"Tomei consciência de que a força invencível que impulsionou o mundo não foram os amores felizes, e sim os contrariados".
(Trecho do livro "Memórias de Minhas Putas Tristes")
 
     Após olhar suas mensagens no celular, Júlia guardou o telefone. Tocando suavemente seu cabelo, olhava para o restante do bar pensativa. Nos últimos dias, vinha sentindo-se de bem com a vida na maior parte do tempo. Não sabia muito bem explicar o porquê. Não estava pulando de felicidades ou alegria, mas sentia que estava encaminhando sua vida na direção certa.

     Embora tivesse seus momentos de melancolia, julgava-os necessários e, de certo modo, até proveitosos, contanto que não os deixasse tomar de conta do seu cotidiano e de si mesma. Entendia que a tristeza era tão efêmera quanto a felicidade, e que ambas não passavam de momentos. Acreditava que ninguém poderia ser triste por uma semana ou mês inteiro, muito menos feliz. Para ela, não se era feliz nem infeliz viviam-se felicidades e infelicidades.

     Para Júlia, elas faziam uma dança das cadeiras na qual, de acordo com a música, apenas uma conseguia tomar o lugar e sentar. Nunca as duas. Assim, tudo se tratava de uma alternância de sentimentos. Julgava que tanto a felicidade quanto a tristeza eram superestimada e subestimada, respectivamente. Chorava quando sentia que precisava chorar, quando seu corpo pedia. Ria quando a alegria saltava do seu peito, quando a felicidade e a paz corriam por suas veias. Respeitava o próprio corpo, atendendo sempre às suas necessidades. A corporeidade sempre lhe foi algo que devesse ser valorizado.

     Sentada sozinha com um copo de vodka à sua frente, observava as pessoas nas mesas ao redor. Seu olhar era analítico, questionador, e, ao mesmo tempo, sereno e tranquilo; varria os rostos de cada um buscando algo. Estava só naquele bar não porque lhe faltassem companhias, mas sim porque gostava de desfrutar dos seus momentos de solidão. Sentia sempre a necessidade de reservar um tempo para si e organizar suas ideias.

     Por vezes, tudo o que desejava fazer era desligar-se do mundo. Gostava de levar seu cachorro para passear na praia. Colocava seus tênis e corria centenas e centenas de metros, sentindo o suor escorrer pelo corpo. Às vezes, ficava parada na beira da praia e observava o vai e vem das ondas, perdendo-se nos próprios pensamentos. De braços abertos, sentia o bater do vento em cada canto do seu corpo. Sempre que possível, pegava seu carro e saia estrada afora. A cada paisagem, uma reflexão; uma lembrança.

     Após pagar a conta do bar, saiu caminhando pelas ruas em direção ao seu apartamento, que não era muito longe dali. O relógio marcava onze e meia da noite. Já perto de seu prédio, vira um carro preto que se aproximava lentamente e com faróis apagados. A rua estava completamente deserta. Conseguia identificar dois vultos pretos dentro, mas, àquela distância, era impossível reconhecer os rostos.

    Júlia parou e colocou a mão discretamente perto do lugar onde guardava a arma na cintura e aproximou-se devagar do prédio. O carro ligou os faróis e deu partida no motor. Enquanto ela ficara parada e séria olhando para o carro, duas garotas saíram conversando e gargalhando da casa onde o carro estava estacionado em frente; entraram nele logo em seguida e saíram. Júlia respirou aliviada. “Deve ser a vodka”, pensou rindo por um instante.

     Já em seu apartamento, tomou um banho e foi deitar-se em sua cama. Após olhar seu celular, colocou-o em pé na sua cômoda ao lado da cama. O telefone tocara. Era Lucas, jovem policial de outra delegacia com o qual namorou durante certo tempo. Não se falavam há alguns dias, desde que ela havia terminado o relacionamento e pedido um tempo para si, a fim de por suas ideias em ordem. Embora gostasse muito dele, sentia que não poderia lhe dar o mesmo amor que recebia em troca. Muito menos achava que conseguiria continuar os próximos meses e anos de sua vida correspondendo às expectativas dele. Ainda que a relação sexual entre ambos fosse forte, isso não era, de longe, o suficiente.  Sentia que ele não poderia acompanhá-la em sua vida.

     Suas personalidades eram diferentes, mas tinham uma espécie de afinidade extremamente agradável. Acreditava que as semelhanças e projetos de vida comuns eram o que cimentava uma relação em longo prazo, mas não achava que as diferenças de personalidades fossem um fator decisivo na validade de um relacionamento. Pesavam, mas não validavam. Para Júlia, contanto que as vontades e planos mais íntimos de cada um não se anulassem ou se contrapusessem, era possivelmente cabível um relacionamento a dois entre duas personalidades distintas. Não acreditava em generalizações, e julgava a personalidade humana assaz singular para tirar quaisquer conclusões a priori.

     Júlia era independente, livre, ativa; sonhadora. Queria desbravar o mundo. Queria explorar tudo aquilo que pudesse. Cada caminho, cada rua, cada alma. Embora amasse a carreira de policial, não descartava a opção de se aventurar em outros ofícios ou lugares. Nunca achara que sua vida estivesse limitada a um só caminho possível. Sentia-se extremamente capaz de se adaptar a situações novas, adversas. Poderia mudar de marcha ou direção a qualquer momento. Mas procurava sempre limitar-se de alguma forma, pois tinha medo de esvaziar-se de si mesma. “Quem não se limita se esvazia”, pensava. Perder-se de si sempre fora o seu maior medo.

     Sentia-se potente. Por vezes a solidão batia à sua porta, trazendo um sentimento de ausência. Romântica ao seu modo, procurava não idealizar ou fantasiar demais. Amar e ser amada jamais lhe parecera ruim. Acreditava que poderia ter uma vida conjugal agradável e viver bem, e acreditava também no contrário que era perfeitamente possível viver bem sem namorado ou marido. No entanto, não achava que Lucas pudesse ser feliz ao seu lado.

     Não descartava a opção de que o egoísmo ou o medo pudessem estar influenciando pesadamente sua decisão, mas não queria que ambos corressem o risco. Além de sentir que não poderia fazê-lo feliz, sentia que não o amava o suficiente, ou talvez nem o amasse. E o sentimento alheio sempre fora algo importante para ela era incapaz de fazer de alguém seu prisioneiro ou dependente.

     Seu telefone parara de tocar. Naquele momento, Júlia sentiu um misto de tristeza com alívio. Tocou novamente. No escuro, olhava para o celular com um olhar de pesar.  Queria culpar o destino; queria culpar a si, mas sabia que não havia culpados. Talvez cúmplices, mas não culpados.

Duas chamadas não atendidas.

Duas vidas em caminhos diferentes.

Seus olhos se fecharam lentamente enquanto caía no sono. Em seus sonhos, Júlia estava em paz. Pela janela, a brisa fria da noite anunciava a certeza de que, ao amanhecer, a vida se renovaria.

Dia após dia.