CULPAS E VIRTUDES DO FUTEBOL

Seu Nonô não era o típico torcedor: não saia travestido com as cores do time, nem, tampouco, discutia táticas e roubadas do árbitro. Dessas questões não se ocupava. Era, por assim dizer, um tímido e desinteressado observador futebolístico. Porém, e sem por quê, certa noite se dispôs a assistir por inteiro uma partida. Havia dias que não se falava noutra coisa, tamanha era a importância que tanto a media impressa, radiofônica e televisiva, não tratavam de outro assunto. Até o casamento do príncipe ou a traição da atriz tal, que noutros tempos tomariam páginas e páginas de jornais, ficaram esquecidos de tudo e de todos. Só se falava daquela partida.

Era a partida do século. Comentaristas foram mobilizados, matemáticos trouxeram gráficos, estatísticos com suas probabilidades; todos, das mais variadas especialidades deram seus pareceres. Houve até emissora que contratou a mais conhecida das cartomantes. Outras trouxeram mães de santo, pais de santo; naturalistas deram entrevistas sobre o melhor alimento para combater o stress, fisioterapeutas ensinaram exercícios de relaxamento De modo que, mesmo quem quisesse não poderia ficar alheio àquele super-esperado e explorado evento.

Então, seu Nonô, homem conhecedor das relações humanas e atento aos comentários difundidos pela mídia, tanto quanto nas rodas da feira, pontos de ônibus, seu Nonô, resolveu que assistiria àquela partida.

A semana demorava para passar, embora, o tão esperado jogo aconteceria já na quarta-feira, portanto, naquela segunda, já se estava à antevéspera do grande e esperado espetáculo, não era raro encontrar alguém que lamentasse a demora daquela semana.

Talvez por influência da mídia ou por mero senso de oportunidade, criaram-se nas redondezas centros de apostas. De modo que longas filas passaram a contrastar com a calmaria daquela comunidade.

Gente de outras localidades, que antes só ali chagavam para uso do único hospital da região (fato que já fora tema de reportagem de uma grande emissora), desembarcaram em verdeiras romarias, somente para poderem fazer suas apostas. Não precisa dizer que com tamanho êxodo, a cidade, de uma hora para outra, viu-se às portas com os problemas de falta de água, habitação e fornecimento de alimentos. Uma rede de fast food, até aquele momento completamente desconhecida daquela pacata gente, não se deixou por menos: instalou quiosques em vários pontos da cidade, de maneira que, não se dava um passo sem se deparar com sua tenda.

O prefeito, que vinha caindo na preferência de votos para as próximas eleições, não esqueceu da velha prática política; mandou montar palanque. Fez várias promessas, algumas já conhecidas e não cumpridas, porém, a mais imediatamente lançada, e muito aplaudida, se referia á construção de um pequeno estádio para "lançar nossa cidade no rol das grandes cidades apoiadoras dos grandes espetáculos"; foi ovacionado.

Seu Nonô que a tudo assistia, e talvez tomado de certa letargia, nada conseguiu expressar. Apenas no seu intimo reafirmou sua intenção de assistir àquela histórica partida. Porém, sem conseguir palavras que pudessem explicar, não estava tão alegre e feliz como a maioria dos seus conhecidos e vizinhos. Era um homem simples; tinha frequentado a escola somente o suficiente para assinar o nome.

Enfim chegou quarta-feira!, era o anúncio do carro da prefeitura. "Não percam, na praça da matriz, hoje, às 21 horas, o grande jogo, com os cumprimentos do Seu Prefeito, o homem do povo; não percam. Tragam a família, a minha, a sua, a nossa família", ouvia toda hora.

Seu Nonô, não atendeu ao pedido; não saiu de casa. Decidiu que assistiria ao jogo junto aos seus, caso não fossem à praça. Então assim fez: arrumou o sofá. Caprichosamente pegou seu cobertor, cinzeiro e um bule de café. Disse à família para que não o chamassem; "quero sentir o sabor dessa paixão nacional", frisou, pausadamente a todos que à sala estavam.

A família resolveu que iria à praça. Seu Nonô ficou só. Ligou a televisão. Não tardou muito e faltando cinco minutos para o começo da tão esperada e explorada partida, eis que, com lágrimas nos olhos, o locutor, cidadão honorário daquela pacata cidade, anuncia que o ônibus que transportava o time adversário caíra numa ribanceira. Mas que, felizmente, não havia vítimas graves, porém, o grande espetáculo seria adiado para um futuro próximo.

A rede de fast food recolheu suas tendas, a promessa da construção do estádio não fez o prefeito se reeleger, o centro de apostas deu lugar ao coreto e ao salão de bailes.

A cidade hoje continua com sua vida pacata, mas, às sextas-feiras, seu Nonô e sua senhora, dançam valsinhas e serestas, como nos tempos de namoro.