UMA BELA INFÂNCIA
A cidade onde nasci era entre montanhas. Bem diferente do que é hoje, aqui. Eu gostava de brincar nas ruas de terra batida, cercadas de rosas vermelhas, amarelas e brancas.
Minha casa era uma das mais belas. Meus pais a construíram antes de casar. Passaram a lua de mel nela. Nosso jardim era uma profusão de roseiras das mais variadas. Papai era o jardineiro mor. Mamãe dizia que ele era jardineiro de nascença, e seu amor pelo jardim causava admiração pela vizinhança.
A garotada que brincava na rua se divertia quando um carro aparecia. Seu Aldair tinha o veículo mais luxuoso de todos.
Tenho saudade das tardes chuvosas, das noites estreladas, do trem que trazia meu pai do trabalho na ferrovia.
Era muito bom passear de trem entre as montanhas, vendo as cachoeiras e ouvindo o canto dos pássaros.
Na tarde do dia 23 de janeiro daquele ano fatídico, o sol surgiu por detrás das montanhas, os pássaros alçaram voo, o gavião planou de um pico ao outro, as caturritas fizeram algazarra, as... meu Deus! Era um dia tão lindo, perfeito, maravilhoso. E continuou maravilhoso até a descida da ribanceira. Fatalidade, destino, imprudência... Não! Imprudência não. Meus treze anos sabiam somente da alegria, viviam no mundo de fantasia, cercados de brincadeiras. Meus treze anos.
Então, quando tropecei e rolei até a beira do lago, ocorreu o desmoronamento dos meus sonhos, das brincadeiras, da alegria.
Mesmo hoje, quando estou relatando, apesar de meus cabelos brancos, a dor fininha que agora resta ainda me perturba.
Levantei-me do tombo, sacudi terra e folhas secas grudadas e vi meu tio rindo. Ri também. Sentamo-nos à beira, deixando os pés descansarem na água morna. Meu olhar se perdia a completar a beleza das garças brancas, do salto dos peixes, do grito das gaivotas.
Senti a mão em meu seio. Virei-me, surpresa, e vi a cobiça em seus olhos. Ato contínuo, a ameaça e a ação. Imobilizada, amordaçada, deixei os gritos sufocados misturarem-se com a dor física e a dor da decepção, da angústia, do medo e do desespero levarem-me à perda dos sentidos.
Quando papai me encontrou, eu era uma mulher que trazia no ventre a semente de uma vida inocente e chorava a inocência perdida.
Jamais revelei o autor da desdita.
Meu filho veio ao mundo sem pai, embora tivesse um tio amoroso e cheio de remorsos que o protegeu sempre.
Casei-me tive mais filhos, consegui recuperar alguns sonhos e viver feliz.
Antes de morrer, já idoso, meu tio pediu perdão. Com ele, foi enterrado meu segredo.
Hoje, de volta às minhas montanhas, tenho a estranha decisão de visitar o local do estupro. Ainda sofro. Procuro segurar com firmeza a mão de meu marido, âncora da salvação dos meus pensamentos. Depois, apanho com as mãos em concha uma água purificadora e derramo sobre a cabeça. Meu marido ri da extravagância. Rio, também.
Minha casa era uma das mais belas. Meus pais a construíram antes de casar. Passaram a lua de mel nela. Nosso jardim era uma profusão de roseiras das mais variadas. Papai era o jardineiro mor. Mamãe dizia que ele era jardineiro de nascença, e seu amor pelo jardim causava admiração pela vizinhança.
A garotada que brincava na rua se divertia quando um carro aparecia. Seu Aldair tinha o veículo mais luxuoso de todos.
Tenho saudade das tardes chuvosas, das noites estreladas, do trem que trazia meu pai do trabalho na ferrovia.
Era muito bom passear de trem entre as montanhas, vendo as cachoeiras e ouvindo o canto dos pássaros.
Na tarde do dia 23 de janeiro daquele ano fatídico, o sol surgiu por detrás das montanhas, os pássaros alçaram voo, o gavião planou de um pico ao outro, as caturritas fizeram algazarra, as... meu Deus! Era um dia tão lindo, perfeito, maravilhoso. E continuou maravilhoso até a descida da ribanceira. Fatalidade, destino, imprudência... Não! Imprudência não. Meus treze anos sabiam somente da alegria, viviam no mundo de fantasia, cercados de brincadeiras. Meus treze anos.
Então, quando tropecei e rolei até a beira do lago, ocorreu o desmoronamento dos meus sonhos, das brincadeiras, da alegria.
Mesmo hoje, quando estou relatando, apesar de meus cabelos brancos, a dor fininha que agora resta ainda me perturba.
Levantei-me do tombo, sacudi terra e folhas secas grudadas e vi meu tio rindo. Ri também. Sentamo-nos à beira, deixando os pés descansarem na água morna. Meu olhar se perdia a completar a beleza das garças brancas, do salto dos peixes, do grito das gaivotas.
Senti a mão em meu seio. Virei-me, surpresa, e vi a cobiça em seus olhos. Ato contínuo, a ameaça e a ação. Imobilizada, amordaçada, deixei os gritos sufocados misturarem-se com a dor física e a dor da decepção, da angústia, do medo e do desespero levarem-me à perda dos sentidos.
Quando papai me encontrou, eu era uma mulher que trazia no ventre a semente de uma vida inocente e chorava a inocência perdida.
Jamais revelei o autor da desdita.
Meu filho veio ao mundo sem pai, embora tivesse um tio amoroso e cheio de remorsos que o protegeu sempre.
Casei-me tive mais filhos, consegui recuperar alguns sonhos e viver feliz.
Antes de morrer, já idoso, meu tio pediu perdão. Com ele, foi enterrado meu segredo.
Hoje, de volta às minhas montanhas, tenho a estranha decisão de visitar o local do estupro. Ainda sofro. Procuro segurar com firmeza a mão de meu marido, âncora da salvação dos meus pensamentos. Depois, apanho com as mãos em concha uma água purificadora e derramo sobre a cabeça. Meu marido ri da extravagância. Rio, também.