Conto - Descobrir

- Doutora descobri que o olhar do meu filho para as coisas é muito diferente do meu. Temos vivido num impasse muito grande depois de algumas revelações dele a mim. E a meu respeito que contei a ele. É um momento de grande alegria, pois temos tido uma relação aberta um com o outro. No entanto temos discutido bastante, ele fica irritado com qualquer tentativa de aproximação minha. Entendo-o, pois na idade dele também tinha este receio com meus pais. Nosso principal problema é minha filha que tem down. Ela ter nascido assim, um pouco diferente, nunca interferiu em meu amor por ela, o meu respeito e admiração. Ela alegrou a casa a cada evolução. Mas para meu filho, é tudo um grande peso para administrar. Sou mãe separada, ele é homossexual e ela down. Nos olhos dele somos uma família toda errada. Ele ainda não se aceita diante dele próprio, quem dirá das pessoas que o rodeiam.

Tento de toda forma ajudá-lo a entender que não há nada de errado em seus sentimentos. E que também não há nada de errado na irmã em ter nascido diferente. Minha maior indignação é não ter conseguido cumprir com meu juramento no dia de meu casamento. Nós tentamos muito, sempre nos respeitamos e não houve traição do meu ex-marido, nem de minha parte. Nós só começamos jovens demais e acreditamos que seríamos um casal para a vida toda. O que se eu tivesse percebido logo de início, saberia que não seria bem assim. Sempre fui a melhor amiga do meu ex, e ele o meu melhor amigo. Sempre acreditei em seu amor por mim. A sinceridade é de longe o que mais prezávamos em nosso relacionamento. Mas em algo nós erramos, ele em me contar que o nosso namoro e casamento era de fachada, por ser homossexual também, e eu por me fechar tanto no meu amor e na minha confiança nele e não perceber.

Não somos frustrados pelo rumo que nossa vida levou. Hoje ele tem um relacionamento sério e de muito amor, com um rapaz muito bom! E eu conheci alguém também, e ele me faz muito bem. Somos felizes apesar das diferenças.

- Você mostra lidar muito bem com isso tudo. Segurar as pontas com maestria! Mas como é a relação com o restante da família depois de que tudo isso aconteceu? Como é para você acompanhar seus filhos e seu ex marido?

- Há algo que gostaria de mudar em mim. Sou bastante ingênua e sempre acredito que as pessoas serão bondosas e entenderão que temos de respeitar o próximo e amá-lo seja como for. Agi assim com meu ex marido, com os meus filhos e apesar de toda a confusão que se armou dentro de minha família, permaneci respeitando-os. Não aceito de forma alguma mudar meus pensamentos por influências dos outros. E por mais que ninguém entenda e respeite, continuo batendo na mesma tecla sempre. Isso acabou causando um afastamento de minha mãe, mas sinceramente? Ela sempre foi assim, cabeça dura, puxei isso um pouco dela.

- Como é na escola de seus filhos?

- Bem, a Nívea estuda numa escola para especiais. E tem aulas particulares em casa para ajudar no desenvolvimento. É uma eterna luta, mas estamos conseguindo fazer com que ela se torne uma garota disciplinada. O Joaquim estuda numa escola perto de casa, ele nunca me relatou problema algum. Mas como mãe, percebo que todo o incomodo dele parte em grande parte do que acontece na escola. Ele não aceita o pai, por isso não entende a si próprio. Visitei a escola, conversei com cada professor e a diretora. Não o expus e pedi também para que a visita ficasse em segredo. Os professores relataram que alguns alunos pegam pesado com ele. Isso me matou por dentro. Pois não consegui ainda encontrar um meio de ajudar meu filho. De interferir no crescimento e amadurecimento dele, pois a cada tentativa ele se fecha mais. Penso em mudá-lo de escola, mas mudanças sempre são um choque e tenho medo da situação piorar. Por isso procurei um psicólogo para me ajudar a encontrar um meio de ajudá-lo, porque sei que há algo do meu eu que possa fazer com que ele se liberte.

- Você tomou a melhor decisão neste momento. Porém, ainda estamos num impasse grande. Você poderá sim encontrar algo que ajudará no seu relacionamento com seu filho. Mas ninguém melhor do que ele mesmo para se cuidar e se entender. O seu primeiro passo, você já deu. Agora é necessário que ele também dê. Mostre a ele que ele pode contar com você. Incentive-o a também fazer terapia. Isso o ajudará de muitas maneiras. E você verá a grande mudança que haverá em sua relação. A partir do momento em que ele se aceitar, se entender e se respeitar, tudo mudará e ele viverá uma relação melhor também com o pai.

__

Chegou em casa disposta a pensar em alguma maneira de conversar com o filho, que já batia a porta da sala e posteriormente a do quarto onde havia um grande cartaz “NÃO ENCHE!”. Regina ficou incomodada com aquilo, mas guardou-se em silêncio para pensar em algo melhor. Enquanto fazia o almoço e ajudava Nívea com as meias, pensou em ligar para Rogério, seu ex marido. Almoço feito, a filha alimentada, ela bateu na porta de Joaquim e entrou. O garoto estava deitado todo encolhido e aos prantos.

Não disse nada, só o abraçou, quando fez isso o desespero tomou conta de Joaquim. Ele parecia sem chão. Apertou forte os braços da mãe e disse:

- Onde esteve toda manhã? Te procurei por toda a casa, no mercado, te liguei e nenhum sinal seu.

- Desculpe o sumiço filho. Fui a uma psicóloga.

- Para quê? O que está havendo?

- Me sinto um pouco falha contigo, fui para tentar encontrar um jeito de ajudá-lo a sentir-se melhor e mais confiante em mim.

- Se te pedir ajuda, é capaz de ajudar?

- Claro, Joaquim. É o que mais quero fazer. Como posso começar?

- Quero primeiramente que tudo o que eu pedir fique somente entre nós!

- Perfeito.

- Quero começar uma terapia e também mudar de escola. Por último, quero conhecer algumas florestas no Brasil. Decidi que serei biólogo.

- Uau, achei tudo ótimo. Está tudo ao nosso alcance. Você quer dizer mais alguma coisa? Quer me contar porque estava chorando?

- Ah, mãe! Eu gostaria de saber por que as coisas são tão difíceis. Queria entender e ter paciência com o mundo, como você tem. Isso tudo é muito difícil pra mim.

- Meu filho, cada pessoa é de um jeito e tem suas características. Eu acredito que temos sempre o que melhorar e buscar por isso. E você já está dando passos para se libertar de seus bichos internos.

- Fui à igreja, mãe. E o padre disse coisas horríveis sobre os homossexuais. E por mais que eu goste de ir. Está cada vez mais difícil controlar as minhas emoções quando chego em casa.

- Como você olha a igreja? Acredita na verdade absoluta que as religiões pregam?

- Mãe, por um tempo acreditei sim. Mas vejo que cada vez mais as pessoas que lá frequentam, veem um mundo que não existe. Vivem num mundo todo ultrapassado. Onde Deus se torna um rejeitador, um julgador.

- Pois é filho! Eu acredito que pode haver bondade em todas as pessoas. Mas todos tem seu lado bom e outro ruim. É como yin e yang. Enquanto você enxergar que não há verdades absolutas, tudo se tornará mais fácil de lidar. Há sempre o que aproveitar. E coisas que devemos ignorar.

- Mãe, o mais chocante de tudo. E o que me fez desesperar é que há um rapaz da igreja que vem me olhando muito ultimamente. E dessa vez não foi só olhar. Ele veio falar comigo. Chamou-me para tomar um suco. Surtei! Não sabia o que fazer e fui embora esbravejando. Fiquei com muita vergonha de como agi.

- Não se cobre tanto, Quim. Você vai aprender a lidar com os seus sentimentos. E sabe filho? Não devemos nos arrepender de nada. Porque se tomamos alguma decisão é porque naquele momento era o que realmente queríamos. Lembre-se sempre, porém, de que estamos aqui para melhorar.

Se abraçaram por alguns minutos, quando Nívea entrou no quarto saltitante e se envolveu também no carinho deles. Joaquim olhou-a com ternura e disse pela primeira vez nos nove anos de Nívea, que a amava.

__

Porto Alegre, 13 de Janeiro de 2014.

Pai,

Quem aqui escreve é seu filho, Joaquim. O filho que por muito tempo não fala sequer um oi a você. Peço perdão pela minha ausência, mamãe sempre me disse das vezes que ligou. Eu não estava pronto. Tampouco sei se agora estou. Mas vejo que já é um grande passo escrever-lhe.

Gostaria de contar-lhe do que tenho feito para melhorar como pessoa. Bem, o senhor deve saber que aprendi isto com a mamãe. Ela é fantástica, não? Sempre diante dos problemas ela se comporta como uma grande sábia.

Mas não escrevo para falar dela, e sim de mim. Há alguns meses, pedi a ela que me ajudasse. Eu precisava de alguém que me apoiasse e que colocasse para frente. E as mudanças começaram quando dei início às visitas a um terapeuta. Eu precisava de me entender para entender todo o resto do mundo. Eu precisava me aceitar para aceitar o senhor. Mudei também de escola, de amigos. Visitei alguns lugares nos mochilões que fiz pelo Brasil. Decidi também que serei um biólogo.

Descobri muitas cachoeiras legais que o senhor iria gostar de conhecer. Quero levar também a Nívea para conhecer algumas flores lindas. Mas, o mais importante de todas as mudanças foi ter descoberto uma parte de quem sou. Aprender a lidar com meus sentimentos, minhas frustrações, meus medos e minhas fúrias. Só assim eu aprenderia a levar a vida mais tranquilo. Voltei um pouco a ser o Quim criança. Que se divertia. Que era tolerante.

Bem pai, estou tornando-me um homem. E quero me tornar um homem bom como você. Responsável, amigo, amável. Pedi para a mamãe me contar toda a história de vocês e toda a raiva que eu tinha foi-se embora. Não há mais espaço para rancor ou ódio. Você é um grande homem. Que cometeu um pequeno erro em não ser verdadeiro consigo mesmo e com a mamãe desde o início. Mas hoje eu não existiria se vocês não tivessem se amado, respeitado e tido a tão bela amizade que tiveram.

Tenho muito orgulho de vocês.

Venho te contar que sinto o mesmo que você. Sinto atração pelo mesmo sexo que você sente. Esse era mais um motivo do qual eu sentia tanta raiva. Até nisso somos parecidos. Este é o maior segredo que venho expor-lhe nesta carta.

Fui tratado muito mal na antiga escola, por isso eu quis mudar. E a escola atual é muito boa. Tenho amigos que me respeitam. E que também são como eu, um pouco diferente do que as pessoas um dia padronizaram.

Tudo me ajudou a lidar melhor comigo, com a Nívea e com a nossa família também diferente. Não há nada de normal no nosso todo. No eu de cada um. Aprendi a respeitar as dimensões de cada um.

Na minha última consulta, meu terapeuta me disse “Joaquim, o mundo é feito de pessoas tão diferentes umas das outras, que no final elas acabam sendo tão iguais, porque todas têm, particularmente e praticamente, as mesmas delimitações. Cada uma pertence a uma tribo. A um conjunto. Cabe a nós nos colocarmos em algum lugar, sem deixar de respeitar os outros. Somos todos filhos de um Ser Maior, ou somente, de um Universo todo feito para nós. Seja você, na sua bondade. Quando fizer algo de errado, deixe sua bondade agir e tentar corrigir. Todos podemos ser grandes homens, grandes mulheres. Basta-nos ser.”

Até a próxima carta, papai.

Amo-te, e sou feliz por tudo.

Um grande abraço, Quim.

Laura Aquino
Enviado por Laura Aquino em 13/01/2014
Código do texto: T4647859
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.