Programa de pontos para tímidos

Programa de pontos para tímidos

Eu era tímido. Muito tímido, mas feliz assim. Tímido do tipo que prefere atravessar a rua quando avista um conhecido. Sim, seria muito difícil dizer “oi, tudo bem” e, quem sabe, complementar com mais algumas perguntas, até porque saber as respostas estaria longe de ser o meu interesse. Algo parecido acontece quando vejo que alguém vai pelo mesmo caminho que eu, tipo descer aquela ladeira de uns dois quilômetros. Às vezes, opto por fazer voltar ao meu ponto de partida e ir ao banheiro/fingir que esqueci alguma coisa ou pegar um ônibus – mesmo que ela não me leve ao meu destino. Conversar sobre o quê? Duvido que falar sobre o tempo sustente uma convivência de 20 minutos, só se fosse um artigo científico sobre os tipos de nuvens ou sobre a quantidade de raios na cidade. Bom, se eu puxasse assuntos do tipo, acho que ficaria até feliz com o resultado final, pois aí sim que a minha companhia ia preferir a solidão, sempre minha acompanhante. Com o tempo, acho que a relação com essa senhora ficou um tanto quanto desgastada e fui procurar novas parceiras. Sem sucesso, óbvio.

Ao me aproximar do sexo oposto, era sempre um fracasso.

- Oi, tudo bem?

Tunt tunt tunts tunts

- Oi?!

Tunt tunt tunts tunts

- Eu disse “oi, tudo bem?”

Tunt tunt tunts tunts

- Ahhh, Mariana, e o seu?

Tunt tunt tunts tunts

- Diogo!

Tunt tunt tunts tunts

- Thiago?

Tunt tunt tunts tunts

- Diogo!

Tunt tunt tunts tunts

- Ahh, Rodrigo...

Tunt tunt tunts tunts

- DIOGO.

Tunt tunt tunts tunts

- Diego?

Tunt tunt tunts tunts

- Olha, um fonema é a unidade mínima portadora de significado num...

- Ah, cara, não quero ir para um lugar mais sossegado... me deixa!

Não sei se ela era burra ou se um cover da Velha Surda (joga no youtube “A praça é nossa”). Pelo menos consegui me aproximar, dizer meu nome (muito embora ela não o tenha entendido) e ainda por cima (infelizmente esse “por cima” não foi no sentido literal) ter dado uma dica de português sobre fonologia.

Busco um novo algo. Aquela ali com autoestima baixa parece ser fácil (melhor eu não explicar como é essa com autoestima baixa, a polícia do politicamente anda forte pro aí #salverafinhabastos).

- Posso dançar com você?

“chão chão chão chão chão”

Pois é, me sinto no chão quando me aproximo das pessoas.

- Pode!

“vuk vuk vuk vuk vuk”

Por que não vamos direto para essa parte?

- Tá.

- ...

- ...

O papo fluindo. Só que não. Longe de ser “O velho diálogo de Adão e Eva” (entendeu a citação, leitor?).

Depois desses segundos constrangedores, nada como uma saída estratégica para o banheiro. Do banheiro, para casa. Quando estou em casa, é só videogame, pc e tv. Mas bem que meu círculo social poderia ser maior. Não, smartphone não vale.

Diante dos últimos acontecimentos, vejo que preciso não de um jeito de fazer amigos e chegar em mulheres, mas sim de saber interagir com as pessoas. Oi, simples assim. O que fazer para conseguir tal feito? Será que a amizade pode ser isolada em um algoritmo? Duvido, nem Sheldon Cooper conseguiu fazê-lo. Hum, pensando. Sei em que pontos errei... pontos... caso fosse um jogo, quantos pontos eu teria perdido hoje? Pontos, é isso! Farei um sistema de pontos para incentivar a minha interação social! Como assim? Veja!

1) Dar bom dia/boa tarde/ boa noite: 0,5 ponto.

2) Obrigado/ Com licença/ Desculpas: 1 ponto.

3) Aperto de mão: 2 pontos.

4) Beijo no rosto: 3 pontos.

5) Abraço: 5 pontos.

6) Beijo na boca: 10 pontos.

A cada dia, terei que fazer 20 pontos.

Começou!

Acordo e vou direto para a cozinha tomar café. Dar bom dia para as calopsitas não vale. Ninguém mais em casa, só eu. Minha missão começará pelas ruas mesmo.

- Bom dia.

O porteiro me olha assustado após o cumprimento. Ele nem sabia que eu falava. Quando a pessoa não retribui o cumprimento, será que vale?

Continuo. Aceno para o ônibus, ele para, entro e dou bom dia ao motorista. Ele não responde. Digo de novo, ele, tal qual Dona Florinda...

- O que tem de bom? 6:30 da manhã e já estou trabalhando, meu irmão!

Bom, apesar da reação negativa, já tenho 1 ponto. Olho para os lugares disponíveis no ônibus, ainda bem vazio, escolho um em que há também uma senhora de idade. Sento e dou bom dia para ganhar mais 0,5. Ela retribui, fico feliz, mas pelo jeito ela ficou mais feliz ainda.

- Bom dia, meu filho, tudo bem com a graça de nosso senhor Jesus Cristo. Veja, eu, uma senhora de idade, acordo todos os dias bem cedo e pego esse ônibus para ir trabalhar, você acredita?

- Acredito, senhora, estou vendo.

- Pois bem, e você acredita que eu sou viúva?

- Acredito, a senhora é tão chata que o seu marido não deve ter aguentado e preferiu a morte. Apenas pensei. Também pensei “por que ela veio me falar que é viúva? Esses puxadores de assunto...”.

- Olha, uma pena que você seja tão jovem, se eu tivesse a sua idade...

Tudo bem quem dias atrás eu tive um grande insucesso com o sexo oposto, mas não vou apelar, né. Ih, chegou o meu ponto! Mentira, apelei para uma tática dos tímidos de plantão.

Como estou mais ou menos perto do meu trabalho, vou andando daqui mesmo. Para fazer mais pontos logo, vou ao jornaleiro, compro o jornal e dou bom dia. Depois, paro um guarda de trânsito, dou bom dia e peço informações de que não preciso. Esbarro de propósito num vendedor de doces só para pedir desculpas e aumentar o placar, mas ele me olha de cara feia, me xinga e preciso apertar o passo para não apanhar. Nem adiantou fingir que eu estava muito a fim de tomar uma coca-cola logo pela manhã.

Chego ao trabalho e o cara que controla o elevador estranha quando eu puxo assunto após o bom dia.

- Você sabe soletrar ascensorista?

- Oi?

- Se soubesse, não seria um. Perdão.

- E o framengo?

- Mais um indício, pensei. Opa, chegou o meu andar. Graças a Deus, essa conversa já estava me deixando mal.

Entro no escritório, respiro fundo e, com todas as minhas forças, dou um bom dia para todos. Imediatamente, entre olhares incrédulos, a recíproca se faz. Quantos pontos isso valeu? Contarei quantas pessoas são assim que for possível.

Quando vou pegar café, dou alguns “bom dia” individuais. Como já dei antes, fico confuso se conto de novo. Melhor deixar pra lá. Quando meu chefe chega para pegar café também, aperto a mão dele. Ele estranha, afinal, várias vezes quando o vi se aproximando em situação igual eu saí com o copo vazio. Estranhou mais ainda porque meu aperto de mão foi daqueles bem irreverentes, batendo uma palma na outra e depois dando um soco. #vidalouca.

Chega a hora do almoço. Ao longo dos anos, sempre me convidavam para ir almoçar. Porém, para evitar minutos e mais minutos de conversas desagradáveis, sempre disse que havia levado comida de casa. Emagreci muito por causa disso, até porque eu nunca levava nada. Hoje em dia, nem me convidam mais, mas hoje será diferente e chamarei um pessoal para ir comigo.

- Err... quem vai almoçar agora?

Tal como numa excursão, quando todos viram a cabeça para o mesmo lado, todos param o que estão fazendo, levantam a cabeça e me olham de forma incrédula. Como assim, o Diogo chamando alguém para ir almoçar?

- Diogo, você tá bem?

- Sim, e com fome.

- Bom, o pessoal vai daqui a pouco. Espera a gente?

- Cla-claro.

Constrangimento no elevador, as pessoas praticamente me interrogam, chegam a insinuar que o Diogo de verdade foi abduzido e deu lugar a alguém que veio para estudar o comportamento terráqueo. Penso que a ideia de ser abduzido até que seria uma boa, mas eu não teria muito papo com os et´s.

No restaurante, vejo que os garçons já são velhos conhecidos do pessoal do escritório. São chamados inclusive de “irmão”, “camarada”, “gente fina”, “campeão” etc. Prefiro chamar de garçom mesmo.

- Garçom, quero uma coca-cola.

- E aí, Mari, vai beber o quê?

- Roberto, queridão, um suco de laranja, né?

- Sandrinha, uma água com gás, certo?

Chamar o garçom de inúmeros vocativos é igual subornar agora? Pergunto o nome do infeliz, digo, da criatura, não quero adjetivar alguém que mal conheço.

- Clemilton.

- Valeu, “grande”.

Preferi um adjetivo, porque que nome, hein... mas ele não gostou, afinal, a criatura, digo, o infeliz deve ter menos do que 1,60.

Voltando para o escritório, meus colegas de trabalho parecem segurar o riso frente a minha empreitada secreta dos 20 pontos. Cumprimento camelôs, meninos de rua, engraxates...

A tarde passa devagar como sempre. Aproveito para pensar no meu dia. É difícil ser popular!

O relógio marca 18h. Hora de ir para casa? Não! Hoje tem happy-hour. Quem faz o convite-convocação? Adivinha...

- Partiu happy-hour?

Nem preciso dizer a reação geral.

Chegando à boate mais próxima, vejo que não é a melhor das opções abraçar um segurança, apesar dos 5 pontos conseguidos. Muito menos dar beijo no rosto de mulher acompanhada. As horas vão passando, meu dia vai acabando e vejo que falta pouco para o vigésimo ponto chegar. A expectativa toma conta de mim, o que fazer? Pera, uva, maçã ou salada mista? Oops! Jogo errado.

19,5. Falta pouco. O álcool atrapalha meu raciocínio. Como todo bêbado, resolvo ligar para um amigo só para dizer onde estou. Pode isso, Arnaldo? 20?