Senso de Justiça

SENSO DE JUSTIÇA

Anne e Sandra eram muito amigas, elas eram o que popularmente se diz “unha e carne”. Conversavam, compartilhavam tudo, tudo mesmo, até o lanche que a Anne fazia questão de comer as escondidas, repartia com Sandra, afinal, era sua grande amiga.

Sandra era mais extrovertida, Anne mais tímida, mas as grandes idéias partiam sempre da cabecinha dela, dava um jeito para tudo, além de ser muito criativa, estudavam juntas e, quando Anne não entendia o assunto, fingia entender, jamais admitia sua dificuldade e argumentava de tal forma que confundia que estava por perto parecia que os livros e mestres estavam errados e ela é quem dominava a arte de ensinar.

Anne, fisicamente falando, era baixinha de cabelos ligeiramente encaracolados, boca pequena, considerada antipática pela maioria. Gostava de ler, tinha um certo senso de justiça, não muito comum para sua idade e, numa dessas ocasiões resolveu coloca-lo em prática.

Um colega de classe, o Gilson, todos os dias agredia a Fátima que chorava e se queixava.

- O que aconteceu Sandra? A Fátima está participando de algum concurso para eleger a garota mais chorona da Escola?

- Não é isso não, é que o Gilson, aquele que senta na última carteira, espanca a Fátima sem motivos.

- Por que ela não fala para a mãe dela, para a diretora, sei lá, faz algo?

- Não pode.

- Por que não pode?

- Ele a ameaça, ela tem medo dele.

Por vários dias Anne procurou um meio de ajudar a colega, ficava calada, observava apenas.

Sandra a conhecia e sabia que a qualquer hora ela ia explodir com uma idéia daquelas, de causar espanto e foi isso mesmo que aconteceu.

Um dia interrompeu a Sandra que estava em meio a uma conversa puxando-a pelo braço.

- Sandra, você não sabe o que pensei. Antes que a amiga respondesse ela completou.

- Reúna as meninas no corredor próximo a sala 10, preciso falar-lhes, só as meninas na hora do recreio.

- Mas para que?

- Faça o que eu mando.

- O que? Manda? Imagine, você mandar em mim, espere...

E ela já havia descido as escadas, ou melhor, deslizado pelo corrimão.

Sabia que Sandra faria o que mandava, afinal ela era assim, relutava, mas acabava obedecendo, pois confiava cegamente que se tratava de algo importante.

No dia, horário e local marcados, estavam as meninas em grande euforia, quando Anne, calmamente aproximou-se. Quando a viram, todas se calaram. Ela, em tom firme e decidido lhes dirigiu a palavra:

- Vamos precisar nos unir para ensinarmos ao Gilson algo que ele não aprendeu. Assim, expôs seu plano minuciosamente, todas ouviram atentas, alguém ia discordar mas não ousou.

O olhar de Anne era penetrante, havia autoridade naquele olhar, autoridade que não permitia que alguém lançasse dúvidas sobre seus planos.

Agradeceu, pediu sigilo absoluto. Todas concordavam acenando com a cabeça, uma a uma saíram dali.

Sandra queria falar-lhe mas mal abriu a boca, Anne cortava-lhe as palavras.

No dia seguinte, ao chegarem à escola, aparentemente tudo estava normal até a hora do recreio, pois esta hora foi inesquecível, principalmente para o Gilson. Ele estava sendo esperado por meninas que, em vez de saborearem o lanche, cravaram suas unhas no Gilson de tal forma que ele se jogou no chão onde não pode se levantar até ter a roupa rasgada, os cabelos parcialmente arrancados, só não sofreu mais porque a Diretora fora chamada, veio correndo junto com a secretária e o porteiro. A escola inteira só olhava o Gilson apanhar e a Fátima, mais particularmente, sentia uma alegria íntima indescritível, aquele que a espancara agora sentia a dor da humilhação que ela sentira todos os dias.

A Diretora conduziu todos para a sua sala, queria saber a verdade, ninguém se manifestava.

- Anne, você tem algo haver com isso?

Altiva ela respondeu:

- O fato, senhora diretora, é que o Gilson batia na Fátima todos os dias e a ameaçava se falasse algo para a mãe ou para a senhora.

- Gilson, isso é verdade?

Cabisbaixo Gilson respondeu:

- Não senhora.

- Tem certeza?

- Sim senhora.

Neste instante os olhares dele com os da Anne se cruzaram e ele sentiu as pernas cambalearem.

- Tudo bem, vamos chamar a Fátima.

Fátima chegou e foi interrogada, confirmando o que Anne havia dito, dando maiores detalhes. O medo que Gilson lhe causava parecia desaparecer, pelo menos naquele instante.

- E então Gilson? O que você me diz?

- Senhora ela está mentindo... Não totalmente, só um pouco, eu só fazia porque ela me irritava com esse jeito de medrosa. Fiz uma brincadeira e depois gostei, e pronto.

- Então mocinho vamos conversar com a sua mãe, quero saber dela se faz parte de sua educação este, vamos dizer, tipo de brincadeira que machuca e fere as pessoas.

Hoje você vai levar este bilhete, amanhã, se sua mãe não vier, não entrará na Escola. E nada de bater na Fátima ou em qualquer outra, entendido?

- Sim Senhora.

- Fale olhando-me nos olhos.

- Sim Senhora. Tomou o bilhete entre as mãos e saiu cabisbaixo.

- Fátima, quanto a você, quero sua mãe aqui amanhã. Pode ir.

- Bem, agora Anne somos nós duas. Não devia ter feito isso, fez de maneira errada.

- Só quis dar uma lição naquele moleque.

A violência não é o caminho, não repita mais isso, poderiam ter se machucado. A direção deve ser informada dos eventuais problemas e resolve-los, agora vá.

Anne saiu calmamente em direção a sua sala de aula. Fátima ao vê-la agradeceu a intervenção. Ela não deu muita atenção. Naquele dia sentia-se particularmente feliz, tinha a consciência do dever cumprido.

Hoje, passando, revendo algumas fotos, há uma em que Anne e Sandra estão tomando sorvete juntas com vestidos iguais, voltei ao passado e revivi momentos que nunca esqueci, sei apenas que Anne estuda direito em outra cidade e pretende ser juíza, ainda não saciou a sede por justiça. Embora agora utilize outros meios para atingir seus propósitos.

Sandra casou-se e agora vive com três filhos, vive para eles.

Não vi mais a Fátima, nem o Gilson, mas soube por um amigo que, por ironia ou capricho do destino eles se reencontraram, apaixonaram-se e casaram.

E eu? Um contador de histórias.

Apenas um contador de histórias.

Polly hundson