Compulsória
Leu naquela manhã, a história do escritor Samuel Beckett. Internara-se num asilo ao completar setenta anos.
—Esses escritores... ou muito doidos ou muito lúcidos.Uma lucidez que ofusca a razão pela sua força,pensou.
Percebeu-se estar no mundo, como quem veste uma roupa folgada. Uma súbita inadequação á vida o repelia, a distancias cada vez maiores. No último dia de trabalho, faria diferente. Começaria pela da ida para á repartição. Resolveu ir a pé. Cinco quilômetros, no máximo. Caminhar afugenta a depressão, dizia um médico no jornal de hoje. Duas horas de antecedência, o paletó sobre o ombro.
Ruas semi desertas e a sensação de sobrar no mundo. A caminhada ao longo da praia atraiu a sede. Parou numa lanchonete de posto de gasolina. Olhava o balconista, que enxugava um copo como se o estudasse, absorto nas próprias mãos e nas ranhuras do vidro. Surgiu um problema prático: onde tomar um banho, ao chegar à repartição? Tomou um refrigerante, pagou e retornou para casa.
Cochilou mais uma hora e seguiu no Voyage, cinzento e bem conservado.
Encorpa-se o dia. Povoam-se as ruas. A esquizofrenia diária dá partida nos motores. A cidade atropela-se a si mesmo. Meia hora depois, o centro antigo da cidade.
Na Joaquim Nabuco, o letreiro da última sessão do Cine Moderno: Sev... Pecados capita. Letras vermelhas contra o fundo branco e inútil. Desabam, na câmera lenta dos anos. Um título patético, lá em cima. Resistem os pedaços do caixilho, agarrados ás paredes.
A vida passa, ao largo da calçada do cinema. Os expositores das fotos promocionais, esvaziados. Que pensara o projetista, ao findar a última sessão? Sentira tristeza ou apenas trocara de roupa e fora tratar de sua vida ?
Fantasiou o fechamento do cinema, sem aviso, tal uma morte súbita. Um final sem the end. Todos sairiam, atarantados. Ou despejariam as pessoas do escuro da sala, no final da projeção (saiam, o filme acabou, o cinema acabou)?
A brusquidão, no fim das coisas que amava. Hoje sim, amanhã nunca mais.
Tal sua aposentadoria, anunciada pela moça do RH A bunda mais desejada da seção. O rastro de perfume, um gato arisco.
— Bom dia, doutor Alfredo. Eis a comunicação de sua aposentadoria.
Saia justa, pernas esculturais. O decote modelava duas obras de arte.
Sonho de consumo dos solteiros e pesadelo diurno de alguns casados. A moça tinha história.
Inclinou-se sobre seu ombro. Da cabeça de longos cachos, o perfume ativo acariciava-lhe o ser.
— Bom dia, Fátima. Compulsória ou expulsória? A essa altura, qual a diferença?
Unhas verdes, amarelas, azuis, róseas, sobre a folha do memorando. O sorriso burocrático dourava a pílula.
— Por favor, leia e assine aqui.
Disposto em nítida impressão ”comunicamos a sua aposentadoria compulsória para...” Dali a trinta dias. Assinou, quase sem ler. Dissimulou a surpresa pelo próprio esquecimento. Nada demais. Assim era ele. Mais trinta dias no batente. Depois... depois o que? Um velho, sem planos.
Papelada sob o braço, retirou-se a Vênus calipígia. O scarpin pisoteou olhares esgazeados.
Na cópia sobre a mesa, a caligrafia ainda firme. Na garganta, o nó górdio da tristeza.
A própria assinatura, na alforria indesejada. Caiu-lhe a ficha, diria a turma jovem. Sair depois de trinta e cinco anos de bunda pregada á cadeira. Lia, comentava e carimbava. Empurrava o caudal burocrático. Tanta vida lhe passara entre as mãos. Escutara súplicas. Rasgara sonhos em papel A4. Demandas impressas ou redigidas á mão, em português capenga.
A gramática errada de tantas vidas corretas, no destino torto de vala comum. Agora, a sua vez. O aposentador aposentava-se. Dali a um mês deixaria seu universo, protocolado e cabisbaixo. De muitos amigos e fraternidade nenhuma. De projetos de vida, sussurrados entre um chope e uma lasca de queijo, na calçada do Savoy.
A clara delimitação de espaço, ente os velhos e novos. O distanciamento dos velhos por serem velhos. Um dar as costas despudorado e brusco. A juventude que digitava ofícios e acompanhava o Facebook. Tudo ao mesmo tempo. Os velhos e suas manias. Almeida e sua reclamação do calor da sala, sempre ás quatro da tarde Pontual como um relógio. Como esquecer Almeida, o Pinguim da Antártica, e suas doidices?
A cerveja também mudara Lembrou dos pinguins da cerveja.Tinham sumido.O sabor mudara. Há muito optara pelo chopp e a caninha no final de expediente.
Na calçada do Savoy, circulavam aqueles que se diziam jornalistas. Alguns apontados pelos colegas como polêmicos. Outros, rotulados de “vendidos de pena e alma” aos governos, bancos e partidos políticos. A doce e familiar bandalheira.
Os engraxates Onde andariam os engraxates? Ele mesmo polia os seus sapatos com graxa líquida. Não se lembrava desde quando. .Sem o brilho e a conversa mole tão apreciada. Os engraxates filósofos da Guararapes, enciclopédias da banalidade urbana. Testemunhas silentes da procissão de vigaristas, batedores de carteira, do rebolado do mulherio bonito e gostoso a admirar vitrines. Ponto de equilíbrio, no caos cheirando á gasolina, em que se tornara a cidade.
Ganharia um relógio? Que nada, isso era pensamento grisalho. Nostalgia do que se passava por amizade e consideração. Hoje, pelo menos, não se precisa fingir nada. A indiferença dispensa intermediários.
Que fazer nas oitos horas de liberdade? A viuvez suburbana das tardes vazias? As visitas tediosas dos filhos? O aconchego cada vez mais breve dos netos?
A vida lhe passava ao largo. E percebia-se naquilo tudo. O que fora e o que não conseguira ser. A tristeza apenas lhe marcara a alma. Permanecia o discreto ar de distinção melancólica. O olhar vivo.Resignado com a vida e o que lhe deram para viver. Regido pelo acaso ou qualquer outro dos seus nomes, Deus, destino ou apenas o pulsar de ser vivente.