Não serve de livraria, hein! Tem de ser autografado.

- À tarde vou buscar meu exemplar. Ele deixou um para mim.

Foi uma gargalhada só.

Depois do almoço, Dagoberto foi ao clube e se apresentou com o próprio nome. O recepcionista disse que havia mesmo um livro para ser entregue. E lá estava o exemplar com uma gentil dedicatória a Dagoberto Martins.

Os amigos suspeitaram que houvesse algo de muito secreto naquele episódio, mas Dagaberto só esclareceu o fato anos depois, quando os generais voltaram para os quartéis.