A Perseguição
A crise obrigou a grandes transformações na Empresa. Menos gabinetes, mais espaços comuns, menos pessoas, mais economia. Eliminaram-se muitos arquivos e, pela informatização, reduziu-se, drasticamente, o uso de papel. Na voragem modernizadora houve necessidade de destruir escritos, notas, recibos, registos, catálogos, velhos jornais e revistas, material obsoleto… Vivia-se a polivalência de funções como condição “sine qua non” de acesso ao trabalho e, apenas por isso, fui posto a rasgar papéis, a separar documentos recentes dos demais que urgia fazer desaparecer. Para libertar espaço? Para impedir futuras fiscalizações estatais? Para, simplesmente, apagar ações, negócios escusos, desonestidades? Talvez um pouco de tudo isto. A tarefa congestionava-me o nariz, tapava-me os brônquios, desencadeava-me verdadeiros ataques de asma mas ninguém se preocupou muito com o meu conforto e, antes, me exigiam celeridade que não podia conseguir por ser incapaz de rasgar o que quer que fosse sem ler. Descobri, assim, coisas do arco-da-velha! De cartas amorosas do fundador da Empresa a coristas do Teatro de Revista a fotografias antigas onde alguns chefes prepotentes se haviam deixado fotografar em posturas ridículas ou socialmente condenáveis havia de tudo: trafulhices, prostituição, falsas declarações, contas viciadas, balancetes inventados. A tarefa passou a ser empolgante e, perante muita documentação “cabeluda”, não resisti a guardar, no meu arquivo pessoal, alguns papéis cuja existência esqueci a seguir. Na fase seguinte centenas de trabalhadores perderam o seu posto de trabalho e a insegurança reinava. Traições, delações infames e atitudes abjetas acabaram com convívios saudáveis, camaradagens antigas, amizades de uma vida. Dividiam as pessoas para reinar. Trocaram-me de serviço, perseguiram-me, e, na etapa final, fiquei meses sem que me distribuíssem trabalho ou me falassem. Na minha ausência e sem me darem conhecimento, trocaram o lugar da minha secretária enquanto sucessivas humilhações me faziam notar que estava a mais naquele emprego. Paradoxalmente, quando pedi a rescisão do meu contrato, disseram que eu não fazia parte do grupo de excedentários e que, portanto, se quisesse sair não teria direito a qualquer compensação. Foi um sofrimento terrível, um desgaste psíquico muito grande e o começo de uma depressão que se arrastava pela falta de solução para o meu caso. Doente e muito fragilizado, fazendo arrumações para me distrair, reencontrei os documentos que subtraí à destruição. Fiz fotocópias de alguns papéis, informei o Diretor de Recurso Humanos que tinha mais em meu poder e pedi que os fizesse chegar à Administração. – Isso até parece chantagem, senhor Mendonça, disse-me ele, preocupado. - Não parece, é chantagem, respondi-lhe. Decidi que é melhor usar a linguagem de quem manda aqui na Empresa. Agora, senhor Diretor, tenho a certeza de que chegaremos a um acordo e que, a mim, também irão compensar, como a Lei reza, sem mais demora. Aguardarei que me informe por telefone da decisão superior sobre este caso. Depois disto regressei a casa, tranquilo. Acabava de chegar quando o telefone tocou e o Diretor dos Recursos Humanos me disse, com falsa alegria: - temos boas novas, senhor Mendonça. O Patrão aceitou as suas exigências. Venha assinar a rescisão compensada do seu contrato quando quiser.
Fim