RECUPERAÇÃO

Evilásia subiu ao primeiro andar sem fazer ruído. As pantufas gastas ainda serviam para pisar de leve, mesmo sabendo que os degraus eram gritantes, defeito que já se costumara a respeitar.
Não é curiosidade, pensava, ainda que não fosse verdade. Encontrou a porta do 101 aberta,  mas não era de estranhar. Talvez a estivesse esperando. Às vezes, entrava para conversarem. Frederico, calado, sisudo, de poucas palavras, respondia em monossílabos. Mesmo assim, não desistia. Um dia vai falar. Esperava.
Cogitava que havia um mistério. Claro. Não era o único a possuí-lo. A casa em si também  é mistério.
Entrou. O homem chorava, soluçando, com a cabeça entre as mãos. Pensou em voltar, no mesmo silêncio que a conduzira até ali. Mas ficou com medo de que pudesse vê-la saindo. Afinal, se precisa de ajuda, ela poderia fazer isto.
Posou a mão no ombro. Nada. Deu uma tossezinha manhosa. Nada.
­- Frederico! Para, homem! Por que tanta aflição?
- Deixa-me! Saia daqui!
- Não. Fico e vou te ajudar. Desabafa. Conta comigo. Estou aqui para te dar apoio no que me for possível. Não podes continuar assim.
Puxou uma cadeira, sentou-se ao lado e esperou.
Os soluços foram diminuindo. Estendeu um lenço e aguardou. Pensou em quanta coisa tinha para fazer, mas não desistiu. Precisava ajudar, esclarecer.
Insistiu.
- Quem é o moço? Por que a presença dele te deixou neste estado? Diga. Ele te ameaçou? É dívida? Fala, criatura.
Parou de chorar, levantou-se, foi até a janela, olhou para os lados, respirou fundo e retornou, sentando-se novamente.
- Está bem. Vou contar. É uma longa história. Depois, não diga que não avisei.
Eu era um homem feliz. Boa situação financeira, dois filhos, esposa que amava, amigos, vida tranquila.
Quando desci do carro, Marta veio correndo ao meu encontro. Atirou-se em meus braços e beijou-me sofregamente, erguendo-se nas pontas pés. Correspondi ao beijo com o ardor de sempre. Mesmo os anos passados, conservava a beleza e o aspecto físico da juventude, até depois das duas gravidez. Afastei-a, segurando-a pelo ombro, e perguntei:
- O que aconteceu? O pássaro azul da felicidade andou sobrevoando por aqui? Ou acertaste na loteria?
- Em parte, amor, eu...
- Qual? A parte em que acertaste na loteria? Estamos ricos? Diga! Quantos bilhões?
Entramos abraçados e às gargalhadas, as meninas nos agarrando. Sentamo-nos ainda rindo, e falando os quatro ao mesmo tempo.
Voltei ao assunto.
- Então? Qual é a novidade?
Marta levantou-se. Foi ao armário e mostrou-me o papel. Nele a palavra “positivo” não deixou dúvida.
- Um filho! Nosso menino está aqui.
Com um braço apertei-a pelos ombros e com o outro acariciei a barriga, ainda lisa, esbelta.
Dei uma volta ao passado, que me parecia logo ali. O jantar dançante animado, a morena de longos cabelos e sorriso rasgado aproximando-se.
- Frederico, queres dançar comigo?
Eu parado, surpreso, encantado e mudo.
- O que foi? Estás assustado?
Eu reagindo.
- Sim, é claro.
- O que é claro? Que estás assustado?
- Não, não!  É claro que quero dançar.
Dançamos.
-Você me conhecia?
- Não,
- E como sabe meu nome?
- Sou esperta. Perguntei para a moça da tua mesa. Meu nome é Marta e moro no Jardim Botânico.
- Muito prazer.
Quando o baile terminou, já tínhamos decidido o casamento, onde morarmos, quantos filhos: dois meninos e uma menina.
Um ano depois, dávamos início aos nossos planos. Construímos a casa, casamos, nasceu nossa menina um ano depois; no seguinte, veio outra. Passamos a procurar o menino. Tudo acertado, sem discordância. Mas começaram as dificuldades. Por ocasião da segunda gravidez, alguma complicação nos fez protelar o planejado. Algo havia saído errado. O menino não vinha. Chegou a hora de buscarmos tratamento.
Agora, finalmente, a tão esperada gravidez.
Marta dava tapinha em meu rosto, fazendo-me retornar.
- Ei! Aonde andavas? Essa foi longe, muito longe.
- Nada disto, querida. Foi logo ali, fiquei me lembrando o dia que nos conhecemos.
- Logo ali? Já se passaram vinte anos, fiquei velha, as meninas estão moças.
- Para, para! Velha coisa nenhuma. Ainda és a minha garota, a que amei ao primeiro convite.
- Eu também, querido. Se não fosse a audácia da tua mulherzinha...
Beijei-a mais uma vez, sob o aplauso e gritos das meninas.
- Vai se chamar Frederico II.
- Nada disto - reagiram as três.
Mais risadas. As meninas opinando:
- Guilherme.
- Joaquim.
- Ei, moças! Fiquem calmas, bem calminhas. O nome do garoto foi decidido no dia em que nos conhecemos. Tudo planejado. Somente mudou um pouquinho. Duas meninas e um menino. O maninho será Eduardo da Fonseca. E nada de Dudu, Edu e outros mais, pois não gostamos de apelidos. Certo?
Naquela noite, saímos para comemorar.
Eco realizada: menino.
Família feliz.
Então.
Algumas famílias possuem um senão. Na nossa era meu cunhado. Desde o início, de graça, sem qualquer motivo, não foi com a minha cara. Por mais que eu tentasse, que procurasse agradar, saber o porquê, nunca conseguimos resolver. O jeito foi afastá-lo do convívio, para desgosto de Marta, que amava o irmão caçula.
 Natal.
- Frederico, podemos reunir as famílias? Vamos fazer uma ceia especial? Quero que participem da nossa felicidade.
- Todos?
Olhou-me balançando a cabeça e atirando beijinhos. Isto me atiçou, e logo a convidaria para o quarto; mas resisti. O assunto era por demais sério.
- Tens certeza? Não sei. Ainda mais que está praticando algo que não concordamos.
- É. Sei. Mas vai ser uma festa. Família reunida...
- Está bem. Você venceu, como sempre. Te amo!
O assunto encerrado com beijos.
Pouco tomei ciência da organização. Jamais deveria ter concordado, jamais.
Marta havia sido criada de forma diferente de mim, no que diz respeito às coisas religiosas. Enquanto meus pais nos criaram católicos, os dela praticavam o espiritismo. Nada contra. Cada um na sua. Isto nunca foi motivo para discórdia.
Chegou a noite da ceia. Festa feliz, todos alegres. Ricardo nem chegara perto de mim, nem ao menos para me cumprimentar. Fiquei despreocupado. Alegria, paz, confraternização. Presentes, risos.
Em determinado momento, alguma coisa me pareceu sair do contexto. Pensei que me olhavam diferente, que evitavam encontrar meus olhos, que havia cochicho, que pairava no ar um fantasma ameaçador.
Maria aproximou-se, torcendo as mãos. Pensei no meu filho, em Marta. Alguma coisa ruim aconteceu. Meio em pânico, procurei minha esposa com o olhar e a vi sentada à beira da piscina, conversando, alegremente. Maria segurou-me a mão e foi me puxando para outra sala.
- Sinto muito, mano. Mas ele me ameaçou. Disse que meus filhos sofreriam as consequências, se eu não te contasse.
Agora, meu corpo suava, as pernas tremiam.
Maria aos prantos. De cabeça baixa, disse:
- O preto-velho de Ricardo mandou-me te dizer que o filho não é teu.
Sem uma palavra, saí de minha casa para nunca mais voltar. Nada havia que me fizesse acreditar na infidelidade de Marta, nada. O ciúme foi uma fera a me perseguir. Por que demorara tanto a engravidar? Vai ver que o falho era eu, que me tornara estéril. Que havia procurado outro para me dar o filho sonhado.
Dirigi até o amanhecer, já em outro Estado. Atirei o carro contra o muro da ponte e mergulhei, nadando até a margem oposta. Consegui um passaporte falso e fui para a Europa. Vivi na promiscuidade e devassidão. Nunca mais souberam de mim nem eu de minha família. Somente a doença me fez voltar. Velho doente fica fraco das ideias. Quero morrer nesta terra.
Maria quase morreu quando me viu. Foi através dela que me inteirei do acontecido. Marta morreu ao dar à luz meu filho Eduardo. Acharam o carro. Embora não encontrassem o corpo, havia a certeza da minha morte. Maria, que era casada e não tinha filhos, adotou o meu. Depois de uma bebedeira, Ricardo confessou que mentira, que fingira estar incorporado. Disse aquilo somente para se vingar de mim, pois não suportava minha arrogância. Com isto, destruiu um lar, matou a irmã, deixou meu filho órfão. Mas não é o principal culpado. Fui seu cúmplice na tragédia que se abateu sobre nós. Talvez até seja o mais culpado.
Meus filhos estão casados. Tenho netos que nunca vi. Por insistência de Maria, foi realizado um DNA.
Hoje, Eduardo trouxe o resultado. Não sabia do que se tratava. Apenas entregou-me o papel, como Maria recomendara. Sou um miserável, um monstro. Não tenho como recuperar o tempo perdido, mas vou me redimir um pouco. Vou pedir para Maria organizar uma festa, reunir a família. Quero confessar meu crime. Após abraçar e beijar a todos, então sim, posso encontrar um pouco de paz no restante dos meus dias.



 
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 18/12/2013
Reeditado em 16/01/2014
Código do texto: T4616706
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