Eu sempre me orgulhei dele. Embora muitas vezes não entendesse seu jeito de ver o mundo, seu modo de lidar com situações, sempre o respeitei pela coragem e determinação. As suas fragilidades emocionais me eram um tanto complexas... Por quê insegurança quanto a ser amado? Por quê sua necessidade de ver armários cheios de comida, se demoraríamos no consumo? E tantas roupas, não para si, mas para mim, como se disso dependesse minha felicidade?
     Convidou-me à viajar com ele nas férias. Destino: sua cidade natal. Aceitei com prazer conhecer os lugares nos quais viveu até seus dezoito anos. Eu sabia, por ele, que não veria belezas, mas apenas conheceria as pessoas sobre as quais me falava, além de casas em que morou, lugares onde trabalhou... Enfim, o objetivo principal eram suas origens.

     Estou de volta. Sento-me quieta e tento absorver o que ouvi sobre ele. Sobre a cidade, ele estava enganado. Meus olhos souberam captar inúmeras belezas da terra onde cresceu; creio que até mesmo ele se surpreendeu, pois vi claramente a emoção em seu rosto. No entanto, enquanto eu ouvia sobre o menino que nasceu em um contexto de extrema pobreza, também percebi dor em sua expressão.
     Pessoas que conviveram com ele e que o ajudaram da maneira que puderam – motivo pelo qual ele fez questão de visitá-las -, falaram sobre um garotinho muito pequeno que trabalhava de sol a sol em lavouras de fumo, mandioca, milho, arroz, feijão, além de roçadas e derrubadas de matas para o plantio (tudo isso com foices e machados). Um pré-adolescente que trabalhava arduamente e que sempre estava com fome; um adolescente que não pode estudar, porque precisava trabalhar... Que trabalhava em troca de comida para si e de leite para levar para a família. Como tudo o que fazia era bem feito; como nenhuma comida recusava, enquanto muitos reclamavam; como aceitava com um sorriso qualquer peça de roupa que lhe davam, um casal, proprietário de terras onde ele trabalhou, resolveu ajudá-lo a ir embora dali.
     Meu cérebro tentava processar as informações. A mãe o deixou ali e foi embora. A família que o criou, exigia esforços físicos adultos de uma criança. Não os culpo, nada disso. Apenas, sinto uma dor no coração ao visualizar aquele garotinho sempre triste, mas cujo sorriso brilhava ao sentar à mesa dos patrões para comer e também quando vestia uma peça de roupa que não fosse feita de sacos de farinha remendados.
     Ele falava sobre sua infância e adolescência, mas não com esses detalhes. Quando o questionei sobre as omissões, respondeu-me que, simplesmente, não gostava de falar disso, mas olhando-me nos olhos por um instante e, baixando a cabeça, chorou. Entre soluços, falou que o que me contaram foi o que viram, mas só mesmo ele é que sabia como se sentia: exausto; com dor no estômago de fome. Dolorido; triste e sonhando com uma vida diferente.
A breve visita ao passado foi dolorosa para ambos, mas só por alguns momentos. As causas de suas idiossincrasias me fizeram relembrar que toda pessoa é coerente, pois é histórica.

     Seu passado, de certa forma, nos trouxe um novo presente. E, o dia de hoje é somente o começo de um maior conhecimento mútuo. Eu, sabendo que suas vitórias são frutos de superações que não precisei ter. Ele, sabendo que as minhas são motivadas por uma outra busca... Uma outra história.  E assim seguiremos. Escrevendo a terceira história. A nossa história; essa em que vivemos e na qual estamos juntos. Essa, começa assim: “Era uma vez, NÓS...”.

 
 
miriangarcia
Enviado por miriangarcia em 06/01/2014
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