A EMPREGADA

Havia uma bruma, ou será neblina? Havia alguma coisa no ar, isto com certeza, e não era poluição. Guilhermina, ou simplesmente Gui, levantou-se e foi preparar o café da família. Trabalhava com eles já se faziam dez anos. Sempre bem tratada, bem paga e com certas regalias de dar inveja nas outras empregadas do prédio. A patroa lhe pagava a fantasia da Vai-Vai todos os anos e a liberava para os ensaios e desfiles, mesmo aqueles fora de época. Namoricava (se é que vocês me entendem) o porteiro, Nidovaldo (Niní), e lançava olhares par o Zé da Padaria. Aliás, começou o dia dando um selinho no Nini e depois foi comprar os pães e tascou um olhar 33 no Zé. Era a garantia de que todas as coisas iam estar nos seus devidos lugares durante o dia. Gui tinha dessas coisas. As coisas tinham uma ordem, que deveria ser seguida à risca, caso não se quisesse atrair algum infortúnio. Por exemplo, nunca comer de pé, isso é Axé de miséria; nunca deixar a tampa da privada aberta, isso impede que entre dinheiro em casa. E vamos parar por aqui, senão não vai haver papel que chegue.

Depois de comprar o pão, passar o café e colocar todas as coisas na mesa, Gui ficou esperando a família acordar. Enquanto ela espera, passando ólhos no jornal, vamos falar da família: Dona Rita, advogada, mandava no mundo, Seu Jonas, executivo de Banco Americano, mandava nas nega dele, Cris, adolescente cheia de sardas e complexos (quase com 18 anos), mandava no cachorro labrador e numa tartaruga de aquário (que não mandava em ninguém), completavam o quadro.

Passou da hora. Nada. Gui já estava perdendo a paciência quando o cachorro latiu. "Inferno! O povo nem acordou, nem comeu e a porra do dogue já quer a ração. É, o relógio dele não atrasa, é melhor dar logo. Mas que saco, agora, logo, ele vai querer dar a volta dele no quarteirão (coisa sagrada para um cão) e eu estarei toda atrasada com os meus afazeres. É hoje! Que será que fiz de errado? Levantei com o pé errado? Foi na padaria, na portaria, no elevador? Ai meu São Jorge, valei-me".

Gui foi escutar nas portas. Nada. Silêncio absoluto. Testou as fechaduras, destrancada. Nossa! A Dona Rita jamais dormiu com a porta destrancada, abriu, não tinha ninguém e, pior, a cama tava arrumada, não dormiram em casa. Foi ao quarto da Cris: "cadê a sua mãe". "ÔÔÔÔ que é isso !! Tá Louca! Isso é modo de me acordar, eu heim: o que foi"? "Sua mãe e seu pai não dormiram em casa". "Ah, só isso. Que susto". "Como só isso??? Eles não me falaram nada e eu fiz café. Se tivessem falado não tinha feito. Vem você. Toma o seu café enquanto eu passeio o dogue". "Não é dogue: é Zenefroso. Já falei". "Tá, tá, toma seu café que eu passeio o dogue, vai". E assim ficou. Gui saiu com o cachorro e Cris foi para o chuveiro, gordinha, mas pelada dava caldo.

Passou pela portaria e nem viu o Nini, que é claro, estranhou. Sabia das manias de sua amada (pensava ele), mas enfim, paciência, "deve estar de paquete..." Filosofia de porteiro é assim: simples. "Na volta eu pego ela e dou uns amasso no elevador, ela vai ver só, se bobear enfio o dedo e ela dá aqueles gritinho".

A Gui voltou e a Cris tava comendo. "Nada da sua mãe ainda"? "Nada. Se tá tão preocupada, liga". "Eu não, parece que estou me metendo. Cada um com seus pobrema". "Já te falei, ôôô Gui, quem tem um pobrema, tem dois". "Como assim"? "Tem o pobrema e o português para aprender, entendeu? Dois pobrema..." e rachou o bico, engasgou com o toddy e sujou a toalha. "Outra toalha, essa semana já foram duas". O telefone tocou. "É a sua mãe, quer falar coçê". "Dá aqui..." "ô mal educada, nem parece filha da Dona Rita. Aquilo que é Mulher, com “m” maiúsculo. Eu queria ser quenem a Dona Rita, assim, decidida, ela manda e os nêgo da Delegacia pula"!

"Eu tô indo. Tchau"! "O que foi, que qui acunteceu? Aonde vai"? "Minha mãe tá no Hospital São Luis, meu pai teve um enfarto de madrugada e tá muito mal. Tá na UTI. Depois te conto. Fui."

Gui, chocada, nem se mexia. Depois se tocou e foi fazer as coisa. Preparou o almoço e ninguém comeu. Tirou a mesa. Fez o café, ninguém tomou. Jogou fora. E assim foi até dar a hora da janta. Nada, nenhuma noticiazinha. No fim seu Jonas morreu. Bateu c'as dez. Só choradeira. Depois um enterro de gente rica, muita flôr e muita mulher bem vestida. "Devia de sair na Caras, se devia..."

Passado o trauma, Gui pensou, "as coisa vão voltar ao normal, aquele home não mandava nada mesmo. A Dona Rita tá aqui e as coisa vão se ajeitar, com certeza". Mas, descobriu que quem ganhava o dinheiro da casa era ele. A Dona Rita é mandona e tudo, mas tem um coração de ouro e atende um monte de gente que num paga, falou para o Nini. Esse, sem cerimônia, convidou-a para morar no barraco dele, afinal a Gui já estava de "avisio breve". Ela ficou vermelha e envergonhada, cruzou as coxas e deu aquela abaixadinha clássica, quase um passo de balé. Nini pirou, "tem que ser agora, vamo lá pro fundo, no quartinho..." e foram. Derrubaram tudo, mas foi tão bom, e agora, depois do flagrante dado pelo síndico, temos dois sem emprego, isso sim.

Foram lá pro barraco com as coisinhas dela. Pouca coisa, dois vestidos de verão, uma calça jeans, umas blusinha e aquelas outras coisa de muié que só as muié intendi. Mas o Nidovaldo queria era a muié e não tava nem aí "pras coisa", onde ia por, o que, como, questões todas dela. Lógico, a grana acabou em menos de um mês. "E agora, cê não arrumou emprego ainda e pra ajudar me embuchou, seu porra"! "E você? Nem procurou emprego. E você tem referença que o prédio não quis me dar". "Eu tô de barriga, cê tá cego"? "Que barriga, meu, num tem dois meis..." "Mas assim ninguém dá emprego, por causa da licença, cê sabe disso, comeu, agora cuida".

Premido pelas circunstâncias Nini foi fazer uns serviços e acabou preso. Ladrão de primeira viagem, dançou. Na linguagem da cadeia “a casa caiu”, e caiu mesmo, porquê o “dono” do barraco ficou de saco cheio de não receber o aluguel e botou a Gui com barriga e tudo o mais na rua! Famoso: Fudeu! A Gui foi correndo atrás da Dona Rita, "ela tira, ah, se tem quem o faça, é ela". Dona Rita tinha mudado e ninguém sabia pra onde. "Como vou dizer isso para o Nini, ele tá lá e não tenho nem pra levar cigarro e com essa barriga... ainda mais no CDP, não vai dar nem para trepar. Nem vou ver ele nesse domingo". "Não tenho nem pro ônibus"... e sentou para chorar. A Joyce, vizinha de barraco se ofereceu para guardar as coisa e Gui aceitou.

Foi pedir esmola no cruzamento e esqueceu do Nini. Nunca mais se viram. Nem sabe se está vivo. O bacuri nasceu saudável, mas depois pegou um troço aí e foi falar com Deus. Nada para lembrar do Nini. A tal da Joyce sumiu com as coisa, o que ela não pegou, ela vendeu.

Certa manhã deu na Folha: “Bombeiros tiram corpo do rio Tietê. Mulher foi encontrada na manhã desta terça-feira. Vítima ainda não foi identificada. Pista expressa da Marginal foi interditada, provocando congestionamentos”.

Dona Rita chegou atrasada no seu emprego novo.