O teste da não semelhança

Há um bom tempo Lara pensa em se matar, principalmente quando soube que um tiro na cabeça não provocava dor nenhuma. Não que essa informação lhe desse muita segurança, já que suicidas não emitem pareceres, depois da conclusão do fato. Talvez simplesmente não tenham tempo hábil para gritar, pensou mais tarde. Conseguiu uma arma de segunda mão no mercado negro. Deixou-a na primeira gaveta da cômoda, debaixo daquela camisola preta, que usou na noite que esteve com o Paulo. Quis a arma ali, bem a mão, para que quando chegasse o momento ou o motivo, ela concluísse tudo rápido, sem tempo para pensar ou ponderar. Estava cansada de permitir que seu instinto de sobrevivência, como um maldito piloto automático, entrasse em ação. E sempre que ele agia, trazia o ranço de uma sobrevivência inócua, insípida, cobrando ainda mais por sentido, razão de ser, enfim, vida ou alguma coisa parecida. A próxima tentativa seria a última, pois acreditava estar próxima de um certo limite de intolerância que, segundo leu, todos os suicidas têm que chegar para a prática do ato.

Em outubro de 1990, deu-se sua primeira tentativa de por um ponto final na medíocre, segundo ela, rotina que levava. Usou o velho corte nos pulsos, durante um banho de emersão, numa confortável banheira que tinha em seu apartamento. Cortou o esquerdo, sem muita profundidade, pois sentia dor só em ouvir a palavra dor. Somando a falta de força e imprecisão do corte, com a dor que a fez evitar o pulso direito, Lara acabou concluindo que, fora o banho de banheira e um pouco de sangue, nada mais se deu. Envergonhada consigo mesma, apoiou de novo a lâmina da faca sobre o pulso direito e, com os olhos fechados, já ia dando o talhe, quando o telefone tocou. Teve que largar tudo que estava fazendo e atender, pois talvez fosse algo importante, interessante, algum motivo especial para acordá-la mais cedo no dia seguinte, sabe-se lá. Ou, minimamente, pouparia seu pulso direito da hemorragia que se avizinhava. Era seu pai. Pediu-lhe que comprasse pó de café, quando ela fosse no supermercado, pois o dele estava acabando. Se possível, trouxesse umas bistequinhas de porco, já que vinha comendo lasanha há três dias. Queria variar um pouco o prato, enquanto ela, do outro lado da linha, tentava variar o pulso e consumar essa coisa humilhante que é acabar com a própria vida. Havia feito uma bandeja enorme de lasanha para o pai, pois, por alguns dias, fome ele não passaria, e ela teria tempo mais que suficiente para dar cabo de si mesma. Foi uma maneira de carregar menos culpa, nessa recente dependência do velho com ela, depois da doença que dominou suas pernas. Porém, o fato do pai não ter alternativa, senão ela, nunca foi motivo suficiente para desencorajá-la em sumir do mapa. Pelo contrário, cada novo dia com o velho ainda vivo, soava como mais um que ela deixava de viver. Detestava o homem, mas não lhe faria mal, pois isso abreviaria sua existência que, agora cercada de sofrimento, queria ela que fosse longa. Mas com a dela abreviada, dois coelhos seriam pegos em um só tiro: ela não se angustiaria mais e ele perderia o único elo que tinha com a humanidade. O homem tinha sido ruim demais com sua mãe e ela daria o troco. O faria cair no vazio, esmolando atenção a estranhos e, com certeza, não receberia sequer a décima parte daquela que ela lhe dava. Pena que para provocar esse mal a ele, ela tivesse que praticar outro infinitamente superior a ela. Sua raiva aumentava em função disso, mas o faria assim mesmo, por ela e pela mãe.

Não conseguiu concluir o corte do pulso direito, naquele outubro de 1990 e, no dia seguinte, comprou bistecas para o pai. Deste primeiro corte no pulso, com a intenção do segundo interrompida pelo toque do telefone, até hoje, com essa arma na gaveta da cômoda, quatro tentativas ocorreram. Somam cinco, portanto, pois embora na primeira ela tenha praticamente só tomado um banho de banheira, ela também conta, afinal, foi uma iniciação. Descreverei aqui alguns detalhes sobre as outras quatro:

2ª. Tentativa- Ela tomou uma caixa de analgésico durante a noite, imaginando uma morte durante o sono. Seria algo indolor e limpo, bem melhor que pulsos cortados e sangue jorrando. Por volta das 23 horas, um barulho tremendo sacode a janela do quarto com violência. Era o transformador da rua que acabava de explodir, bem em frente da varanda do seu apartamento, no segundo andar. Seu susto foi enorme e, provavelmente, a descarga de adrenalina anulou o efeito do sedativo.

3ª. Tentativa- Voltou ao analgésico, uma caixa, porém, mais forte, segundo o farmacêutico. Deixou de jantar para, supostamente, aumentar o efeito. Subiu os lances de escada apressada até sua porta, abriu-a, sentiu uma tontura e desmaiou em cima do tapete da sala. Quando ela pensou em não jantar, para aumentar a ação da droga, esqueceu-se que não havia almoçado. Passou o dia, portanto, com uma média e um pingado, que havia tomado de manhã na padaria da esquina, antes de pegar o ônibus para o trabalho. Recuperou a consciência no meio da madrugada, mas nem mexeu nas drágeas. Pelo menos em seu último dia de vida, as coisas tinham que se dar do modo que ela queria, pois o programava com antecedência. Irritada com imprevistos, ela abortava a tentativa e prometia a si mesma ser mais cautelosa na próxima.

4ª. Tentativa- Nessa noite, levou um travesseiro e colchonete até o piso da cozinha e se trancou lá. Fechou a porta da área de serviço, abriu a do forno e liberou todas saídas de gás. Deitou-se e aguardou. Depois de algumas horas, começou a sentir ânsia e vomitar em cima do travesseiro e colchonete e toda aquela imundície a fez, mais uma vez, adiar seus planos. Não queria morrer no meio da sujeira, já bastava aquela que enfrentava na firma.Despertaria nojo e não piedade e compaixão, quando seu corpo fosse encontrado.

5ª. Tentativa- Humilhada pela quarta vez em sua competência suicida, radicalizou. Iria se atirar na frente do trem, assim que ele chegasse naquela estação do Metrô. Sangue e pedaços do seu corpo espalhados eram bem mais dignos que vômito. Ao menos provocariam terror e repulsa, ao invés de nojo.

Assim que o trem se aproximou e ela saiu em desabalada correria ao seu encontro, escorregou no meio do trajeto em um pedaço de sorvete que havia acabado de cair da mão de uma criança. Batendo a cabeça com muita força, no tombo que veio logo depois, acordou em um hospital público próximo à estação. Ainda no leito, pensou no fato da pancada não ter sido forte o suficiente para acabar com tudo de uma vez. Começou a se convencer de que alguma coisa conspirava contra a sua decisão de se matar. Ela queria fazer aquilo, estava decidida, mas algo sempre acontecia, adiando a bendita hora final da sua maldita vida. E isso a vinha enfurecendo, a ponto de partir para a radicalidade citada nessa última vez. Tudo porque os imprevistos acumulados até então, apenas retardavam o fato em si, ao invés de trazer algo bom que a fizesse parar de desejá-lo. Por isso mesmo comprou aquela arma da gaveta da cômoda, pois armas dispensam com eficiência cortes nos pulsos e promovem explosões que não adiam, como a do transformador, mas concluem. Além disso, não possuem uma química de efeito relativo, mas uma física contundente, bem como, não tempo da pessoa vomitar.

Enquanto isso, seu pai nem imaginava o que se passava com a filha, não só por total incapacidade de sair de si mesmo, como também por Lara ter tomado todos os cuidados possíveis e imagináveis para não alertá-lo quanto a isso. Seria o cúmulo vê-lo preocupado com esse assunto, pois nada que não fosse falso e dissimulado saia daquele homem. Seus suicídios frustrados já a humilhavam o suficiente e não queria mais esse infortúnio.

Sua determinação em se matar a fez, de anônima que era, passar ao estágio seguinte: a invisibilidade. Estar ou não em algum lugar, fosse casa ou trabalho, tanto fazia, pois na verdade nunca estava em nenhum, carregando uma sensação constante de vazio, um estado comum de corpos que caminham por aí apenas no plano físico, sem uma alma que os justifiquem. Lara perdeu a sua em alguma parte do caminho, mas não a quer de volta, desistiu dela. Ela ainda a tinha, quando a mãe era viva. Naquela época, muita coisa fazia sentido, até um marido e filhos. Por que não? O homem ideal, quando ainda pensava nisso, seria aquele o mais distante possível de qualquer semelhança com seu pai. Ele sempre foi sua melhor referência nesse aspecto. Homem que não o lembrasse em momento algum, sutileza alguma ou detalhe ínfimo qualquer, seria um homem viável a ser considerado, mesmo que não a fizesse se apaixonar, pois esse era um detalhe de luxo que nem passava pela sua cabeça. A integridade e educação encabeçavam sua lista de prioridades, nessas buscas. Porém, ela não os buscava propriamente, apenas deixava que se aproximassem. Atraiu vários deles, mas, excetuando um, todos os demais não passaram no teste da não semelhança com seu velho, dependente e asqueroso pai. Algumas dessas reminiscências, no entanto, ainda faziam suas cordas emocionais emitir algum som, como aquelas do tempo em que, ainda pequena, só tinha olhos para ele, pois queria que a sua presença de filha e o que fizesse como tal, o orgulhasse de algum modo. Isso tudo, no entanto, fazia parte de um passado tão remoto, que mal ela entendia o fato de seu sistema nervoso ainda não o ter deletado. Talvez ainda estivesse viva, por conta de informações como essa. É bem provável que seus neurônios as viessem guardando, como uma espoleta, que reuniu condições de acionamento do seu outrora infalível instinto de sobrevivência. Mas nem mesmo eles, os neurônios, vinham pondo muita fé na eficiência do sistema, pois o número de mensagens negativas era avassalador, bloqueando suas iniciativas. Lara não lhes dava ouvidos, pois não faria qualquer sentido continuar vivendo apenas pelo que eles lhe diziam. Lembranças da época de inocência, não seriam capazes de sobreviver àquele mundo de incredulidade que ela criou para si. Chegava a mudar de calçada, quando via uma flor, como aquela música do Chico. Sentia também uma horrível sensação de mal estar em gestos afetivos a ela dirigidos. Não conseguia vê-los, senão como artifícios para segundas intenções. Vale dizer, portanto, que quando a maldade não estava lá, ela a punha. Era como um odor de carniça que a incomodava aonde quer que fosse. Sabia que a tal essência da podridão, deveria estar em seu nariz e não nos lugares. Porém, isso não animava muito as coisas, dando-lhes perspectivas. Lara não conseguia se livrar daquele cheiro de maldade, que começado na sua juventude, por obra e graça do pai pervertido que tinha, estendeu-se pelo restante da sua vida e, há dois anos, reforçado no ambiente da firma em que trabalhava, se tornou um cheiro real e consistente, quase palpável. Talvez fosse mais um desses casos de sinestesia, mas o comentário não seria seguro, caso o fizessem. Isso porque nem sempre a maldade concreta estava presente, quando ela sentia o cheiro. Mas de nada adiantava questioná-la a respeito, pois alegava sentir o fedor com a mera intenção da mesma. Dizia ser quase impossível parar de senti-lo nos dias de hoje, onde quase tudo apodrece a olhos vistos. Ficava perplexa com o fato de apenas poucas pessoas como ela constatar coisa tão óbvia. Taxava de covardes aqueles que a tinham como neurótica, pois não seria fácil corrigir a humanidade para que o cheiro a deixasse. Bem mais simples era ofendê-la, ao invés de se dar início a algum processo de limpeza.

Agindo desse modo, seria natural imaginá-la só. Porém, só ela nunca estava, embora pensasse que sim. Alguns a julgavam uma beata puritana ainda virgem, pois nada nela combinava com emoções que lembrassem desejo, paixão ou prazer. No quesito casamento, seus colegas de trabalho tinham dó de quem se aventurasse a ser seu marido. Nesse aspecto, a opinião era quase unânime. Quase, porque havia uma única exceção, justamente aquele sujeito que havia passado no teste da não semelhança com seu pai. Quando citei o fato de ela não estar sozinha, me referi a ele, que a acompanhava a distância. O sujeito até teve a sua oportunidade, com aproximação autorizada e tudo mais, mas preferiu a distância. Isso foi por ela traduzido como insegurança e Lara, além de maldade, má-fé e segundas intenções, também não suporta insegurança. Não por lembrar seu pai, senão o rapaz não teria passado no teste, mas por si mesma, valores seus. Segurança não valia tanto quanto integridade e educação, na sua hierarquia moral, mas estava bem próximo ou, segundo seu estado de espírito no dia, dentro das duas anteriores.

Nunca a pegaram falando de amor ou demonstrando algum, por mínimo que fosse. Gosto musical, por exemplo, ela não parecia ter. Talvez até tivesse, mas não parecia ter. Aliás, não parecia ter gosto algum. Talvez até tendo, mas não parecia ter. Aquele rapaz que sobreviveu ao teste da não semelhança torcia muito por ela, pois sabia que ela tinha, mesmo não transparecendo. Gostaria que, como ele, os outros também notassem o que ela carregava em si, pois a ajudaria a viver menos só, mas orgulhava-se por ser o único com percepção para isso. E, caso perguntassem a ele, o que tanto via nela, respondia que o tanto não era tão importante quanto o como, pois, embora ela exagerasse um pouco, o motivo do seu descrédito nas pessoas era verdadeiro. As pessoas, incluindo ele mesmo, estavam se corrompendo cada vez mais, permitindo imundícies e barbáries cada vez mais e, tentando anestesiar a sensação de impotência, vinham fechando os olhos cada vez mais, abrindo-os com esperança, no primeiro estágio, desconfiança, no segundo, quase por obrigação, no terceiro, sobrevivência pura e simples, no quarto e, de novo, por sobrevivência pura e simples, os fechava de vez. Talvez tentando aliviar a culpa da cumplicidade com todo aquele quadro geral por ele descrito, desviaram o foco da conversa para o da possibilidade dele, estando apaixonado, querer perdoá-la de algum modo. Algo como amar o feio ser uma forma de vê-lo bonito. Quanto a isso, não se fez de rogado, admitindo de imediato a dita atração. Porém, devolvendo o foco da conversa àquilo que importava, alguns comentários seus desferiram golpes inesperados naqueles ouvintes, tais como:

1º. Golpe- o fato de um deles, homem de 45 anos, casado pela 2ª. vez e com dois filhos da primeira, ter se aproveitado da grande amizade com um advogado, para excluir sua ex-mulher e as duas crianças de qualquer respaldo financeiro seu,que por motivos óbvios, certamente os tiraria das inúmeras dificuldades de sobrevivência que vinham enfrentando, viabilizando comida na mesa dos mesmos todos os dias, escola para o menor que ainda não tinha como se educar, comprometendo seu futuro e um cargo melhor e merecido para a mãe, que foi solapado pelas influências que ele exerceu, por puro uso de poder, naquela firma em que ela trabalhava. E que, somado a isso, o seu segundo casamento com uma mulher conhecida na Internet, estar sendo um inferno para ela, pois presa em casa e tendo de parar de trabalhar, transformou-se numa empregada que copulava com ele, por puro medo. Ela, até hoje, não tem as chaves da casa ou qualquer acesso a telefones, para evitar fugas.

O homem, com o punho cerrado, já o vinha agredindo, quando foi contido pelos demais. Vociferou que aquilo tudo era mentira, coisa de quem estava delirando e não tinha o que fazer. Afinal, quem falava, não poderia ter tanta segurança sobre o que falava.

Mantendo a calma, o sobrevivente do teste da não semelhança disse que, há dois meses, ajudava as duas, tanto a ex com os filhos, como a atual. E explicaria tudo com detalhes, mas não antes de voltar ao foco do assunto.

Enquanto dois amigos próximos da vítima do primeiro golpe, levando-o a outra sala, confortavam-no em uma cadeira, os demais, um pouco tensos, permaneceram por ali. Não quiseram aparentar algum tipo de culpa por antecipação, saindo do lugar.

2º. Golpe- Uma das mulheres ali presentes, com seus 26 anos, solteira, pai falecido e mãe ainda viva, omitia da mesma um valor considerável recebido em um seguro de vida que, feito pelo pai pouco antes de sua morte em acidente de carro, não chegou aos ouvidos da mãe, que envelhecia em asilo público da cidade com severos problemas de memória e lucidez. Através de uma procuração com amplos poderes, a dita filha coordena o descaso com a mãe ao seu bel prazer, enquanto capitaliza com polpudos frutos, a bolada do seguro recebido.

Nesse caso não houve briga nem troca de ofensas, pois três mulheres presentes tinham quase a mesma idade e eram solteiras. Não saber do que ele estava falando foi o comentário de uma delas que, logo após, saiu da sala alegando outro compromisso, enquanto as duas restantes ficaram por ali, aguardando a carapuça que lhes servissem.

3º. Golpe- Uma outra jovem com mesmo estado civil e idade próxima à da última, levava uma vida dupla de prostituição, como acompanhante de empresários, e de esposa, junto a um marido escolhido por sua atrativa situação financeira.

Também nesse caso, de início, não houve briga, pois duas mulheres ainda presentes poderiam se encaixar no perfil. No entanto, uma delas, ofendida com olhar malicioso da outra, deu-lhe um tapa que, revidado, terminou na outra sala em grossa troca de insultos. Uma delas, descabelada e mancando, voltou, implorando ao homem do teste da não semelhança que, se fosse falar mal dela também, o fizesse logo, pois só ficava ali, ouvindo tudo aquilo, porque não queria dever nada a ninguém.

Ele lhe disse que poderia ir embora de consciência praticamente tranqüila, pois as maldades por ela praticadas eram comuns a quase todos envolvidos nas suas pesquisas. Inveja, egoísmo, má-fé e coisas do tipo estariam entre elas. Desse modo, disfarçando o alívio que a declaração lhe deu, a mulher criticou o homem por sua atitude de julgar os outros daquela forma, invadindo suas privacidades. Saiu logo depois, forçando um certo ar de orgulho de si mesma.

Desconfiados com a habilidade do homem de penetrar nas intimidades da vida de cada um, questionaram a sua competência nesse aspecto. Perguntaram se ele era algum tipo de detetive contratado ou fazia isso por vocação. Ele se levantou da cadeira que estava e, levando a mão ao bolso, tirou uma pequena carteira de identificação com sua foto e alguns dizeres. Alegando ter outras iguais, deixou-a em cima da mesa para que todos vissem. Pegou um sobretudo que descansava na poltrona ao lado e saiu em busca de Lara, pois precisava lhe falar, enquanto isso os outros o acompanhavam com os olhos, que depois se voltaram à mesa e aquela carteira.

Lara não esteve naquela sala, enquanto aquele homem, o único que ela permitiu se aproximar, proferia o seu discurso a respeito dos outros com tanta segurança. Ela nunca se sentiria à vontade naquela sala, pois nos últimos tempos, não participava de nada que agregasse mais alguém além de si mesma, principalmente naquele seu ambiente de trabalho.

Já tinha dado a sua hora de término do expediente. Pegou suas coisas e caminhou para a rua, questionando-se sobre ser ou não a noite que viria adequada ao uso daquela arma da gaveta da cômoda. Estava frio e na calçada, bem em frente à firma que trabalhava, sentiu um peso macio e aveludado que, do nada, passou a aquecer seus ombros e braços. Era o sobretudo daquele homem, que junto com o próprio, finalmente se aproximou. Assustada, ela o tirou, um reflexo natural contra os assédios dos quais, às vezes, era vítima. Não tinha qualquer intimidade com o dono daquele sobretudo para aceitá-lo em seus ombros. Pediu a ele que a deixasse em paz, mas o fez sem muita convicção, pois enquanto ele falava aos outros dentro daquela sala, pessoas que ela abominava passavam ao lado da sua visivelmente feridas em seu orgulho hipócrita e isso lhe deu prazer. De onde estava, não conseguia ouvi-lo, mas percebia, satisfeita, a contundência dos resultados. Talvez ele fosse uma espécie de grande chefe da firma e, disfarçado entre os funcionários comuns, estivesse procedendo demissões sumárias embasadas na falta de caráter de cada um. Começou, por alguns minutos, a se inebriar com a idéia de que, repentinamente e para sua felicidade, a má índole das pessoas as estivesse desabonando na empresa, independentemente do lucro que elas gerassem. Esse tipo de atitude soava como mais um dos clichês por ela detestados, pois podia estar escondendo segundas intenções políticas dentro da firma, motivos falsos para justificar algum outro tipo de limpeza que não aquela que ela queria. Aquilo tudo era um ninho de cobras, mas ficou satisfeita em ver ao menos algumas delas abaladas.

Continuou insistindo no afastamento do homem do teste da não semelhança, recusando seu sobretudo. Não queria que ele percebesse aquele pequeno resíduo de afetividade que ela guardava por ele, desde a época da aproximação autorizada, até agora, com seus golpes certeiros naquelas víboras. Ele não podia perceber, por exemplo, que ao seu lado, ela não sentia aquele cheiro horrível de carniça, pois poderia desdobrar esse embrião de simpatia em qualquer moeda de troca, prática comum daquele ninho de cobras no qual ela tentava ganhar seu sustento.

Ele lhe disse que precisava muito conversar e que, caso se sentisse melhor, não se aproximaria dela menos que dois metros. Ele optou por algum lugar público, uma lanchonete talvez, para fazê-la sentir-se mais à vontade. Disse que iria ser suscinto e objetivo, mas precisava lhe falar.

Naquele final de tarde, Lara conheceu de fato uma pessoa íntegra e educada, repleta de segurança de propósitos e retidão moral. Ficou pasma com a sensibilidade crítica que ele demonstrava no relato da razão de ser de sua presença ali, ao lado dela, falando-lhe. Disse que não foi contratado pela firma, mas convidado por ela, junto a mais alguns companheiros de vocação. Faziam uma pesquisa mais profunda no perfil de caráter dos funcionários que alavancavam os lucros da empresa. A proximidade exagerada com valores monetários altos, segundo os donos daquela multinacional, vinha corrompendo posturas de vida e valores éticos demais nos primeiros e segundos escalões da hierarquia, assustando a diretoria com o número de monstros insensíveis que vinham surgindo, fruto de um modo de operação que iria ser mudado, mas não sem antes excluir aqueles casos moralmente terminais. Por suicídio e em passado recente, perderam um ótimo funcionário do setor de contratos, enquanto vários outros, em posições estratégicas à boa conduta da empresa, vinham passando, como ela, por profunda depressão. Pensaram em alternativas de lazer, como ioga ou coisa no gênero, para aliviar a tensão que vinha se disseminando. No entanto, perceberam que o caso era mais grave, pois envolvia a falha de caráter de algumas peças chaves da firma, que chegaram àquele estado ou por já serem assim, ou por, uma vez lá, se tornarem assim. De um modo ou de outro, eles não lavariam as mãos, demitindo tais pessoas já viciadas em sua degradação impune e recuperando o mais rápido possível àquelas que, mesmo deprimidas, não se entregaram a todo aquele jogo sujo. Confessou-lhe que ela, Lara, foi seu termômetro inicial na situação, pois usou sua obsessão como referência na busca de alvos que agilizassem resultados. Chegou, inclusive, a usar o odor que ela sentia como uma pista para seus trabalhos. Aproximou-se dela não com a intenção de namorá-la, mas simplesmente por se preocupar. Afastou-se por um tempo, pois suspeitava estar sendo mal entendido. Perguntou-lhe sobre o fato de ela não achar estranho que seu pai tenha parado de aborrecê-la com seus telefonemas. Ele agora tinha uma diarista, paga pela empresa, que não só cuidava da limpeza, como também era uma excelente cozinheira. Ela não deveria mais se preocupar com ele, o pai, pois depois do levantamento que fizeram em seus antecedentes criminais, entre as agressões à mulher e as tentativas de estupro à filha, qualquer um dos dois motivos justificaria a ajuda, antes velada, mas agora assumida, que ela estava recebendo. A perda das duas pernas, como conseqüência do cigarro, seria o único problema dele no momento. Sabia também daquela arma que ela guardava, pois ele a seguiu no dia da aquisição. Rogou que ela não a usasse, pois as coisas iam melhorar. Ela não teria, por exemplo, que lidar com um chefe imediato obtuso e mesquinho, pois além do imbecil estar sendo demitido, também enfrentaria processo na vara da família por falta de pagamento de pensão à ex-mulher e dois filhos, bem como por processo criminal por cárcere privado, envolvendo a mulher atual. Ele, aliás, como hábil advogado que é, estava cuidando pessoalmente disso. Isso sem contar com o alívio que ela também teria em não mais precisar dever satisfações à sua coordenadora de área, como também, à fiscal de produção. Ambas estavam sendo dispensadas por falta absoluta de caráter. Uma por má conduta junto à mãe, que padecia em asilo público, e outra por exploração da ingenuidade do marido que, vale dizer, recebeu pelo correio fotos da esposa em seus outros relacionamentos. Enquanto isso, a mãe citada, por iniciativa da própria filha, vinha sendo decentemente cuidada, mediante é claro, um certo estímulo do corpo de advogados da empresa, que bem relacionados com os da receita federal, poderiam a qualquer momento fazer uma devassa nos seus impostos.

Lara ficou perplexa com aquilo tudo e, por mais neurótica que fosse com tais assuntos de desvios de caráter, achou tanto o homem como o que ele dizia, bizarro. Ela parecia estar atuando em um filme, como figurante, bom demais para ser real. Ali mesmo foi informada que seria promovida, caso aceitasse, a um cargo de gerenciamento em um novo departamento que seria ligado ao setor de recursos humanos. Nesse departamento, Lara, psicóloga, usaria sua psicologia para construir maneiras de tornar funcionários muito próximos à riqueza da firma, mais refratários à materialidade excessiva que ela exala. Ela iria, dentro do possível, fortalecê-los nos assuntos não materiais, tais como humanidade, altruísmo e outros relevantes. Teria, inclusive, condições e autoridade para detectar vícios e desvios de caráter ainda nascentes, estimulando-os a uma reversão. Sendo assim, a matriz alemã e, portanto, social-democrata, sanaria os nefastos efeitos colaterais do capitalismo que quer levar vantagem em tudo, comum a certos funcionários, mas, quiçá, não ao nosso país. O Brasil, aliás, tem a filial mais rentável no momento e merece cuidar muito bem dos cérebros que a mantém como tal. Que a riqueza material da firma não implique em pobreza espiritual de seus contratados. E quanto a vários dirigentes da matriz, coisa que Lara nem imagina, sempre que possível, passam as férias aqui, renderam-se à nossa tropicalidade e cultura em seus mais variados aspectos. Essa relação afetiva marcante os vem estimulando na confecção de uma filial recheada com funcionários competentes, profissional e humanamente falando. E quanto a ele, o homem do teste da não semelhança com o pai dela, seu nome é Arthur e trabalha em uma entidade de nome "Coruja do Ártico", uma ONG que, tal qual o animal, é reconhecida por sua audição, visão e olfato extremamente desenvolvidos, perfeitos e adequados ao encontro do alimento que se esconde debaixo de várias camadas de neve.

Lara, depois de ouvir aquele homem por tanto tempo, chegou bem tarde em seu apartamento, quebrando completamente suas regras. Descarregou a arma e inutilizou-a com um martelo, prosseguindo na quebra das tais regras. Religiosa que nunca foi, quebrou outra, e agradeceu, a quem quer que fosse, pelo telefonema do pai sobre o pó de café, pela providencial posição do transformador em frente à sua varanda e pelo pedaço de sorvete da criança do Metrô. Foi para a cama orgulhosa com seu novo estado de ânimo, pois nem bem havia chegado em casa, e já quebrava regras aparentemente imutáveis. Hábito, aliás, iniciado ainda naquela lanchonete, quando se surpreendeu aceitando o convite daquele homem para jantar no dia seguinte. Sentiu prazer com isso e mais prazer ainda, por sentir prazer com isso. Seu instinto de sobrevivência passou a estar tão repleto de motivos, que talvez até no simples corte de algumas unhas, ele agora impusesse alguma resistência.

GripenNG
Enviado por GripenNG em 16/12/2013
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