Boas Festas

Eu estava na minha baia, sentado junto ao computador, redigindo mais um dos inúmeros documentos a que estava acostumado. Era apenas mais um dia rotineiro no escritório. Quando digo “rotineiro”, mas não quero que o leitor entenda esse adjetivo como algo negativo. Pelo contrário, eu o utilizo como uma das coisas mais maravilhosas que poderiam me acontecer.

Cito que eu estava em minha amada e repetitiva rotina, porque ela estava para ser abalada. Mal sabia eu que eu estava prestes a receber um enorme chute em meus testículos. Graças a Deus, não literalmente, pelo menos. A dona Goreth, minha chefe – e a mulher mais doce que eu já conheci depois de mamãe e vovó –, seria a responsável pelo chute.

Dona Goreth era uma velhinha cuja idade era uma incógnita (mas que deveria ter pelo menos uns setenta anos), magra e de aspecto frágil, que parecia que se espirrássemos em sua direção, ela sairia voando igual uma folha de árvore abandonada ao vento. Brincávamos que ela era tão leve que parecia precisar de uma âncora amarrada a uma das pernas em dias de vendaval. Difícil acreditar que uma mulher desse porte pudesse chutar meus colhões.

Enquanto eu trabalhava a dona Goreth, apesar de ser minha chefe, gentilmente bateu em minha porta pedindo licença pela interrupção, pedindo que eu a encontrasse na cozinha, onde os funcionários tomavam um cafezinho e tinham alguns momentos de descontração no dia de trabalho. Eu estava salvando o documento no computador, quando percebi que ela chamava os demais funcionários em suas baias. Marchamos todos em direção a sua sala.

Com os doze funcionários apertadamente reunidos na cozinha, a dona Goreth anunciou, com sua voz suave:

- Gente, tá chegando o Natal e nós precisamos marcar a data da nossa confraternização e fazer o sorteio do amigo secreto.

Creio que não foi apenas um chute, mas sim dois chutes, um em cada gônada: confraternização e amigo secreto!

Ouvi alguns aplausos e risinhos de felicidade, todos satisfeitos pela festinha. O povinho do escritório é bem festeiro, adora essas ocasiões. O único alienígena ali sou eu.

- Só que vocês sabem muito bem que nosso escritório possui uma peculiaridade: é no Natal que tem mais serviço, que o negócio aperta. Hoje é dia 20 de novembro, então falta pouco mais de um mês pro Natal ainda. Só que eu queria marcar nossa festinha pra no máximo daqui duas semanas. – após uma pausa, continuou, olhando para mim e mais duas colegas de trabalho – Eu queria saber de vocês três, que são os que estudam, como que tá as aulas, as provas? Já acabou, não acabou, como é que é?

- Ah, a minha acaba sexta-feira agora, só faltam mais duas provas, dona Goreth. – disse uma das funcionárias, a minha esquerda.

- Pra mim faltam quatro provas ainda, mas até semana que vem acabam todas. – respondeu a funcionária a minha direita.

Após um momento de silêncio, percebi que todos olhavam para mim, que era o único que ainda não respondera a dona Goreth. Só percebi isso quando recebi uma discreta cotovelada da funcionária da direita.

- Eu ainda tenho todas as provas e alguns trabalhos para fazer, dona Goreth, nem sei quando acabam, mas não se preocupem comigo. Podem fazer a festinha sem mim mesmo, não quero atrapalhar vocês. – disse eu, torcendo para ela morder a isca e aceitar minha ideia.

- DE JEITO NENHUM! – falou dona Goreth, em tom sério, mas maternal. – Todo mundo ter que participar, Kily, inclusive você! Faço questão da sua presença lá. Trate de ver até quando vão suas provas e me dê uma resposta amanhã, para marcarmos o dia da confraternização.

- Sim senhora. – respondi.

- Por ora, vamos fazer o sorteio do amigo secreto. – disse ela, sorrindo e pegando em sua mesa uma caixinha improvisada, que continha papeizinhos dobrados, cada um contendo o nome dos funcionários da empresa. Eram 14 papeis, sendo doze com os nossos nomes, mais um com o nome da dona Goreth e outro com o do Seu Chico, marido dela e nosso patrão.

Gelei. Não queria participar do amigo secreto. Entretanto, em nenhum momento dona Goreth disse que a participação era facultativa. Pelo visto, não teria jeito, eu teria que abdicar de minha vontade e encarar aquela confraternização como um ônus pelo excelente emprego que eu tinha dentro da empresa. As frustrações que eu não passava trabalhando, acabaria passando na confraternização. Ou “festinha”, como preferiam chamar meus coleguinhas.

- Dona Goreth, eu acho que eu não quero participar do amigo secreto. – arrisquei, depois de tomar coragem.

Todos olharam para mim. Dona Goreth olhou para mim surpresa, como se de súbito meu rosto estivesse repleto de chagas. Ela disse, naquele tom em que não cabia contra-argumento:

- Mas é claro que você quer participar! Todo mundo vai participar! – e depois, soltou o seu mais belo sorriso.

Ela distribuiu papel um a um, inclusive para mim, ignorando meu desejo, como se eu estivesse cometendo um erro de julgamento. Ao final, sobraram dois papeis.

- Esse aqui é o meu e o outro eu vou deixar na mesa do Francisco. – disse ela, já que seu simpático marido não se encontrava no momento.

Mas que droga! Mas que grande droga! Mas que drogona! Sem o amigo secreto, eu poderia faltar da festinha e inventar uma desculpa depois. Dor de cabeça, morte na família, ônibus quebrado, ou outro imprevisto. Qualquer coisa! Mas com amigo secreto, eu não teria coragem de deixar uma pessoa sem presente. Detesto amigo secreto, mas eu acho uma sacanagem que participa de amigo secreto e falta no dia da revelação ou se esquece do presente. São os maiores trolls do fim de ano.

Após um burburinho, quando o pessoal conversava e brincava na cozinha, uns sorrindo e dizendo “que bacana! Adorei ter tirado essa pessoa!”, outros fingindo tentar ver quem as demais pessoas tiraram, outros ainda dando indireta sobre o presente que gostariam de ganhar, eu sorria e tentava fingir que eu era um ser humano normal ali naquela cozinha.

Todos voltaram altivos e aparentemente mais motivados para o trabalho após aquilo. Agora só dependiam de mim para marcar o dia da festinha. Voltei para minha baia, sentei-me em minha cadeira, querendo me afundar no trabalho pelas duas horas que restavam antes de ir embora, e esquecer aquela festinha estúpida. Foi quando lembrei que eu tinha me esquecido de abrir meu papelzinho e ver quem era meu amigo ou minha amiga secreta.

Que droga, do jeito que eu sou azarado, vou tirar a pessoa que menos tenho afinidade nesse escritório. To até vendo já! Vou abrir esse papel e vai estar o nome da Bárbara aqui. Ao menos se eu tirasse a Suzana, que é a única que eu conheço bem os gostos... aí pelo menos diminuiria a minha desgraça... Acabar jamais.

Abri o papel. Vi o nome ali escrito. E sorri.

Obrigado meu Deus. Eu te amo do fundo do meu coração! Ô glória!

No papel, escrito numa caligrafia dura e feia, meu próprio nome: Kily! Eu havia tirado eu mesmo! Eu estava fora do amigo secreto! Já comecei a fazer planos. Iria ver em que dia cairia a minha última prova e diria para dona Goreth no dia seguinte para marcar a confraternização no dia dessa prova. Depois, eu inventaria a desculpa de que a prova fora remarcada de última hora e por isso eu não pude ir. Quanto ao amigo secreto, bem, para isso eu inventaria uma desculpa depois. O importante era que eu estava salvo.

Publicado originalmente no blog Pra Gente Rir, no endereço: http://pragenterir.blogspot.com.br/2013/12/boas-festas.html