Leonarda, a santa da Mapunda

Há muitos dias que se dizia que a santa aparecia, à noite, na fraga maior do sopé da Serra, perto da Ponta do Lubango. Esguia, de vestes brancas, era uma visão claramente feminina que erguia os braços ao céu e, por algum tempo, assim permanecia antes de começar a desaparecer, como se encolhesse, pela parte posterior da rocha. Repetia-se o fenómeno uma vez por semana, em regra nas noites de sexta feira. Uns achavam que era Santa Rita de Cássia, a das causas impossíveis, outra Santa Efigénia, princesa amada do Senhor, e muitos, ainda, influenciados pelas aparições em Fátima, garantiam que seria a Mãe de Deus. Ao certo, no entanto, ninguém sabia mas do povo partiu a certeza de que seria louvável, digna do azeite que lhe levavam, do pão e dos frutos, das moedas e notas de pequeno valor que eram a economia de gente pobre e desvalida. Tudo era deixado na fraga sobre pequenos pesos ou debaixo dos calhaus que rolavam do cume da serra para ali ficarem a preencher as covas e os vazios. As ofertas desapareciam e isso era tido como sinal de apreço e aceitação, facto que renovava a fé num sobrenatural indefinido e ampliava o número dos crentes. Passaram a ir todos. Primeiro os do Bairro da Lage, depois gente ligada ao sítio dos curtumes e, a seguir, povo da Chibia, da Humpata, de Caconda… Engrossava a multidão pelos caminhos e o pessoal, sentindo o favor da santa, cada vez se aproximava mais e mais da pedra para aguardar a aparição. Uma noite, sexta enluarada, demorou-se a santa a aparecer e, na pressa, nem o lençol deixou simétrico nem tempo teve para velar os pés que se mantinham nítidos sob o foco de luz escondido, mostrando a quem estava mais perto, a pele gretada e, um deles, com uma ligadura de estopa a cuidar de uma ferida antiga. Alguém reconheceu Leonarda, moradora nas cercanias, mãe solteira de muitos filhos, faminta de pão e solidariedade, batida pela miséria, heroína pela tenacidade e coragem. É, meus senhores, acossados pela fome, muitos de nós poderemos ser forçados a aparecer, como santos, a valer como eles na necessidade do corpo ou da alma, junto dos que nos vêem mas não nos sabem nem sentem. A polícia achou-lhe crime mas não o soube definir pela lei escrita e, perante a impossibilidade de enquadramento, Leonarda foi mandada em paz. Era o ano de 1930 mas a legenda ainda brilha nos serões frios da região.

Fim

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 09/01/2014
Reeditado em 29/04/2015
Código do texto: T4642910
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