A morte de Saulo
Saulo era um jovem maranhense que aos dezenove anos sonhava em ser jornalista e trabalhar em uma grande emissora de televisão. Tinha acabado o ensino médio e resolveu prestar vestibular para o curso de jornalismo. Na sua cidade, situada no interior do Maranhão, não havia Universidade. Resolveu então ir para Goiânia tentar realizar seu sonho. Passou no vestibular e começou a cursar jornalismo. Mas deixemos Saulo de lado. Esse relato não tem muita coisa haver com ele, pelo menos não diretamente . Vou explicar melhor:
Era mês de setembro do ano de 1992; cidade de Goiânia; Universidade Federal de Goiás; curso de jornalismo. Esta era a turma de Saulo. Na mesma sala estudavam também Luiza, Carol e Cicinho. Estes três, desde o início das aulas tornaram-se grandes amigos. Faziam os trabalhos juntos, saiam juntos, festavam juntos...
Luiza contava dezoito anos. Era expansiva, saía muito e gostava de organizar festas. Sua família era do tipo “ liberal comedida”. Deixava que ela desfrutasse das maravilhas da juventude, viajasse com os amigos e coisas do tipo. Luiza gostava de curtir a vida, mas era responsável; era festeira mas curtia estudiosa; ou seja, comedida.
Cicinho tinha um perfil bem parecido com a colega. Era um ano mais novo. Dos três, era o mais extrovertido e alegre. Nada conseguia tira-lo do sério e seu sorriso largo era uma constante nos lábios. Sua família também era “ liberal comedida” e Cicinho também ficava a vontade para fazer programas juvenis sem ter maiores problemas com a família.
Dos três jovens, Carol era a mais séria e compenetrada. Não era do tipo rabugenta ou tímida. Porém aos dezoito anos, já tinha um ar de professora, de pessoa confiável a quem a maioria dos colegas contavam seus segredos e pediam ajuda. Sua família era mais rigorosa que as dos dois colegas. Podia sim ir a festas, namorar, sair... Mas havia limites: Viagens nos fins de semana só com amigos, estava fora de cogitação. Foi o convite para um fim de semana fora da capital que deu origem a esse relato.
Os três amigos foram convidados para passarem um fim de semana na chácara de um colega. Festa boa, gente bonita, muita música, piscina e tudo mais que jovens na idade deles adoram. Animaram-se. Mas, de cara, detectaram um problema: os pais de Carol não iam permitir de forma alguma aquela viagem. Deixo claro que o problema não era só dela, pois Carol era a única que tinha carro e carteira de motorista. Se ela não fosse, os companheiros também estariam fora da "farra". Resolveram então, arranjar um embuste para enganar os pais da garota.
-Você quer ir Carol? Perguntou Luiza.
-Claro! Mas vamos fazer o quê para que eu fique tanto tempo fora de casa sem ninguém desconfiar de nada? Temos que sair no sábado de manhã e voltar só no domingo. São 24 horas fora do ar!
- Tem que ter uma solução. Não podemos perder a festa por nada! Exclamou Cicinho.
- Vocês me desculpem, mas pra eu ficar fora de casa tanto tempo, só se for caso de vida ou morte!Disse Carol, já desgostosa.
Luiza pensou alguns minutos e de repente diz animada:
- É isso! Morte.
- Como assim? Perguntou Cicinho.
- Vamos matar alguém! Respondeu.
- Matar alguém? Ficou louca?
- Não de verdade. Agente inventa que alguém morreu e passamos 24 horas no velório fictício.
- Não vai colar. Argumentou Carol. Passar o dia todo no velório tudo bem, mas meus pais vão querer que eu durma em casa e volte no outro dia.
- Já pensei nisso. Vamos matar o Saulo!
-O Saulo! Mas por que, coitado? Indagou Cicinho.
- Simples. O Saulo é do Maranhão, mora sozinho, não tem ninguém por aqui, COITADINHO. Se ele morre, até a família chegar por aqui, uns amigos vão ter que tomar certas providências, certo? E esses amigos quem são, quem são, que são? Nós é claro!
- Parece interessante. Pode dar certo. Mas se meus pais quiserem ir ao velório, prestar homenagem ao defunto?
- Não vai ter velório. Nós vamos fazer o seguinte: Eu te ligo na manhã de sábado e te chamo para irmos ao clube. Você põe as roupas na mochila e sai como se fosse para o clube. Nos encontramos e nos mandamos para chácara. Umas duas horas depois o Cicinho liga na sua casa e como você não vai estar lá, ele conta para sua mãe a triste estória de Saulo, nosso colega de turma que sofreu um acidente e acabou morrendo. Conta também que o pobrezinho não tem família aqui e que por isso alguns amigos vão ter que tomar algumas providências como avisar a família e os amigos, ver quais são os trâmites no hospital e todas essas coisas burocráticas e chatas que tanto demoram,quando mrre algém.Cicinho diz que vai ao clube nos avisar e que se sua mãe não se importar, você vem ajudar nesta tarefa tão árdua.
- Até ai tudo bem. Mas se meus pais quiserem ver o defunto?
-Continuando: Depois de um tempo da ligação do Cicinho, você liga para sua mãe e diz que estamos no hospital, que já avisamos a família, que por sua vez nos pediu que ficássemos lá com falecido, que déssemos entrada na liberação do corpo e etc..
-Credo Luiza, que horror ! Exclamou Cicinho.
- Credo o quê ? Não quer ir a festa?
-Quero, e muito. Continue.
- Pois bem. Carol, você diz que a família dele vem de avião do Maranhão e que devem chegar bem de madrugada ou na parte da manhã de domingo. Então pede permissão para fazer seu papel de boa samaritana e ficar até que família chegue. Tenho certeza que sua mãe não vai negar né?
- É, acho que não, mas....
-Já sei! E se ela quiser ver o defunto, não é isso?
-É.
-Vamos para a chácara e voltamos no domingo cedo. No máximo até as nove estaremos em casa. Quando você chegar, diz para sua mãe que a família chegou e levou o corpo para ser sepultado no Maranhão. E que isso só foi possível assim tão rápido por que nós tomamos todas as providências no dia anterior. Que acham?
- Acho que você e louca e esta estória macabra. Disse Cicinho.
-Também acho. Mas vai funcionar e eu não perco a festa por nada. Plano aprovado. Concluiu Carol.
E assim foi feito. Tudo correu muito bem. Os pais de Carol caíram na esparrela, a festa foi uma maravilha, os amigos voltaram na hora certa. Plano perfeito, festa perfeita, resultado perfeito.
Na segunda-feira foram os três para a Universidade. Logo que chegaram procuraram pelo colega que eles, tão sem cerimônia, tinham matado no fim de semana. Não encontraram Saulo. O temor e o peso na consciência foram sentimentos comuns entre os três. Luiza, dona da idéia e portanto a mais temerosa, indagou:
-Será que ele morreu? Será que aquela mentirinha tão sem maldade pode...
Foi interrompida por Carol:
- Deixa de bobagem Luiza. O que você disse no fim de semana era mentira, mas se fosse verdade, com certeza nós já estaríamos sabendo. Ele é do Maranhão não tem ninguém aqui, alguns amigos teriam que tomar providências...blá , blá blá... Lembra?O que você inventou tem todo sentido! Morrer ele não morreu, mas pode ter acontecido alguma coisa. Vamos ligar na casa dele.
Cicinho foi o incumbido da ligação. Discou o número que chamou muitas vezes sem atender. Cicinho estava lívido.
-Não atende. E agora?
-Tenta de novo. Responderam as duas simultaneamente.
Cicinho discou novamente e desta vez sim, atendeu uma voz muita fraca ao telefone.
-Pronto.
-Quem está falando? Indagou Cicinho sem reconhecer a voz do colega.
- Saulo. Cicinho, é você? Desculpe a demora em atender o telefone.Não reconheceu minha voz né? Meu chapa, peguei uma gripe este fim de semana que acho que vou morrer ( interrompeu a fala tossindo muito). Cicinho que até então não tinha dito nada, só repetiu a última palavra.
-Morrer? Não fale assim Saulo, pelo amor de Deus!
As duas amigas que estavam em sua frente ficaram sem cor e enquanto se entreolhavam repetiam: Ele vai morrer, ele vai morrer! Cicinho fez sinal para que se acalmassem e sussurrou:. É só uma gripe, suas histéricas, calma! Voltou ao telefone e disse:
-Saulo você está aí sozinho, não é mesmo?
-É. Eu moro sozinho, família no Maranhão e...
Cicinho interrompeu.
- Já sei dessa história de cor e salteado. Mas não importa. Eu, Carol e Luiza vamos aí na sua casa te fazer companhia. Está precisando de alguma coisa?
- Pra falar a verdade, tô sim. Estou meio sem grana pra comprar uns remédios, e a geladeira aqui em casa está como o início do mundo:Só água e luz! Mas não quero incomodar ninguém.
-Incômodo nenhum. Estamos indo pra aí. Desligou o telefone e disse para as colegas: O cara está gripado e sem grana para compra remédios. Vamos fazer uma vaquinha comprar o que é preciso e cuidar do falecido. Ops! Do convalescente!
- Acho mais que justo. Disse Carol.
-Concordadíssimo! Concluiu Luiza.
Os três foram ao supermercado e fizeram uma compra que daria para um mês numa casa de família com seis pessoas. Passaram na farmácia e compraram todos os remédios que tinha para gripe.
- È pra garantir! Dizia Luiza, ainda sentindo-se muito culpada. Gastaram o dinheiro que tinham para o resto do mês e encaminharam-se para a casa do doente.
Chegando lá descarregaram as compras e se redobraram em cuidados com Saulo. Ele ficou encantado com tamanho desvelo dos colegas de sala que nem eram tão seus amigos assim. Passaram lá o dia todo . Já anoitecendo Luiza revolveu que iria passar a noite na casa do colega.
-Se ele precisar de alguma coisa durante a noite; é para garantirque ele não mo...Aí Deus!Exclamava ela , arrependida e culpada.
Nesta noite Luiza não dormiu. Passou todo tempo cuidando de Saulo, que ficou enternicido com a dedicação da colega. Luiza observou que Saulo tinha traços muito bonitos e uma boa conversa.
-Nunca tinha reparado nele. Pensava ela.
Na manhã seguinte Saulo estava curado. Foi para Universidade e contou aos colegas quão amigos eram Luiza, Carol e Cicinho.Ninguém entendeu os cuidados dos três com o colega. Estes por sua vez ficaram mais chegados a Saulo, principalmente Luiza que depois de um mês estava namorando aquele que um dia, ela matou.
Os anos se passaram. Saulo e Luiza se casaram um mês depois da formatura. Foram morar no Maranhão. Saulo não cansava de contar a todos como conhecera e era grato à esposa e os padrinhos de seu casamento( Carol e Cicinho, claro). Como eles eram pessoas generosas que se dedicavam ao semelhante. Nunca soube da verdade e viveu muito feliz ao lado de Luiza. Esta também era feliz ao lado do marido, só que de vez em quando acordava assustada no meio da noite, sempre com mesmo pesadelo que resumia-se nela chegando aos amigos da universidade e dizendo: Vamos matar o Saulo!