Prieto

Tenha santa paciência para ler esta postagem, pois é longa e maçante. Caso consiga, irá ganhar um pirulito de morango. Trata-se de mais uma tentativa (frustrada, diga-se de passagem) de escrever um texto nonsense, e me tornar pioneiro no gênero. Mas não desanimem, pois eu ainda vou melhorar. Ah, se vou...

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São Paulo, 10 de novembro de 2011

Como já dizia um sábio pensador: “Nós só temos uma chance na vida. Por isso nós devemos aproveitar essa chance como se fosse a única.”

Infelizmente, só fiquei sabendo deste pensamento há pouco tempo, depois de ter falhado na única chance que me foi oferecida para vingar-me. O fato é o seguinte: tive uma infância difícil, eu era um piá pobre e vítima de preconceito. Pra começar, sou o que costumam chamar de filho de coito danado, ou seja, fruto de uma relação sexual proibida. Fui concebido por um mascate e uma noviça, que, além de quebrar os votos, agravou seu pecado por ser meia-irmã do dito vendedor.

Minha mãe me pariu e em seguida sumiu no mundo. Meu genitor eu nunca vi. Fui criado num convento, como garoto órfão. E mesmo dentro da casa de Deus, sempre fui visto como o filho do diabo, fruto do pecado, enviado de Satã, dentre outros termos pejorativos. Não bastasse todos esses predicados, fui castigado com o maior de todos os males: nasci negro. Nada me envergonhava mais do que ser chamado de negro, negrinho, preto, carvão, petróleo, tição, tiziu, piche.

Apesar disso tudo e dos seqüentes estupros que sofri eu dei a volta por cima. Cresci, estudei, me formei em boa faculdade, casei-me com uma bela mulher surda-muda branca (tivemos dois filhos juntos, nos dois primeiros anos de casados), adquiri bens invejáveis e abri meu próprio negócio, em sociedade com meu melhor amigo branco. Jamais imaginara ser possível sentir tamanha felicidade, como aquela que inundava o âmago de meu ser. Mas a vida tem uma dessas rasteiras, e uma delas estava armada contra mim.

Dizem que o preço da felicidade é a ignorância. Ora, se sou confrontado com a verdade, infeliz me torno. E foi quando descobri. Avisei meu sócio que eu iria participar de um Simpósio de grande relevância para nossos negócios. Minha secretária reservou minha passagem aérea para o vôo das 19 horas e eu fui para casa com antecedência, tomar um banho e me arrumar para a viagem. Parti para a rodoviária de táxi. Isto mesmo, para a rodoviária. Só quando cheguei lá me dei conta de meu desligamento. Eu deveria ter ido para o aeroporto! Mas foi este pequeno incidente que me permitiu descobrir toda a verdade (e consequentemente, como já dito, ficar infeliz).

Comi alguma coisa na rodoviária e pedi para o taxista me levar de volta para casa. No trajeto de volta fomos conversando sobre a vida em geral, família, esposa, filhos, reviravoltas, etc. Não perdi a oportunidade de contar vantagem, dizendo o belo salto que minha vida dera. Falei sobre meus negócios, meu belo apartamento e minha bela esposa. E o taxista riu.

- Não confie em mulher alguma, meu chapa! Quando menos esperar, ela lhe passará uma rasteira!

Proféticas palavras daquele sábio senhor. Só não sou mais grato ainda a ele por não ter recebido aquele alerta antes. E também por ele ter me assaltado assim que cheguei ao meu destino. São ossos do ofício, disse o homem.

Já era noite. Uma bela noite estrelada. Esfriara. Passei no estacionamento do meu prédio, para ir até meu carro e pegar uma blusa. No estacionamento, notei o carro de meu sócio. E uma luz de alerta se acendeu dentro de mim. Subi até meu andar. Um instinto dentro de mim obrigou-me a abrir vagarosamente a porta, sem barulhos. Entrei em meu apartamento. Um abajur da sala estava aceso e isso me permitia ver um elegante casaco jogado no sofá da sala. O mesmo casaco que meu sócio usara naquele dia.

Caminhei devagar até o quarto, onde a maior fonte de luz do apartamento era percebida. A porta estava encostada, mas era possível ver o que acontecia dentro do quarto pela fresta da porta. E o que vi me atingiu como um soco no estômago. Entrei no quarto, surpreendendo os dois pombinhos bem no meio de um coito nada convencional. Uma bílis azeda me subiu a garganta, e ali mesmo comecei a vomitar, sobre os corpos despidos dos dois. As duas figuras inertes me olhavam, sem saber o que fazer. Então eu agi. Abri meu criado-mudo e saquei um revólver. E foi aí que, para surpresa minha, de meu sócio e de meus dois filhos, minha esposa gritou:

- Não o mate, Prieto!

Nesse momento, minha esposa confessou tudo. Confessou que me traía desde o período de namoro, confessou que amava Blanco, o meu sócio, e que pretendia separar-se de mim para casar com ele. Mas a parte mais dolorosa de todas foi quando ela confessou que as crianças, aqueles dois garotos que amei como se fossem meus filhos, na verdade não eram meus.

- Olhe para a cara deles, Prieto, será que não percebes? Um deles é filho do Tadao Shiguefuzi, o japonês da padaria da esquina e outro é filho do Fritz, o açougueiro alemão.

Aquilo explicava muitas coisas. Explicava principalmente o que sempre fora um grande mistério para mim: como os filhos de um negro como eu poderiam ser tão clarinhos, um loiro e o outro com o cabelo lisinho e olhos puxados? Para meu deleite, a única coisa que amenizou a dor desta revelação foi a expressão de incredulidade de meu sócio. Pelo visto, ele também acreditava ser o pai das crianças.

Apontei a arma para a cabeça de minha esposa. E dela passei para a cabeça de meu sócio. Em seguida, passei a mira para Tadao Junior, de três anos e para Fritz Junior, de dois. Agora tudo fazia sentido. Até mesmo os nomes de batismo apontavam para a verdade. E eu estava tão cego que não pude ver...

O medo estampado nos rostos dos ali presentes me deu uma satisfação sadista. Mas não tive coragem de atirar. Coloquei a arma na cintura e sai do apartamento. Estava tudo perdido. Fui até o edifício sede de nossa empresa. Entrei em meu escritório, me tranquei por dentro e sentei-me a mesa. Comecei a pensar em como minha vida tinha sido boa nos últimos três anos. Mas tudo passara tão rápido. Em contraste com o restante de minha vida, que tinha sido horrível, esta parte parecera durar uma eternidade. É como já dizia a teoria da relatividade, enunciada pelo grande físico Albert Einstein (também fundador da lei da gravidade e lei seca), as coisas boas parecem passar muito mais rápido do que as coisas ruins.

Peguei um extrator de grampos e passei nos pulsos, na tentativa de corta-los. Tarefa árdua, finalmente consegui. Senti um incômodo na cintura. Lembrei-me da pistola. Droga! Depois de todo o trabalho que tive para cortar os pulsos! O sangue escorria com maior lentidão do que eu esperava. Foi nesse momento que decidi escrever essa carta de despedida. Mostrar que um homem, por mais conquistas que tenha em sua vida, não é nada sem sua mulher. Por isso, aconselho a quem ler esta carta, carpe diem. Aproveite os bons momentos com sua mulher, pois uma hora ela irá te trair e esses momentos serão apenas uma triste lembrança. O pensamento que me ocorreu naquele momento foi: "você deveria tê-los matado, Prieto. Você foi fraco Prieto, por que foi tão fraco? Porque faltou ódio".

Com a proximidade da morte, me sinto mais sábio. Já sinto um leve frio percorrendo todo meu corpo. Uma quantidade assustadora de sangue já se esvaiu de mim. Já está na hora de morrer de uma vez. Por isso, aqui encerro.

P.S. Lembrei-me de uma coisa importante: Blanco, tem dinheiro dentro do pote de açúcar lá em casa. Use ele pra pagar a conta de luz, água e a lavanderia. E não se esqueça de pegar a roupa lavada lá. Faça isso por mim. Você a única pessoa que eu confio para isso. Beijos.

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Prieto encontra-se internado no Hospital Sírio-Libanês e não corre risco de morte.

Publicado originalmente no blog Pra Gente Rir, no endereço: http://pragenterir.blogspot.com.br/2011/11/prieto.html