A Senhora
Grandes eram os sapatos porque o tempo se encarregara de lhe reduzir as carnes. O corpo magro fora secando à medida que a tranquilidade apareceu para acabar com a correria que foi ganhar a vida, o amor, os filhos, a luta. Dizem que a estabilidade engorda mas a sua, conseguida pela perda do marido marialva, pela debandada dos filhos que lhe carregavam a agenda com deveres e nenhum direito ou a aposentadoria miserável, diminuíram a sua atividade mas agigantaram-lhe a angústia e a solidão. Ganhou limites físicos, cabelos brancos, fragilidade. Quando, por falta de meios, se viu sem empregada percebeu que também tinham acabado a amizade próxima e a companhia. Agora fazia tudo sozinha, da limpeza à comida, do banho ao arranjo das sobrancelhas. Fazia as compras, despejava o lixo e, no tempo que restava, olhava a televisão sem se prender ao assunto ou dormia. A vida ficou, de um para outro dia, desinteressante e vazia. Só por isso decidiu aceitar uma estudante lá em casa. Faria um preço muito baixo em troca de pequenos serviços e companhia. Era o que dizia no anúncio do jornal. Quando ela chegou assustou-se com o desembaraço e com a alegria. – D. Conceição, a seguir à arrumação da minha roupa, começo a ajuda dos pequenos serviços por si, se estiver de acordo, disse, rindo da sua perplexidade. E assim foi. Tânia, assim se chamava a estudante, convenceu-a a deixar que fosse ela a cuidar-lhe do cabelo e da pintura do rosto, ensinou-lhe um truque para não por baton nos dentes, passou a opinar sobre tudo, da roupa aos sapatos e passou a ser ela, também, a gerir as emoções lá em casa. Só por isso veio o gato, só por isso aceitou recolher da rua o Farrusco e sugeriu que o tempo gasto a tratar de plantas afugentava os maus pensamentos. D. Conceição mudou de aspeto e de vida. Um destes dias disse, no café, que não ter tempo para tristezas e garante que nunca dormiu em frente à televisão.