Relampiano

Os pezinhos saltitam nas poças do meio-fio. O sinal está prestes a abrir. Ainda restam alguns pacotinhos nos retrovisores, uma última corrida e voltam todos pra sacola plástica nas mãos de Neném. Um relâmpago cruza os terraços dos edifícios. Neném contrai os dentes, respira rápido e curtinho algumas vezes pra tentar relaxar e prepara a próxima tentativa. Terá que ser a última do dia. Ele empilha apressado os pacotinhos no antebraço para que a corrida seja rápida. Seu rostinho sofrido lhe devolve olhares rápidos em cada uma das janelas dos carros; nem o sabor das balas, nem seu olhar de súplica vencem a ameaça dos relâmpagos e dos pingos de chuva. As notas amarrotadas vão pra dentro da cueca, a sacola pros ombros, hora de ir rápido pro barraco.

A chuva ainda cai raivosa. Neném ajeita as roupas molhadas sobre o tanque. Sua mãe gosta das coisas arrumadas, não é porque eles são pobres que precisam ser imundos. As notas que Neném trouxe fazem pouco vulto na lata de molho, mas ele sabe que podem ser a diferença entre pouca comida e nenhuma. Ele se senta ao lado do fogão e abraça os joelhos, passa o tempo bafejando na coxa. A lâmpada não dá conta de diluir as sombras de dentro do barraco.

O pai ele não vê faz tempo, e quando vê é pouco, logo toma o rumo da estrada. Dali a pouco Neném atenta pro assovio que vem da trilha, a silhueta disforme de sua mãe aponta no início da pirambeira, de novo uma trouxa enorme de roupa arqueando os ombros fortes. Neném corre ao seu encontro, toma benção e sobe a ladeira orgulhoso segurando uma ponta solta da trouxa.

A mãe bota feijão pra ferver e parte pro tanque, pro segundo turno. Neném aproveita pra chutar lata em frente ao barraco. Depois da chuva ela rodopia de fazer gosto e afunda nas poças de lama.

O asfalto quente tenta, mas não consegue dobrar a resistência dos pés calejados. Neném repete num gesto mecânico o movimento de pendurar os sacos de balas. São cada vez mais e mais carros, e menos pessoas dispostas a girar uma manivela, ou pressionar um botão. Talvez o tamanho de Neném, apesar da pouca idade, as intimide. Nenhuma delas enxerga o guri de rosto sofrido, mas apenas uma potencial ameaça, ou um estorvo. Ele olha pro canteiro central, Gilmar está sentado sobre uma raiz de ipê contando notas e algumas poucas moedas, difícil entender o que sua mãe pretende mantendo esse tipo em casa, mas é provável que a falta do pai a afete mais do que a Neném. De qualquer forma, é seu irmão que agora pesa na barriga dela, e ele é filho desse cara, e apesar disso só por ele Neném insiste nesse ritual ingrato. As balas vão pro saco, as moedas pro Gilmar, os olhos de Neném vão na direção daquele cara ali na esquina, aquele ali, isso, aquele magrelo, de olhar desconfiado. Neném já ouviu muita bronca de sua mãe por mirar aqueles lados, mas olha lá, os carros ali param por vontade própria, os vidros abrem sem insistência, o dinheiro troca de mãos sem piedade. Aquele dinheiro brilha aos olhos de Neném como jamais um relâmpago brilhou.